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Norberto Flach: Lawfare

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Norberto Flach: Lawfare O termo já aparecia em 1975, em artigo dos australianos John Carlson e Neville Yeomans. Até certo ponto simplista, o texto fazia o elogio da mediação e da tentativa de entendimento, com a perspectiva de manter a harmonia comunitária. Lawfare seria o oposto: “A busca da verdade é substituída pela das questões (do processo) e pelo refinamento do combate. Lawfare substitui warfare, o duelo é com palavras, ao invés de espadas”. É o viés punitivista do direito estatal, além de um modelo judicial que tende a valorizar o litígio frontal entre as partes.  Lawfare resulta da aglutinação de law e warfare: é a substituição da guerra militar (warfare), do confronto bélico, pela ação no campo do direito (law), com as características manobras jurídicas aliadas à intensiva cobertura midiática, tudo a serviço do combate ao inimigo. Isso também na estratégia política internacional, quando é afastada a conveniência de uma intervenção militar armada, ou quando esta deve ser justificada conforme o direito internacional.  A questão não é de princípio, bem entendido: é pura lógica consequencialista, Realpolitik (em meados do XIX, o termo cunhado por Rochau também era neologismo). Se para Carl von Clausewitz a guerra é a continuação da política, por outros meios, lawfare seria a grande síntese: sem guerra e sem escalada armamentista, os mesmos objetivos estratégicos poderiam ser alcançados.  Só que o lawfare também poderia significar a perversão do direito. Como escreveu Charles J. Dunlap, antigo oficial da Força Aérea norte-americana, o que tem justificado a participação de advogados no aconselhamento dos líderes militares, em todas as últimas intervenções realizadas pelo seu país, é menos o reconhecimento da importância das questões de direito internacional, do que a gestão de riscos relacionados à opinião pública americana. Isso porque, segundo ele, os inimigos se utilizariam de lawfare para desacreditar a legitimidade da intervenção militar. E completa, com aquele patriotismo de Super Bowl: se os advogados estão lá, não é apenas por concessão à realidade da guerra moderna, mas por um comprometimento altruísta com os autênticos direitos humanos. Já no campo mais puro da política nacional ou regional, teríamos quase a mesma coisa: lawfare é a perseguição do adversário político, tratado como inimigo, através da litigância judicial compulsiva, tudo visando ao seu enfraquecimento ou, idealmente, aniquilação. Qualquer estudante de jornalismo sabe que um Trial by Media (julgamento pela imprensa), se bem batalhado (digo, trabalhado), pode decidir uma eleição. E se for um processo judicial de verdade (ou vários processos: melhor ainda), então o impacto é avassalador. Assim, nada de apedrejar comitê partidário, dar relhaço em comício ou tiro em caravana eleitoral. Nos processos judiciais tudo pode ser mais simbólico e elegante: a arena judicial é supostamente neutra, e, ainda que se jogue duro, é na bola. Esvaziado o jogo das muitas nuances do debate político-ideológico, reduzida a contenda à dicotomia autor/réu (isto é, amigo/inimigo), ficam asseguradas a simplicidade e o maniqueísmo.  O direito e a política, assim como os esportes, sempre se prestaram bem às imagens e metáforas bélicas. Até aí, salvo o […]

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O termo já aparecia em 1975, em artigo dos australianos John Carlson e Neville Yeomans. Até certo ponto simplista, o texto fazia o elogio da mediação e da tentativa de entendimento, com a perspectiva de manter a harmonia comunitária. Lawfare seria o oposto: “A busca da verdade é substituída pela das questões (do processo) e pelo refinamento do combate. Lawfare substitui warfare, o duelo é com palavras, ao invés de espadas”. É o viés punitivista do direito estatal, além de um modelo judicial que tende a valorizar o litígio frontal entre as partes.  Lawfare resulta da aglutinação de law e warfare: é a substituição da guerra militar (warfare), do confronto bélico, pela ação no campo do direito (law), com as características manobras jurídicas aliadas à intensiva cobertura midiática, tudo a serviço do combate ao inimigo. Isso também na estratégia política internacional, quando é afastada a conveniência de uma intervenção militar armada, ou quando esta deve ser justificada conforme o direito internacional.  A questão não é de princípio, bem entendido: é pura lógica consequencialista, Realpolitik (em meados do XIX, o termo cunhado por Rochau também era neologismo). Se para Carl von Clausewitz a guerra é a continuação da política, por outros meios, lawfare seria a grande síntese: sem guerra e sem escalada armamentista, os mesmos objetivos estratégicos poderiam ser alcançados.  Só que o lawfare também poderia significar a perversão do direito. Como escreveu Charles J. Dunlap, antigo oficial da Força Aérea norte-americana, o que tem justificado a participação de advogados no aconselhamento dos líderes militares, em todas as últimas intervenções realizadas pelo seu país, é menos o reconhecimento da importância das questões de direito internacional, do que a gestão de riscos relacionados à opinião pública americana. Isso porque, segundo ele, os inimigos se utilizariam de lawfare para desacreditar a legitimidade da intervenção militar. E completa, com aquele patriotismo de Super Bowl: se os advogados estão lá, não é apenas por concessão à realidade da guerra moderna, mas por um comprometimento altruísta com os autênticos direitos humanos. Já no campo mais puro da política nacional ou regional, teríamos quase a mesma coisa: lawfare é a perseguição do adversário político, tratado como inimigo, através da litigância judicial compulsiva, tudo visando ao seu enfraquecimento ou, idealmente, aniquilação. Qualquer estudante de jornalismo sabe que um Trial by Media (julgamento pela imprensa), se bem batalhado (digo, trabalhado), pode decidir uma eleição. E se for um processo judicial de verdade (ou vários processos: melhor ainda), então o impacto é avassalador. Assim, nada de apedrejar comitê partidário, dar relhaço em comício ou tiro em caravana eleitoral. Nos processos judiciais tudo pode ser mais simbólico e elegante: a arena judicial é supostamente neutra, e, ainda que se jogue duro, é na bola. Esvaziado o jogo das muitas nuances do debate político-ideológico, reduzida a contenda à dicotomia autor/réu (isto é, amigo/inimigo), ficam asseguradas a simplicidade e o maniqueísmo.  O direito e a política, assim como os esportes, sempre se prestaram bem às imagens e metáforas bélicas. Até aí, salvo o […]

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