Memória

Além de crises e convulsões, muita solidariedade

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Além de crises e convulsões, muita solidariedade

Todos os dias, no mesmo horário do final da tarde, eu ouvia aquela voz, vinda do andar de cima, chamar pela mãe em tom de súplica. Parecia ser de alguém em sofrimento. À noite, deitado na cama, no quarto compartilhado com outros dois pacientes, olhava intrigado aqueles tocos de madeira fincados em pequenos buracos quadrados no teto. Alguém da enfermaria me havia dito que eles corresponderiam aos pés da cama do quarto acima do nosso, mas nunca cheguei a subir àquele andar onde estavam os pacientes com doença mental. Fiquei internado naquela ala do Serviço de Neurocirurgia, no prédio da Clínica Psiquiátrica do Hospital de Clínicas da USP, em São Paulo, no segundo semestre de 1990. Juntar pacientes da Neurocirurgia e pessoas com doença mental no mesmo prédio, embora separados em pisos diferentes, fazia parte da ideia de criação do Instituto do Cérebro do HC. Além dos casos de epilepsias de difícil controle, como o meu, a Neurocirurgia reunia pessoas com disfunções da hipófise. Durante a internação, compartilhávamos também o banheiro, o refeitório, a sala de TV e outros recintos de uso coletivo, inclusive uma sala onde se podia ler, jogar ou conversar. Nos quatro meses em que fiquei lá, convivi com gente vinda de vários lugares do país, muitas delas com baixo nível de escolaridade, vivendo em condições precárias nos seus locais de origem e dependentes do SUS para se tratar.

O alongamento do tempo de internação me causou muita angústia e desgaste emocional. Eu me sentia vulnerável, mas ficava feliz ao saber que em Porto Alegre, onde nasci e moro até hoje, muita gente torcia à distância pelo meu sucesso e enviava mensagens carinhosas, inclusive pessoas que eu sequer conhecia pessoalmente. Eu confiava muito na equipe médica, mas era inevitável o estresse de estar em ambiente hospitalar. Numa época em que, no Brasil, ainda não existiam redes virtuais, telefones móveis e internet, as notícias de Porto Alegre me chegavam por cartas e pelos meus pais, que estavam hospedados em um hotel próximo ao HC. Eles me contavam, nos horários de visitação do hospital, as conversas telefônicas com a família e com os amigos. Acabei criando o hábito de usar uma das salas para escrever cartas aos familiares e à namorada, e notava que isso gerava certa curiosidade nos outros pacientes e no pessoal da enfermaria, já que não era algo muito comum ali.

O café da manhã era sempre servido no refeitório, e alguns atendentes ficavam em volta das mesas onde estávamos, prontos para socorrer aqueles que tivessem convulsões. O mesmo cuidado era adotado nos almoços e nos horários de visitação diária. Nas refeições, não usávamos garfos nem facas, apenas talheres não cortantes como colheres, medida de segurança para que ninguém se machucasse quando tivesse crise. Ficava a cargo dos atendentes a tarefa de cortar a nossa comida. No horário de visitação, os pacientes e seus familiares ocupavam as mesas e cadeiras do refeitório para conversar. Eu era um dos poucos internados que recebiam visitas. Meus pais me visitavam todos os dias e, mesmo quando ficou evidente que a minha internação se estenderia além do previsto, fizeram questão de permanecer em São Paulo acompanhando tudo. Como as minhas crises tinham cessado neste período, a equipe médica costumava me liberar para sair do hospital nos finais de semana e passear com meus pais, retornando ao hospital domingo à noite. E esses passeios acabaram sendo fundamentais para minha saúde mental. Como pudemos constatar agora, neste período de pandemia por covid-19, o confinamento muito longo é capaz de nos desestruturar emocionalmente. Durante a hospitalização, alternei sentimentos de paciência e resignação com outros de depressão, desânimo e irritação. Às vezes ia até a sala da assistente social só para conversar e desabafar. Numa dessas conversas ela me convidou para acompanhá-la em suas visitas a outros setores do hospital, onde ela vendia produtos cosméticos para os funcionários como forma de complementar renda. Eram saídas curtas e rápidas, e eu estava sem ter crises, o que diminuía os riscos. Fiz estas escapadas algumas vezes e, apesar da situação um tanto insólita – em cada sala que entrávamos, ela me apresentava às pessoas -, valia como pretexto para desentocar.

Um inusitado protesto

[Continua...]

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