Ensaio | Parêntese

Juliano Dupont: Amarcord

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Juliano Dupont: Amarcord Italo Calvino, no ensaio Autobiografia de um Espectador, reconhece que apenas com Amarcord a face cômica do fascismo havia sido revelada. Nos tons grotescos e kitsch do catolicismo pagão e carnavalizado de Fellini, os italianos finalmente encararam, como em um espelho, toda a humanidade do monstro. Tulio Kezich, na mais famosa biografia de Fellini (publicada pela nossa L&PM), concorda: “É curioso que o julgamento político mais severo de uma época errada nasça da inspiração de um artista claramente apolítico”. Fellini é o primeiro a demonstrar, através de uma caricatura, o clown em Mussolini, mais ou menos como Chaplin, décadas antes, havia feito com Hitler. Vincere (2009), de Marco Bellocchio, realiza um contraste entre imagens documentais e ficcionais do Duce. Em um comentário sobre o filme, Luis Fernando Verissimo observa que o Mussolini interpretado por um ator parece muito mais real do que o fotografado nos documentários de época. O filme de Bellocchio atesta, pela contraposição entre o documental e o encenado, a intuição felliniana de que a caricatura é o retrato mais realista possível de Mussolini – talvez de todos os políticos. Em outra crônica, antiga, Verissimo sustenta que o narcisismo de Fellini é o espelho da Itália. É uma opinião muito frequente. Prefiro a de Tarkovsky, que admirava em Fellini o amor pela humanidade. É sensível, nos filmes do diretor italiano, o afeto pelos personagens. Se for narcisismo, é o narcisismo de alguém que se multiplicou em muitos e abarca todos os outros. Um gigantesco “eu” em que todos se reconhecem, uma arte tão especular que o vasto mundo é um quarto de espelhos colossal. Alguns filmes de Fellini se assemelham a uma viagem LSD: uma dinamitação do ego, estilhaçando-se em miríades de outros eus. Narcisismo? Então é a egotrip mais populosa da história do cinema. (A relação entre o LSD e Fellini, e do seu encontro com Carlos Castañeda, não pôde ser filmada, mas encontra-se em Viagem a Tulum, adaptação aos quadrinhos de Milo Manara). Em Os Boas-Vidas (1953), acompanhamos o alter ego do diretor deixando a província no fim da adolescência, para aportar em Roma (1972), na primeira juventude, experimentando a cidade dionisíaca do pós-guerra. A Doce Vida (1960), apresenta o cronista observador e participante do hedonismo existencialista e desesperado no palco da cidade eterna. É a obra que encerra os anos 50 e inaugura os 60. Oito e Meio (1963) é o retrato do artista em crise – o mais inspirado filme sobre a falta de inspiração, como muitos já observaram. Amarcord (1973) marca o retorno à infância. Em uma província italiana dos anos 30, sem um protagonista, dezenas de personagens compõem um mural sociológico – Fellini é Bruegel em 24 quadros por segundo. O sublime e o baixo corporal, alta cultura e expressões populares – como o circo e os quadrinhos –, aspectos característicos da obra do cineasta, estão potencializados ao máximo em Amarcord. O diretor faz de tudo para esconder que a província retratada é Rimini, sua cidade natal. Rodado inteiramente em estúdio e […]

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Italo Calvino, no ensaio Autobiografia de um Espectador, reconhece que apenas com Amarcord a face cômica do fascismo havia sido revelada. Nos tons grotescos e kitsch do catolicismo pagão e carnavalizado de Fellini, os italianos finalmente encararam, como em um espelho, toda a humanidade do monstro. Tulio Kezich, na mais famosa biografia de Fellini (publicada pela nossa L&PM), concorda: “É curioso que o julgamento político mais severo de uma época errada nasça da inspiração de um artista claramente apolítico”. Fellini é o primeiro a demonstrar, através de uma caricatura, o clown em Mussolini, mais ou menos como Chaplin, décadas antes, havia feito com Hitler. Vincere (2009), de Marco Bellocchio, realiza um contraste entre imagens documentais e ficcionais do Duce. Em um comentário sobre o filme, Luis Fernando Verissimo observa que o Mussolini interpretado por um ator parece muito mais real do que o fotografado nos documentários de época. O filme de Bellocchio atesta, pela contraposição entre o documental e o encenado, a intuição felliniana de que a caricatura é o retrato mais realista possível de Mussolini – talvez de todos os políticos. Em outra crônica, antiga, Verissimo sustenta que o narcisismo de Fellini é o espelho da Itália. É uma opinião muito frequente. Prefiro a de Tarkovsky, que admirava em Fellini o amor pela humanidade. É sensível, nos filmes do diretor italiano, o afeto pelos personagens. Se for narcisismo, é o narcisismo de alguém que se multiplicou em muitos e abarca todos os outros. Um gigantesco “eu” em que todos se reconhecem, uma arte tão especular que o vasto mundo é um quarto de espelhos colossal. Alguns filmes de Fellini se assemelham a uma viagem LSD: uma dinamitação do ego, estilhaçando-se em miríades de outros eus. Narcisismo? Então é a egotrip mais populosa da história do cinema. (A relação entre o LSD e Fellini, e do seu encontro com Carlos Castañeda, não pôde ser filmada, mas encontra-se em Viagem a Tulum, adaptação aos quadrinhos de Milo Manara). Em Os Boas-Vidas (1953), acompanhamos o alter ego do diretor deixando a província no fim da adolescência, para aportar em Roma (1972), na primeira juventude, experimentando a cidade dionisíaca do pós-guerra. A Doce Vida (1960), apresenta o cronista observador e participante do hedonismo existencialista e desesperado no palco da cidade eterna. É a obra que encerra os anos 50 e inaugura os 60. Oito e Meio (1963) é o retrato do artista em crise – o mais inspirado filme sobre a falta de inspiração, como muitos já observaram. Amarcord (1973) marca o retorno à infância. Em uma província italiana dos anos 30, sem um protagonista, dezenas de personagens compõem um mural sociológico – Fellini é Bruegel em 24 quadros por segundo. O sublime e o baixo corporal, alta cultura e expressões populares – como o circo e os quadrinhos –, aspectos característicos da obra do cineasta, estão potencializados ao máximo em Amarcord. O diretor faz de tudo para esconder que a província retratada é Rimini, sua cidade natal. Rodado inteiramente em estúdio e […]

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