Memória

Quando as coisas ganham nomes, para libertar ou estigmatizar

Change Size Text
Quando as coisas ganham nomes, para libertar ou estigmatizar

“Cruza, Gardenal!”, grita o garoto. Os olhares da gurizada se voltam, então, para o ponteiro direito, o Antônio, que avança com a bola nos pés pela lateral do campinho. O Antônio era um guri querido e craque no futebol, mas o apelido Gardenal o definia no colégio. Ele era o cara que tinha “disritmia”, esta palavra terrível com que se referiam, antigamente, à epilepsia. Gardenal, como se sabe, é o nome de um medicamento anticonvulsivante. Fiz toda a minha vida escolar no mesmo colégio, o Anchieta, dos 6 aos 17 anos de idade, entre 1968 e 1979. Até os meus 11 ou 12 anos, eu era o Carlito na escola, um tratamento carinhoso que sempre gostei. Mas ainda na pré-adolescência, passei a ser o “Soneca”, rótulo que me acompanhou até o final do segundo grau (atual ensino médio). Bastou alguém falar que eu estava sempre com “cara de sono”, tal como o anão da história da Branca de Neve, e o novo apelido vingou entre os colegas. Até se poderia alegar que Soneca não é tão feio assim, mas é claro que havia um tom pejorativo e um rótulo embutido nisso: o de que eu era sonolento, devagar. Restou fazer o “jogo do contente”, fingir que não me importava, mas a brincadeira me soou agressiva. Como todo apelido caricato, o “Soneca”, de certa forma, procurava me definir para aquele grupo com uma marca depreciativa, estigmatizante.

Pouco tempo antes, as coisas tinham ganhado nome para mim. Quando relatei à minha mãe sobre os estranhamentos que sentia, ela logo percebeu do que se tratava. Levado ao neurologista, ouvi o médico pronunciar as palavras “epilepsia” e “epilético” para se referir ao que para mim, até então, eram sensações esquisitas que foram se tornando cada vez mais incômodas e frequentes. Ouvi aquelas duas palavras assustadoras e logo veio à minha lembrança a imagem de alguém caído e se contorcendo no chão, a baba escorrendo. Já tinha visto uma pessoa tendo convulsão na rua. A partir daquela consulta médica, a palavra “epilepsia” entrou na minha vida e, com ela, os tratamentos com medicamentos anticonvulsivantes. Mas dar nome ao que eu sentia também causou certo alívio. A sensação misteriosa, enfim, tinha nome e tratamento.

Com os medicamentos receitados pelo neurologista, apareceram também os efeitos colaterais e as olheiras profundas que faziam a minha “cara de sono”. Além da sonolência, eu também costumava sentir mais lentidão e tremura nas mãos, e a minha dicção às vezes ficava mais difícil de entender, pois a fala ficava mais enrolada. Depois das crises, era comum ter alguma confusão mental, falta de coordenação motora, desconcentração e desorientação. Mas esses transtornos não apareciam, necessariamente, todos juntos. Na sexta série, no colégio, vieram as primeiras notas ruins, e eu fiquei em aulas de recuperação em Matemática, o que até então nunca tinha ocorrido e me causou certo abatimento, como um primeiro fracasso escolar. “Ele está mais lento”, disse o professor para minha mãe, como se percebesse alguma mudança em mim. Dali em diante, até o final do ensino médio, fui aprendendo a lidar com as crises de ausência, a sonolência, a lentidão maior para fazer certas tarefas e ter alguns cuidados como o de não dormir poucas horas.

O primeiro indício de que eu tinha algum problema neurológico foi percebido aos 2 anos de idade, quando o meu padrinho médico me viu ficar parado e torcer a cabeça levemente para o lado. Depois de um período curto de tratamento até por volta dos 6 anos, as crises pareciam ter cessado; o neurologista, porém, alertou minha mãe de que elas poderiam voltar na adolescência. Mas acho que nunca deixei de ter ausências na infância. Na idade entre os 6 e os 10 anos, liberado de tratamento pelo médico, eu ainda não tinha consciência sobre elas, já que ninguém notava as crises e eu mesmo não sabia interpretar aquilo como algo anormal. As sensações estranhas que surgiam de repente ainda não tinham ganho, para mim, os nomes de “aura” e “crises de ausência”. Não tinha noção de que aquele sorriso se abrindo no meu rosto (automatismo), o olhar fixo e a claridade muito intensa, parecendo um sonho ruim, poderiam ser algo diferente das experiências normais das outras pessoas.

Epilepsia refratária

[Continua...]

O acesso a esse conteúdo é exclusivo aos assinantes premium do Matinal. É nossa retribuição aos que nos ajudam a colocar em prática nossa missão: fazer jornalismo e contar as histórias de Porto Alegre e do RS.

 

 
 
 

 

 

 

 
 
 

 

 
conteúdo exclusivo
Revista
Parêntese


A revista digital Parêntese, produzida pela equipe do Matinal e por colaboradores, traz jornalismo e boas histórias em formato de fotos, ensaios, crônicas, entrevistas.

Quer ter acesso ao conteúdo exclusivo?

Assine o Premium

Você também pode experimentar nossas newsletters por 15 dias!

Experimente grátis as newsletters do Grupo Matinal!

ASSINE O PLANO ANUAL E GANHE UM EXEMPLAR DA PARÊNTESE TRI 1
ASSINE O PLANO ANUAL E GANHE UM EXEMPLAR DA PARÊNTESE TRI 1

Esqueceu sua senha?

ASSINE E GANHE UMA EDIÇÃO HISTÓRICA DA REVISTA PARÊNTESE.
ASSINE E GANHE UMA EDIÇÃO HISTÓRICA DA REVISTA PARÊNTESE.