Memória

O palco

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O palco

Uma noite qualquer estava no ônibus indo trabalhar e tudo que mais queria era encontrar as pessoas legais e divertidas que frequentavam o bar. Os finais de semana eram muito parecidos em alguns aspectos. Tinha show, gente na fila, geralmente amigos próximos e parentes pra assistir ao show, mas também tinha a galera que tava pelo “dance”. Esses esperavam ali na frente. Bebiam um Frei Damião, no inverno, ou uma Kaiser, no verão. Ainda tinha o pessoal que era amigo dos donos, os que eram meus amigos, os que sempre tinham uma boa desculpa pra entrar, como o Formigão, e as malas, né.  Pessoas perdidas que encheram a cara numa festa e quiseram esticar a noite.

No ônibus havia dois porteiros residenciais que também, assim como eu, estavam indo trabalhar, um homem mais velho com os cabelos brancos e o outro mais grisalho. Conversavam sobre coisas que nunca haviam feito. 

Escutava meu walkman, mas a conversa começou a chamar minha atenção. O mais velho disse: “Hoje é aniversário da minha sobrinha, lá em Picada Café, conhece pra lá?” “Picada Café, nunca ouvi falar, fica aqui perto?” “Bah, na real não sei, nunca saí de Porto Alegre.” “Mas tu mora em Canoas!”. Foi assim que comecei a prestar atenção no papo deles. 

“Ah, tu entendeu, né?” “Claro, né, tava folgando na tua, também nunca saí da cidade. Também não tenho muito o que fazer, tenho uma folga por semana e quando chego em casa quero só dormir, ainda bem que a Rose segura todas lá em casa…” “É, lá em casa não é diferente, se não fosse a Márcia eu tava fudido…” “Bah, a Márcia é uma santa, tu tem quatro filhos, a Rose já teria me largado!” 

De repente o homem que que iria pra Picada Café ficou reflexivo, levantou a sobrancelha, suspirou e disse: “Pois é, a Rose queria ir, é a única sobrinha que ela tem, me sinto mal de não poder ir, mas não posso faltar o serviço, tu sabe que eles arrancam até ‘os fígados’ da gente.” “Mas por que não meteu um atestado, nesses caras? Quando a gente precisa eles não tão nem aí, sempre é a vontade deles, nunca a nossa…” “É a vida que a gente escolheu, né…” “Não foi assim que imaginei a minha vida, mas o que vou fazer, já tenho sessenta e três anos, me resta esperar que o fim da minha vida tenha alguma alegria, como um churrasco de domingo…” “Olha aí, eu nem sei o que queria fazer da vida, quando me dei conta já estava trabalhando naquele prédio, há vinte e dois anos, conheço todos os moradores, não tenho muito o que reclamar, eles são legais, sempre levam um agradinho pra mim! Amanhã é domingo, vamo tacale um osso no espeto?” “Amanhã não posso, fiquei de ajudar a Rose a limpar o pátio, mas domingo que vem vamos certo!” “Ah, domingo que vem vou ajudar o seu Ramalho a pintar uma parede, preciso fazer um extra, né! A Márcia quer conhecer a praia, vou ter que ir né…”, Que praia?” “Pensei no Magistério, dizem que é linda demais.”, “Quando tu vai?”, “Um dia desses…”

Chegou minha parada, desci. Enquanto caminhava pela rua fiquei imaginando mil coisas. Era novo, mas já era porteiro, então pensei: “Tá tudo bem. A minha portaria é bem mais animada que a deles, mas eles ganham uns regalos dos moradores, mas o que isso importa? Eles são velhos, já deveriam estar aposentados, sei lá”. 

“Os caras nunca saíram da cidade, eu também não… Puta merda, tô na mesma que eles, só que não faço bico. Mas a portaria do Garagem é um bico. Hum, melhor arrumar outro emprego, olha aí, já tô pensando que nem os caras. Será que minha vida vai ser igual à deles? E [or que não seria, viemos do mesmo lugar… Não quero pensar nisso.”

Cheguei na frente do bar, o pessoal da banda não conseguiu passar o som de tarde, como era comum, deixaram pra passar o som uma hora antes do show, o Wilson tava puto da cara, mas ele tava sempre meio puto da cara. As bandas não ajudavam muito, existia uma aura “rock’n’roll” chata pra caralho. Às vezes a sensação que tinha era que todo mundo queria ser ‘rock star’, mas ninguém tava muito a fim de aprender a tocar direito. 

Muito glamour e pouco talento, por isso nunca cito nomes de bandas ou de certos músicos como o Tartaruga, nunca vi um baterista tão cheio de marra. Ele até tocava bem, mas aquela boca aberta antecipando o golpe da baqueta na bateria me deixava enjoado. 

Fora isso, o repertório da banda dele era poser pra caralho, pra piorar a plateia era composta de namoradas, duas tias, um tio bebum que não conseguia bater palma no tempo da música e a prima do baixista que nem entrou, ficou ali na portaria conversando comigo. Um pouco antes de terminar a última música o ruivo foi na porta e me chamou, queria que eu batesse palmas também, porque tinha muito pouca gente e o guitarrista era amigo dele.

Foi deprimente, a porta do bar fechada, uma baita fila lá fora e a gente torcendo pra acabar logo, e aí o vocalista diz no microfone: “Vocês querem o bis?” Olha, eu não teria perguntado. Teve um silêncio constrangedor e então a mãe do baixista gritou “Sim!”, e a prima dele falou pra mim “Bah, a tia é foda.” Tocaram a última música com direito a solo de cada integrante. Só isso fez o tempo demorar horas pra passar. Terminou o show, o baterista jogou as baquetas pra plateia, que não prestou atenção e as baquetas caíram no chão. 

Então todos os quatro componentes da banda ficaram alinhados no palco, se deram as mãos e curvaram os corpos pra frente. Quando eles saíram do palco pela portinha lateral que dava pro corredor que levava até o camarim, o tio bebum falou pra sobrinha: “Até que enfim…” Rimos.

Aí o bar enchia, as pessoas dançavam, bebiam e amavam muito, a fila do banheiro era enorme, mas a alegria era garantida, as noites eram parecidas, amigos entrando e saindo. Gente chegando e gente saindo, drogas nunca foram problema pra minha geração, eram poucas e baratas. Tinha uma galera que vinha da Osvaldo que era muito minha amiga, esses eu deixava entrar, mas eles faziam uma coisa muito engraçada, pelo menos pra mim: dormiam enfileirados, amigos se protegendo, saca?

O palco depois do show ficava vazio e escuro, as luzes da pista eram fracas e o som era alto. Pessoal ia bebendo, bebendo, e quem não era do pó ou não tinha como ir embora, por causa do ônibus, que só tinha de manhã, terminava dormindo ali mesmo. Encostadinho num canto do palco, alguns dormiam pesado, uns se mijavam, alguns transavam, tinha de tudo. O palco era o melhor lugar do mundo.

O Ruivo, o Murruga e o Leo odiavam aquilo, aqueles eram os mesmos que não pagavam entrada, mas apesar de terem que fazer vaquinha pra beber bebiam. Pra mim eles eram importantes e foda-se o que os donos pensavam. Eles tinham amigos malas e eu não podia fazer nada, então deixa os meus amigos dormirem até fechar o bar.

Sei que aqueles porteiros tiveram uma vida dura, mas entendo que a vida é feita de escolhas e oportunidades, tanto pra eles quanto pros músicos que não estudaram o suficiente, quanto pros amigos e parentes que tiveram que ver o show. Até pros meus os amigos que tiveram que dormir no palco, todos tinham uma escolha, mas aos porteiros acredito que tenha faltado uma oportunidade melhor ou não, c’est la vie. 

O mais importante é ter alguém que em algum momento da vida acenda uma luz do palco e nos diga: “Vamo lá, vamo lá, vamo lá, gente!”

Essa era a minha função, mas o palco era deles.

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