Crônica | Parêntese

José Falero: Campo minado

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José Falero: Campo minado Para a Dalva, com amor. Dia desses, ali na José do Patrocínio, eu ia indo e um cara vinha vindo, quando ele de repente para, vira todo o corpo na minha direção, olha dentro dos meus olhos, me aponta um dedo acusador e pergunta, quase afirmando: — Zé? — Talvez… Eu não te devo dinheiro, te devo? —, brinquei. — Porra, que bom te ver! Eu sou o Bruno! Ainda bem que ele falou, porque eu nunca teria lembrado. Quer dizer, nunca teria lembrado o nome, porque a figura do cara, sim, consegui reconhecer sem muita demora, apesar do tempão que fazia que a gente não se via. O Bruno foi meu colega por dois anos no Rio de Janeiro. Não o estado do Rio de Janeiro, nem a cidade do Rio de Janeiro, claro: me refiro ao colégio que fica aqui em Porto Alegre mesmo, na Lima e Silva. É que eu morei um tempo na Cidade Baixa, antes de o meu pai morrer. Não foi tanto tempo assim, mas foi tempo suficiente para eu me matricular no Rio de Janeiro e ali cursar os dois primeiros anos do Ensino Fundamental, na época chamado ainda de “Primeiro Grau”. Então, pelas minhas contas, que admito não serem lá muito confiáveis, eu devia ter oito ou nove anos na última vez que vi o Bruno, antes de dar adeus a ele e a todos os meus coleguinhas da Cidade Baixa e voltar a morar na Lomba do Pinheiro. Agora, ali estávamos nós, dois homens feitos, ambos na casa mal assombrada dos trinta. Reencontrar o Bruno me fez pensar no tempo do Rio de Janeiro, e foi com espanto que percebi restarem-me pouquíssimas lembranças daquela época. Lembro que eu tocava tarol na banda da escola, e que gostava muito de tocar; gostava tanto, que até enfrentava toda a minha timidez para poder tocar. Lembro da Paola, a menina que eu amava em segredo, que era mais velha do que eu, que devia estar umas duas ou três séries à frente da minha, que jogava vôlei na quadra, que tinha um sorriso lindo, que nunca sorriu para mim. Lembro do gol decisivo que fiz numa partida do torneio de futebol, e de como toda a torcida ao redor vibrou e os meus colegas vieram correndo me abraçar. Inclusive, ao reencontrar o Bruno na José do Patrocínio e vasculhar a memória, me perguntando onde diabos eu já tinha visto aquele rosto, foi justamente essa a imagem embaçada que desenterrei: ele e os meus outros colegas correndo na minha direção, para me abraçar. É engraçado, e até meio trágico, mas nada do que a escola se propõe a fixar permanentemente no interior da cabeça dos alunos parece ficar ali dentro por muito tempo. Eu, pelo menos, não sou capaz de relembrar uma única lição sequer, de nenhuma disciplina, de nenhuma das escolas pelas quais passei; não resta, na minha memória, nem o mais vago vestígio dos conteúdos que os professores se esforçaram tanto para ministrar. […]

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Para a Dalva, com amor. Dia desses, ali na José do Patrocínio, eu ia indo e um cara vinha vindo, quando ele de repente para, vira todo o corpo na minha direção, olha dentro dos meus olhos, me aponta um dedo acusador e pergunta, quase afirmando: — Zé? — Talvez… Eu não te devo dinheiro, te devo? —, brinquei. — Porra, que bom te ver! Eu sou o Bruno! Ainda bem que ele falou, porque eu nunca teria lembrado. Quer dizer, nunca teria lembrado o nome, porque a figura do cara, sim, consegui reconhecer sem muita demora, apesar do tempão que fazia que a gente não se via. O Bruno foi meu colega por dois anos no Rio de Janeiro. Não o estado do Rio de Janeiro, nem a cidade do Rio de Janeiro, claro: me refiro ao colégio que fica aqui em Porto Alegre mesmo, na Lima e Silva. É que eu morei um tempo na Cidade Baixa, antes de o meu pai morrer. Não foi tanto tempo assim, mas foi tempo suficiente para eu me matricular no Rio de Janeiro e ali cursar os dois primeiros anos do Ensino Fundamental, na época chamado ainda de “Primeiro Grau”. Então, pelas minhas contas, que admito não serem lá muito confiáveis, eu devia ter oito ou nove anos na última vez que vi o Bruno, antes de dar adeus a ele e a todos os meus coleguinhas da Cidade Baixa e voltar a morar na Lomba do Pinheiro. Agora, ali estávamos nós, dois homens feitos, ambos na casa mal assombrada dos trinta. Reencontrar o Bruno me fez pensar no tempo do Rio de Janeiro, e foi com espanto que percebi restarem-me pouquíssimas lembranças daquela época. Lembro que eu tocava tarol na banda da escola, e que gostava muito de tocar; gostava tanto, que até enfrentava toda a minha timidez para poder tocar. Lembro da Paola, a menina que eu amava em segredo, que era mais velha do que eu, que devia estar umas duas ou três séries à frente da minha, que jogava vôlei na quadra, que tinha um sorriso lindo, que nunca sorriu para mim. Lembro do gol decisivo que fiz numa partida do torneio de futebol, e de como toda a torcida ao redor vibrou e os meus colegas vieram correndo me abraçar. Inclusive, ao reencontrar o Bruno na José do Patrocínio e vasculhar a memória, me perguntando onde diabos eu já tinha visto aquele rosto, foi justamente essa a imagem embaçada que desenterrei: ele e os meus outros colegas correndo na minha direção, para me abraçar. É engraçado, e até meio trágico, mas nada do que a escola se propõe a fixar permanentemente no interior da cabeça dos alunos parece ficar ali dentro por muito tempo. Eu, pelo menos, não sou capaz de relembrar uma única lição sequer, de nenhuma disciplina, de nenhuma das escolas pelas quais passei; não resta, na minha memória, nem o mais vago vestígio dos conteúdos que os professores se esforçaram tanto para ministrar. […]

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