Memórias emocionadas

As raízes plantadas pelo Afro-Sul Odomodê

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As raízes plantadas pelo Afro-Sul Odomodê Bieta passou parte da infância e adolescência no Odomodê (Foto: Arquivo pessoal)

Há 20 anos no Rio de Janeiro, DJ e estilista porto-alegrense relembra sua formação no Instituto Sociocultural Afro-Sul Odomodê, referência de cultura na Capital

Eu tinha galhos, flores e frutos. Veio a pandemia e cortaram o meu tronco, não pude mais expandir. O que eu tenho agora são as minhas raízes, e elas têm muito a ver com o Afro-Sul. Com elas estou me refazendo, me reconstruindo artisticamente nesse caos pandêmico para poder continuar a viver de arte e cultura, o que já era difícil antes da pandemia.

Eu entrei lá porque eu repeti de ano duas vezes na escola, na 5a série. Meus pais ficaram preocupados e queriam entender o que estava acontecendo. E é lógico que foi por conta do racismo, de colegas e de professores, que não me potencializavam, que invisibilizavam minha pessoa. Me tiraram dessa escola, que era particular, e me colocaram em uma pública, a Escola Estadual de Ensino Fundamental Otávio Mangabeira. Lá eu me encontrei porque tinha um monte de gente igual a mim. Fui presidente do Grêmio, e a diretora, Marcia Terra, me deixava colocar música no intervalo. Sempre conto essa história para quem pergunta desde quando eu sou DJ. 

Foi nesse momento também que eu entrei no Afro-Sul, onde eu aprendi a nos valorizar. Porque a sociedade nunca nos valorizou. Simples assim. Foi lá que me ensinaram a viver dentro de uma sociedade racista. Eu já recebia algumas ferramentas em casa, principalmente na questão estética, com minha mãe e meu pai. Eu usava o cabelo quadradinho, e quando alguém fazia algum comentário, eu dizia que a pessoa não entendia nada de moda, que meu cabelo era igual ao da Grace Jones – e as pessoas nem sabiam quem era Grace Jones. No Afro-Sul eu pude ampliar o entendimento de quem eu era dentro da sociedade.

Por meio da arte, aprendi referências. Eu recebia informação de música, dança, história. A Iara (Iara Deodoro, coreógrafa e uma das fundadoras do Instituto Sociocultural Afro-Sul Odomodê) apresentava pra gente o que significava cada coreografia, cada dança, cada música, as roupas que a gente mesmo fazia. E para além da consciência humana, um dos maiores ensinamentos que tive é o entendimento de um palco e sua estética. Já a escola não me trouxe nada, nada além de traumas. Trouxe amigos, claro. Mas como instituição? Zero. E acredito que é assim para tantas outras crianças negras, por isso há tantas perdidas por aí. Diferente de vocês, brancos, a gente não tem referências históricas. Nossos heróis, quem são? Zumbi? Mal e porcamente você sabe de Dandara. Luis Gama ninguém fala. 

Iara Deodoro

A coreógrafa Iara Deodoro é uma das fundadoras do centro cultural (Foto: Facebook Afro-Sul Odomodê)

Iara é uma força maior, ancestral. Com a metodologia que ela criou, conseguiu potencializar gerações. Ela tem uma importância enorme para a sociedade gaúcha, em especial para Porto Alegre. Uma importância que o estado não tem noção. Até porque o estado nunca se interessou por isso. Aliás, ela cumpre um papel que o estado deveria cumprir. Esse papel de reconhecimento, de reparação histórica, de valorização. Porque senão é a gente a se valorizar, ninguém vai valorizar a gente, pô. É simples assim. Isso é muito forte, muito potente. É uma pena que não é todo mundo que tem esse acesso. Por isso eu lamento esse estado que não faz nada, porque ele tem a possibilidade de atingir várias pessoas. A Iara é uma só.

Estado racista

Para mim é sempre mais doloroso sofrer racismo no Rio Grande do Sul, por ser o meu lugar, o lugar de onde eu vim. Minha relação com o estado é uma relação familiar, eu vivo dentro de uma bolha. É muito difícil para mim porque eu tenho consciência, eu sei onde o racismo está. Tem gente que não tem essa consciência e as coisas passam batido e tá tudo bem, tá tudo certo. Comigo não. Mas cada lugar tem suas formas específicas de racismo. Aqui no Rio de Janeiro é mais escancarado. Você tá na praia, tá todo mundo junto. Mas da praia de Ipanema, você vê o Vidigal, tá na tua cara a desigualdade social, o racismo.

Um lugar pra onde tenho ido e que é uma libertação é Salvador. Me sinto muito mais livre lá, porque a maioria das pessoas são como eu. É o contrário do Rio Grande do Sul. Em Porto Alegre, é um pouco mais velado, as pessoas estão separadas. Eu tive a oportunidade de crescer com os meus. Eu não ia lá para a balada no Moinhos de Vento. Eu ia pro samba, pra Saldanha. Pra quê eu vou pro Moinhos de Vento? Pra ser maltratada? Ser olhada de cima abaixo? Talvez eu só não seja maltratada porque o segurança pode ser amigo de um amigo. Mas olha o tipo de estratégia que a gente tem quer!

Sankofa

Logo do Afro-Sul, desenhado pelo pai de Bieta

O Afro-Sul foi um grande aprendizado para meu pai e minha mãe também, José Carlos e Marina Rodrigues. Eles súper se engajaram comigo. Minha mãe fazia as minhas roupas, meu pai levava a gente para cima e para baixo nos ensaios, nas apresentações. A logomarca do Afro-Sul foi desenhada pelo meu pai. A imagem foi feita a partir de uma foto do final de uma coreografia, que se chama Aláfia. É uma saudação a Oxalá, pai maior dentro da nossa filosofia africana. Tenho essa imagem tatuada.

Fiquei no grupo até os 17 anos de idade, praticamente toda minha formação como pessoa foi lá mesmo. Tô aqui no Rio de Janeiro há uns 20 anos, para onde vim estudar moda. Percebo que as coisas que eu aprendi no sul são raízes, são bases para eu continuar desenvolvendo o que eu tiver que desenvolver em qualquer lugar do mundo. 

Eu trabalho com artes integradas. Sou estilista, tenho minha marca, de alta costura, que hoje está parada porque a música exige dedicação total. Eu trabalhava com corset, a partir de referências não só africanas mas também do Sul, porque as prendas usam essa peça também, o espartilho. Adaptei para nós, com os tecidos africanos, procurando a história dos corsets na África. Em algumas tribos se usa essa estrutura dura, e a partir dela é possível saber a idade da pessoa, se ela está disponível pra casar, se virou mocinha, tem vários significados…

Bieta tem tatuados os mapas do Brasil e da África e o logo do Odomodê (Acervo pessoal)

Mas, como eu disse, a música tomou conta. Na verdade, ela sempre esteve presente. Me considero uma DJ performer. Ali no palco, que me é familiar por conta do Afro-Sul, eu posso potencializar artistas invisibilizados. As músicas que eu toco não tocam em rádio, procuro trazer coisas que escutava na minha infância, no quintal da minha avó, como Olodum, Ilê Aiyê, Itamar Assunção, Fela Kuti. É uma das minhas missões.

Procuro sempre fazer o sankofa: retornar pra compartilhar o que aprendo fora do Estado. Eu estive no primeiro Fashion Black em Porto Alegre. E já fiz vários eventos no Odomodê, como o Baile Charme Madureira e o encontro de saraus, com o Sopapo Poético e o Sarau Preto no Rio.

A mulher preta

Meu nome é Bieta mesmo. Sim, tem história, tudo tem história. Era o apelido de uma tia-avó da minha mãe, a Marieta. Uma querida, mulher maravilhosa. Quando meu pai conheceu a tia Bieta, disse à minha mãe que, se um dia eles tivessem uma filha, ela se chamaria Bieta. E assim foi. Quando eu tinha uns 12 anos, uma historiadora amiga da minha mãe descobriu que “bieta” era um apelido pejorativo que os italianos davam para escravas amas de leite. Daí minha mãe já acha que a mãe da Bieta foi uma bieta, e talvez a tia Bieta tenha sido também. E a gente tá aí ressignificando esse nome e esses valores de alimentação, educação, poder feminino e luta da mulher preta. Ressignificando o cuidado, o amor e o afeto que a gente dá para as pessoas mesmo quando elas nos desumanizam.

Nóis por nóis

No Afro-Sul, sempre foi muito forte a relação de comunidade, um ajudando o outro. Pais, tias, todo mundo fazia a coisa acontecer. Acredito que temos muito isso, a gente é comunitário. Somos ancestralidade quilombola viva. Tudo que nóis tem é nóis, como diz o Emicida. E isso o Afro-Sul faz há muitos anos. 

Mais de três décadas de cultura

O Instituto Sociocultural Afro-Sul Odomodê nasceu em 1974, por iniciativa de jovens negros integrantes de uma banda. Logo depois uniram-se a bailarinos e ampliaram suas áreas de atuação. Hoje realizam atividades de dança, música, moda e gastronomia, com o objetivo de promover a cultura e história negra e o direito a livre expressão da pessoa humana, além de lutar contra o racismo. Um trabalho que difunde a cultura afro-gaúcha para além da Capital e até mesmo do Brasil, com um repertório que viaja pela “diáspora Africana” e une a música erudita a ritmos afros. Saiba mais no site da instituição.


Bieta Rodrigues tem 42 anos. Nasceu em Porto Alegre mas vive no Rio de Janeiro, para onde foi há mais de 20 anos estudar moda. Hoje atua principalmente como DJ. Seus trabalhos estão disponíveis nas principais plataformas digitais.

* Em depoimento a Marcela Donini

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