Memória

A epilepsia me fez conviver com a neurociência

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A epilepsia me fez conviver com a neurociência

Em julho de 1990, aos 28 anos de idade, fiz minha primeira viagem de avião. Acompanhado de meus pais, embarquei num voo da Varig para São Paulo, com o firme propósito de me submeter a uma neurocirurgia no Hospital de Clínicas da USP. Este tipo de cirurgia ainda era incipiente aqui no Rio Grande do Sul, mas já estava sendo realizada com sucesso há muito tempo no HC pela equipe do neurocirurgião Raul Marino Junior. No dia seguinte à nossa chegada na capital paulista, tratamos dos procedimentos burocráticos para a minha internação, e meus pais retornaram ao hotel onde estavam hospedados, nas proximidades do hospital. Nossa ideia inicial era de que a permanência em São Paulo seria relativamente curta, mas a estada acabou se prolongando. Permaneci internado no prédio da Clínica Psiquiátrica do HC, onde funcionava o Serviço de Neurocirurgia, no período entre julho e novembro daquele ano. O setor, formado por uma equipe multidisciplinar, atendia pacientes candidatos a neurocirurgias de epilepsia e da hipófise vindos de diversos lugares do país.

Em pessoas com epilepsia de lobo temporal, como a minha, as prováveis anormalidades na região do hipocampo nem sempre ficam evidentes nos eletroencefalogramas convencionais. O hipocampo é uma estrutura cerebral com formato de cavalo-marinho que atua para converter memória de curto prazo em memória de longo prazo. No meu caso, geralmente os exames mostravam resultados considerados “dentro da normalidade”, embora as crises de ausência (e, em menor número, as convulsões) continuassem acontecendo. No período da hospitalização, no entanto, essas crises haviam cessado, o que também colaborou para que a internação se prolongasse. Isso era explicável, em parte, pela diminuição de atividades e de fatores de estresses, os chamados “gatilhos” para as convulsões e ausências, o que fez com que a equipe médica buscasse induzir crises e, se possível, registrá-las. Como parte da estratégia para melhor identificar o foco da minha epilepsia, foram colocados dois eletrodos esfenoidais no interior do meu crânio, um em cada têmpora (no osso esfenoide), para que os eletroencefalogramas fossem mais precisos.

Lesões no lobo temporal podem gerar dificuldades de memória, com prejuízos maiores quanto mais recorrentes forem as crises. Uma lesão grave no hipocampo pode até impedir o armazenamento de novas memórias, deixando a pessoa com amnésia. A colocação desses dois eletrodos esfenoidais intracranianos foi feita em procedimento no centro cirúrgico, com anestesia local. Permaneci por vários dias com eles na cabeça, o que não era muito confortável, causava algumas dores, mas não era algo insuportável nem impedia minhas atividades normais, nem que eu circulasse livremente. Bastava que eu tivesse alguns cuidados como os de sempre mantê-los protegidos (tapados com curativos) e evitasse molhá-los, pois o fiozinho ao final de cada eletrodo ficava para fora do crânio, enrolado dentro do tapume que protegia cada têmpora. Como não era um procedimento muito usual, gerava certa curiosidade mesmo entre os profissionais do hospital. Para mim, no entanto, os eletrodos esfenoidais não eram novidade, pois já havia me submetido ao mesmo procedimento em internação anterior no Hospital de Clínicas de Porto Alegre.

Convulsões induzidas

Foi numa das sessões de testes neuropsicológicos, durante essa internação no HC da USP, que um dos gatilhos para a minha crise epilética foi acionado, e eu tive uma convulsão muito forte. Isso permitiu que a neuropsicóloga que me aplicava a testagem presenciasse tudo e pudesse fazer depois a descrição detalhada da crise para a equipe da Neurocirurgia. Esses testes de memória visavam avaliar minha memória declarativa (episódica e semântica), aquela que invocamos quando, na conversa diária, dizemos “eu lembro” ou “eu esqueci”. A memória episódica refere-se à recordação de eventos e experiências nas quais tomamos parte no passado (nossa biografia), enquanto a semântica diz respeito ao nosso conhecimento geral, tal como informações que guardamos sobre pessoas, lugares, mapas ou sobre um período da história que não vivemos. Os testes combinavam diversos estímulos: listas de palavras, sentenças, pares de palavras, histórias e números, apresentados uma única vez ou com repetições.

[Continua...]

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