Memória

O orgulho do papai

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O orgulho do papai

É estranho ficar buscando lembranças na memória de um tempo em que, teoricamente, tudo era melhor. Quando escuto de amigos que na nossa época tudo era permitido, soa como uma coisa boa, como se uma liberdade absurda tivesse tomado conta das nossas vidas. Afinal de contas, havia acabado a ditadura! Então, viva a liberdade.

A questão pra mim nunca foi política, mas social. Nossa tão sonhada liberdade era um embuste que alguns caras levaram a ferro e fogo, mas no âmago da questão o Brasil nunca deixou de ser um país extremista em seus desejos, violento em suas vontades e absolutamente preconceituoso.

Ao mesmo tempo que se lutava por direitos trabalhistas e se levantava a bandeira da volta da democracia, se ignorava a exposição dos corpos de mulheres e crianças. 

Revistas adultas e programas de tv como, “Domingo Legal” e “Domingão do Faustão” traziam a sexualidade desenfreada pra casa de milhares de brasileiros todos os domingos. 

Na música, a sexualidade que se cobra tanto do funk carioca nos dias atuais, nos anos noventa era expressado pelo axé da Bahia, com grupos como Gera Samba e o seu famoso “tchan” ou “Na boquinha da garrafa”, letras eróticas e de duplo sentido, como quase tudo no Brasil.

O Ministério do Turismo, naquela época, convidava os estrangeiros a conhecerem o nosso paraíso tropical com “as maravilhosas mulatas”; corpos expostos em cartazes traziam dólares ao país e tornaram a exploração sexual infantil um hábito comum em alguns Estados. 

O machismo, que nunca foi velado, agora tinha duas vertentes, a exploração do sexo e o ódio dos machos rejeitados.

No Brasil não existiam leis como Maria da Penha, e aqui machos defendiam sua honra matando suas companheiras. 

Nos tribunais essa prática era aceita como argumento de defesa, e muito assassino conseguiu se livrar da cadeia por conta disso. Cresci sob a batuta da minha mãe, fui criado pra não depender de ninguém e respeitar as mulheres. Por conta de tudo que vi minha mãe passar na vida, jamais admiti violência contra mulheres. 

Mas o que me incomodava era perceber que os bacanas sempre davam um jeito de se livrar das merdas que faziam, e no Garagem Hermética não era diferente. O bar sempre teve muito movimento de mulheres. Não eram aquelas mulheres sexualizadas das revistas ou as bundudas da tv, mas eram mulheres extremamente atraentes e sexys, mais cultas e muito mais inteligentes que os caras que frequentavam o lugar.

Entre elas, duas amigas inseparáveis andavam pra cima e pra baixo. Dividiam becks e cevas, eram mulheres magras, altas, maquiadas e atraentes. Eram conhecidas no bar e respeitadas por todos até o dia que um idiota cruzou o caminho delas.

Naquela época era bem comum as pessoas circularem pelo bairro, de um bar pra outro. Havia o Megazine, o Elô e o Circus, mas o principal deles era o Garagem. O bar fechava tarde e tinha uma boa pista de dança. Às vezes dar essa circulada era bom; eu só não fazia porque estava sempre trabalhando. 

Uma noite as gurias foram até um outro bar, e na volta um sujeito, saindo do Bar Líder, um bar de playboys que ficava na esquina da Barros com a Independência, puxou assunto. Queria fogo. 

As gurias emprestaram o isqueiro e isso foi o suficiente pra que ele entendesse que elas queriam transar com ele. Lógico que esse pensamento foi somente do idiota. 

Então começou uma sessão de provocações e perseguições até o momento que elas desceram até o Garagem, subiram as escadas correndo e me pediram ajuda: “Cesinha, tem um tarado tentando agarrar a gente…”, “A gente tá fugindo desse doente e ele tá vindo aqui…” “Tá vindo, é? Beleza, entrem.” 

As gurias entraram e em menos de um minutos chegou o cara. Sujeito típico, cabeludo com rabo de cavalo, camisa pra dentro das calças e colete de lã, calça jeans e sapatênis. Subiu as escadas ofegante, ofendido, indignado com a recusa das meninas. 

Tentou passar por mim: “Opa, calma aí irmão, não pode entrar.” “Quanto é pra entrar nessa merda, quero encontrar duas vadias que cuspiram na minha cara…” “Olha só, não vai rolar de entrar, acho que tu está alterado e deveria ir embora…” “Quanto é pra entrar nessa espelunca?” “Mano, não vai rolar, melhor tu descer.” “Quem é tu pra me barrar, neguinho de merda…” “Olha só, meu irmão, tu tá meio alterado e tá viajando nas minas, melhor descer.” “Quê? Que meu irmão, tu acha que vou ser irmão de um porteiro de merda, seu filho da put…”. 

(Mano, uma coisa nunca mudei na vida; se falar da dona Tereza, vai ficar ruim pro teu lado). Estava dois degraus acima dele, foi o suficiente pra usar a sola do pé pra jogá-lo da escada. Fiquei cego, desci e dei dois socos na cara do sujeito, que não reagiu. Machistas geralmente são assim, saiu correndo dizendo: “Tu vai me pagar, seu desgraçado…”.

A festa continuou tranquilamente. Já estava quase amanhecendo, estava no portão me despedindo das pessoas quando um carro grande encostou na frente do bar, as portas se abriram e uma voz familiar disse: “É esse aí, pai! Esse merda que me bateu.” Não estava sozinho, alguns clientes ainda estavam saindo do Garagem, um homem de cabelos brancos desceu com uma pistola na mão apontando pra minha cara: “Tu bateu no meu filho, cara? Eu sou delegado da Polícia Federal, quem tu acha que é pra bater no meu filho?” 

Por algum motivo que até hoje não sei, fiquei de sangue frio e respondi: “Sou filho de policial também, mas antes que aconteça alguma coisa queria saber se ele te falou por que foi barrado de entrar aqui no bar”. “O que meu filho fez?”, o pai do ‘machinho do papai’ ficou me olhando, então terminei: “Ele foi barrado porque assediou duas clientes na rua, que entraram aqui pedindo ajuda, tentei impedir que ele criasse tumulto e fui ofendido…” “Meu filho não fez isso, seu cretino.” Foi nesse momento que as gurias que ainda estavam no bar desceram e confirmaram. Diante da palavra delas, duas mulheres brancas, o homem baixou a arma: “Rafael, não foi isso que tu me disse, seu merda, mais uma vez tu me faz passar um papelão, entra nesse carro!”, “Mas pai!” “Entra nesse carro, agora!”.

Os dois homens entraram no carro e partiram em alta velocidade. Desculpa pras gurias ou pra mim, pra quê? São homens brancos, aqueles que defendem a teoria machista de que em time que está ganhando não se mexe. 

Como se nada tivesse acontecido, as pessoas foram se despedindo e seguindo suas vidas, mas pra mim ficou a lembrança da primeira vez que colocaram uma arma na minha cara naquele que parecia um lugar tão tranquilo, onde a realidade parecia tão, tão, tão distante.


Antonio Padeiro – Cria da Vila Cerne, subúrbio da grande Porto Alegre. Ganhou o apelido de Padeiro nos tempos em que vendia pão na vila que morava. Se aventurou no mundo da arte mesmo sem saber qual era o seu papel. Passou pela música, teatro, cinema e televisão, mas por gostar de ler e contar histórias terminou se envolvendo com a literatura. Hoje, graduado em Letras, divide seu tempo entre suas duas paixões: a escrita e os documentários. Duas belas formas de contar uma história.

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