Memória

Paralelo 30, 40, 50, 60, 70, 80, 90, 00, 10, 20…

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Paralelo 30, 40, 50, 60, 70, 80, 90, 00, 10, 20… Álbum foi lançado em 1978 (Reprodução)

Em janeiro de 1978, ao saber que teríamos em Porto Alegre uma gravadora, e que meu amigo Geraldo Flach seria seu diretor-artístico, fui até ele com uma proposta: a gravação de um disco com seis compositores gaúchos que começavam a se destacar. Em ordem alfabética, Bebeto Alves, Carlinhos Hartlieb, Cláudio Vera Cruz, Nando D’Ávila, Nelson Coelho de Castro e Raul Ellwanger. Geraldo topou na hora. O LP Paralelo 30 seria o primeiro gravado nos novos estúdios da ISAEC, inaugurando a mesa Audio Design de 16 canais recém-chegada da Alemanha. 

Vale contextualizar.

Uma mesa de gravação com 16 canais só existia em três ou quatro estúdios das filiais das gravadoras multinacionais em São Paulo e no Rio de Janeiro. Era uma coisa de louco, um espanto mesmo aquele equipamento na capital gaúcha. Com sede em São Leopoldo, a ISAEC (Instituição Sinodal de Assistência, Educação e Cultura) mantinha em Porto Alegre um estúdio de dois canais, usado para a gravação de programas religiosos da Comunidade Evangélica de Confissão Luterana e, eventualmente, alugado para grupos e duplas regionalistas gravarem seus discos.

Foi para esse estúdio que a ISAEC encaminhou a mesa recebida como doação de organizações luteranas alemãs. O que fazer com equipamento de tal porte? Surgiu a ideia de criar no Sul a primeira gravadora comercial desde o fim da Casa A Electrica, nos primeiros anos do século 20. Chamar Geraldo Flach para dirigi-la foi natural. Além do sobrenome alemão e da formação de engenheiro eletrônico, era músico e conceituado criador e produtor de jingles publicitários. Os técnicos do estúdio tiveram que aprender na marra, pois passar de dois para 16 canais não era moleza. 

Álbum foi lançado em 1978 (Reprodução)

Na organização da gravadora foram criados selos para os diferentes estilos/gêneros – popular, MPB, regional, erudito. O primeiro lançamento, gravado ainda em dois canais foi O Choro é Livre, do flautista Plauto Cruz. Depois viria o Paralelo 30. A ideia que levei a Geraldo era reunir músicos que de alguma forma estivessem envolvidos com aquele momento particular do Rio Grande do Sul, em que se mesclavam a força da MPB, o pop da era Beatles já metabolizado e a nova música regional revelada pela Califórnia da Canção Nativa a partir de 1971.

Carlinhos Hartlieb, por exemplo, já havia apresentado o show Sonho Campeiro, enquanto Bebeto Nunes Alves (só passaria a ser apenas Bebeto Alves no primeiro álbum solo, em 1981) experimentava milongas da memória de sua Uruguaiana e Nando D’Avila se inspirava na República Cisplatina. Chegado havia pouco do exílio, Raul Ellwanger trazia muita América Latina em seu trabalho e, ainda no fim dos anos 1960, fora o primeiro compositor urbano a apresentar em um festival de MPB uma temática local com a música O Gaúcho

Mais roqueiro de todos, na origem guitarrista de bandas como Som4, Cláudio Vera Cruz também andava “campereando” musicalmente. E a música personalíssima de Nelson Coelho de Castro era o próprio espírito da juventude porto-alegrense dos bairros de classe média. Duas ou três reuniões ajudaram a montar o time de instrumentistas e definiu-se que Geraldo faria os arranjos de quem já não os tivesse, também participando como tecladista. As gravações começaram em fevereiro de 1978 e foram até maio, com o estúdio comandado por Sepé Tiaraju de lós Santos.

Mas não tínhamos um título para resumir o, digamos, conteúdo do LP. Depois de ouvir tudo pronto de novo, Geraldo botou na mesa: que tal Paralelo 30? Andava-se falando muito nessa linha imaginária que atravessa o Rio Grande na altura de Porto Alegre. Tinha uma história mística. (“Coisas de magia, sei lá”, cantariam depois Kleiton & Kledir.) Sim!  Geraldo acertara na mosca: Paralelo 30! Chamamos o super Leonid “Uda” Streliaev para fazer as fotos e o artista plástico/gráfico Gerson Scherer para desenhar a capa (ele já criara a bela capa do disco de Plauto).

Logo que o disco chegou às rádios, a andina canção de amor Maria da Paz, de Carlinhos Hartlieb, despontou como a mais tocada. Ganhou até clipe na parte gaúcha do programa Fantástico. Na continuação, uma a uma das faixas foram marcando sua personalidade e conquistando admiradores. A milonga Que se Pasa?, de Bebeto Alves, que abre o lado A do LP, tornou-se um clássico da obra dele. O samba Te Procuro Lá, parceria de Raul Ellwanger com Ferreira Gullar, que abre o lado B, segue nos shows dele e foi regravada recentemente em disco com Daniel Wolff.

Rasa Calamidade, última faixa do disco, também ficou um clássico na poderosa obra de Nelson Coelho de Castro. Enfim, são 12 canções do tipo inesquecíveis para quem viveu aquele tempo. Sem Rei e Ruínas de um Sonho (ambas de Claudio Vera Cruz e Paulinho Buffara), Água Benta e Como Relâmpago no Céu (ambas de Nando d’Ávila), Águias (Nelson), Fronteiras (Raul), De Banquetes e de Jantares (Bebeto) e Admirado por Todos (Carlinhos). Nunca deixo de me emocionar ao ouvir o Paralelo 30. A ideia foi minha, eu sei. Mas só a ideia.

A ISAEC? Durou pouco, no máximo uns dois anos mais, não tinha como se adaptar ao ambiente de indústrias discográficas predadoras. 

Carlinhos morreu, Nando morreu, e eram talvez as almas mais sensíveis desta turma. Meu irmão Geraldo também se foi.

Os demais seguem na batalha, que não está fácil. 

Juarez Fonseca é jornalista cultural, especialmente dedicado ao universo da música popular, em atuação desde 1970. Atualmente, prepara a publicação de uma coletânea de suas entrevistas. 

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