Crônica | Parêntese

Nathallia Protazio: Querido livro

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Nathallia Protazio: Querido livro Querido livro, Sinto que te devo muitas explicações. ‘‘Por que agora?’’ ‘‘Por que uma editora popular mineira?’’ ‘‘Por que numa coleção de bolso?’’ ‘‘Por que esse título?’’ ‘‘Por que tu e não outro?’’ Se tu fosses uma pessoa, muitas dessas respostas vagariam para sempre no vácuo das perguntas filosóficas existenciais jamais sanadas. Quantas incontáveis vezes já me perguntei ‘‘Por que eu e não outra?’’ Porém, após alguns anos, apenas aceitei o fato de eu ser eu, aquela que não é outra. Sinto tuas perguntas me pesarem e peço-te: paciência, o tempo irá nos trazer algumas respostas e maturidade para viver com aquelas ausentes. Sei que és um livro pequeno e isto tem te incomodado. Sentes medo. O medo que acompanha as crianças de pequena estatura. Normal. Na prateleira muitos livros irão te intimidar com olhares soberbos e acusadores, a maioria serão romances. Permita-te chorar, se quiseres. Contudo, se o fizer, faça-o de canto. Ainda são raros os exemplares que respeitam as sensibilidades oriundas dos humanos, e como carregas a minha, é muito provável que chores bastante durante tua existência. Peço-te, porém, não te acanhes demasiado. Lembra-te que romances contam uma só história, quando bons, uma história carregada de duas ou três bem amarradas. Tu, querido, nas pequenas 100 páginas carregas dez. Consola-te. Sinto também tua decepção ao nascer durante uma pandemia. Sem batismo nem ritual de passagem povoado de gentes amigas, desconhecidas sorridentes em meio a bebidas, comidas e música. Não te apegues àquilo que ainda não temos. Considera-te um quase milagre, aquele tipo de erva, chamada por alguns daninha, brotando no impossível chão de uma calçada da José do Patrocínio. Imagine a possibilidade de ser fruto florescido em meio ao maior período de morte que conhecemos. Um sopro de esperança para a rotina de algumas pessoas. Poucas, confesso-te, porém pessoas amadas. Precisamos continuar criando chance para a vida, e não apenas respirando. Esta foi a tua vez. Aceita alguma hora dessas, por favor, a beleza daquilo que temos. Ademais, como primogênito irás carregar para sempre o peso do inédito, e por isso o fardo da minha falta de experiência. Tua bênção e maldição. Nunca nenhum outro livro será tão esperado por mim como tu foste. Eras durante muito tempo uma não-possibilidade. Uma lembrança embaçada atrás de óculos molhados da chuva ácida paulistana, ou um grito mudo nos pesadelos suíços. Tão improvável, distante e impossível que não me permitia sonhar-te. Sei que eu podia ter planejado melhor, entretanto a vida não é perfeita, e eu muito menos. A gente vai vivendo e de repente se depara com a perspectiva de uma realização que passou tanto tempo no campo das coisas hipotéticas, tanto tempo, mas tanto tempo, que planejá-la corretamente torna-se mais difícil e penoso. Não é pelo trabalho que dá ou pelos desafios, é pela carga emocional que transborda. Não é simples criar, construir e fazer o melhor possível em meio a angústias antigas e sonhos abortados, acordando todos do limbo das memórias imaginárias. Um dia iremos conviver bem. Sei. Sinto […]

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Querido livro, Sinto que te devo muitas explicações. ‘‘Por que agora?’’ ‘‘Por que uma editora popular mineira?’’ ‘‘Por que numa coleção de bolso?’’ ‘‘Por que esse título?’’ ‘‘Por que tu e não outro?’’ Se tu fosses uma pessoa, muitas dessas respostas vagariam para sempre no vácuo das perguntas filosóficas existenciais jamais sanadas. Quantas incontáveis vezes já me perguntei ‘‘Por que eu e não outra?’’ Porém, após alguns anos, apenas aceitei o fato de eu ser eu, aquela que não é outra. Sinto tuas perguntas me pesarem e peço-te: paciência, o tempo irá nos trazer algumas respostas e maturidade para viver com aquelas ausentes. Sei que és um livro pequeno e isto tem te incomodado. Sentes medo. O medo que acompanha as crianças de pequena estatura. Normal. Na prateleira muitos livros irão te intimidar com olhares soberbos e acusadores, a maioria serão romances. Permita-te chorar, se quiseres. Contudo, se o fizer, faça-o de canto. Ainda são raros os exemplares que respeitam as sensibilidades oriundas dos humanos, e como carregas a minha, é muito provável que chores bastante durante tua existência. Peço-te, porém, não te acanhes demasiado. Lembra-te que romances contam uma só história, quando bons, uma história carregada de duas ou três bem amarradas. Tu, querido, nas pequenas 100 páginas carregas dez. Consola-te. Sinto também tua decepção ao nascer durante uma pandemia. Sem batismo nem ritual de passagem povoado de gentes amigas, desconhecidas sorridentes em meio a bebidas, comidas e música. Não te apegues àquilo que ainda não temos. Considera-te um quase milagre, aquele tipo de erva, chamada por alguns daninha, brotando no impossível chão de uma calçada da José do Patrocínio. Imagine a possibilidade de ser fruto florescido em meio ao maior período de morte que conhecemos. Um sopro de esperança para a rotina de algumas pessoas. Poucas, confesso-te, porém pessoas amadas. Precisamos continuar criando chance para a vida, e não apenas respirando. Esta foi a tua vez. Aceita alguma hora dessas, por favor, a beleza daquilo que temos. Ademais, como primogênito irás carregar para sempre o peso do inédito, e por isso o fardo da minha falta de experiência. Tua bênção e maldição. Nunca nenhum outro livro será tão esperado por mim como tu foste. Eras durante muito tempo uma não-possibilidade. Uma lembrança embaçada atrás de óculos molhados da chuva ácida paulistana, ou um grito mudo nos pesadelos suíços. Tão improvável, distante e impossível que não me permitia sonhar-te. Sei que eu podia ter planejado melhor, entretanto a vida não é perfeita, e eu muito menos. A gente vai vivendo e de repente se depara com a perspectiva de uma realização que passou tanto tempo no campo das coisas hipotéticas, tanto tempo, mas tanto tempo, que planejá-la corretamente torna-se mais difícil e penoso. Não é pelo trabalho que dá ou pelos desafios, é pela carga emocional que transborda. Não é simples criar, construir e fazer o melhor possível em meio a angústias antigas e sonhos abortados, acordando todos do limbo das memórias imaginárias. Um dia iremos conviver bem. Sei. Sinto […]

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