Nossos Mortos

20 anos da morte do ecologista José Lutzenberger

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20 anos da morte do ecologista José Lutzenberger Com o seu amigo Oskar, em junho de 1999. (Arquivo pessoal de Lilian Dreyer)

No dia 14 de maio de 2002, aos 75 anos, falecia o ecologista José Lutzenberger

Em janeiro de 2001, recém-chegado de uma temporada de estudos no exterior, fui levado por uma amiga arquiteta, Neusa Heinrich, para a Fundação Gaia. Iniciava ali, pelas mãos da Elisabeth Paula Renck (nossa querida Beth), companheira de Lutzenberger, minha jornada de quase 10 anos de aprendizados e de dedicação profissional à ONG criada em 1987 pelo maior ambientalista brasileiro e um dos mais respeitados do mundo. 

Entrei como voluntário na instituição quando acontecia em Porto Alegre a primeira e aquela que talvez tenha sido a maior edição do Fórum Social Mundial em nossa cidade, colocando-a nas manchetes dos principais jornais do planeta. Tempos depois, fui efetivado como assessor de comunicação e marketing, onde permaneci até março de 2010. 

Como veio a falecer em maio do ano seguinte ao nosso primeiro contato, minha convivência com Lutzenberger foi relativamente curta (um ano e quatro meses), mas o suficiente para absorver o máximo que pude dos seus ensinamentos. 

De fala entusiasmada, era um cientista que usava as palavras certas para que fosse entendido por todos os interlocutores. Transitando pelos mais variados temas, o engenheiro agrônomo e ambientalista dominava as discussões com a propriedade típica dos que dedicam suas vidas a uma causa. A dele, era a ecologia. 

Suas bandeiras, lutas e história de vida são de conhecimento público, aliás, muito bem documentadas na biografia Sinfonia Inacabada: A vida de José Lutzenberger (Vidicom Audiovisuais Ltda – Edições, 518 páginas, 2004), de autoria da jornalista e escritora Lilian Dreyer. A obra foi lançada com um grande show de Jorge Mautner, que lotou o Salão de Atos da Ufrgs. Até hoje não entendo como o livro não tenha sido reeditado por uma grande editora (Alô, L&PM! Alô, Sulina!).

Lutzenberger: For Ever Gaia (escrito assim mesmo), filme documentário de 2007 dirigido por Frank Coe, é outra sugestão que faço para a geração de jovens que queiram saber mais sobre o ecologista de projeção mundial que em 1988 foi agraciado pelo Right Livelihood Award, considerado o Prêmio Nobel Alternativo.

Ecologistas do mesmo grupo de Lutz (assim ele era carinhosamente chamado pelos mais próximos), como Augusto Carneiro (falecido em 2014, aos 91 anos), Hilda Zimmermann (falecida em 2012, aos 89 anos), Magda Renner (falecida em 2016, aos 90 anos), Giselda Castro (falecida em 2012, aos 89 anos) e Flávio Lewgoy (falecido em 2015, aos 89 anos), entre outros, tiveram vidas mais longevas e puderam nos favorecer com suas presenças e sabedoria por alguns bons anos a mais. 

A convivência com essas mentes geniais, contemporâneas de Lutzenberger, de alguma forma supriram o vazio deixado por ele naquele momento. Para saber mais sobre todos eles, sugiro a leitura do livro Pioneiros da Ecologia (JÁ Editores, 2007), de Elmar Bones e Geraldo Hasse. 

Imperdível também é a obra Augusto Carneiro – depois de tudo – um ecologista, retrato biográfico escrito por Lilian Dreyer lançado na Feira do Livro de Porto Alegre, em 2013. Embora seja uma obra dedicada à vida de outro grande ecologista, ela nos oferece histórias e informações sobre Lutzenberger a partir da ótica daquele que foi um de seus maiores amigos e fiel companheiro.

Com sua inesperada partida, por algum tempo ainda orbitava na instituição criada por Lutzenberger um bom número de ecologistas, pesquisadores, pensadores, educadores e profissionais das mais diversas áreas que se dedicavam aos estudos e à defesa do meio ambiente. 

Nos primeiros anos após a sua morte, a ONG ainda recebia voluntários e estagiários vindos de países europeus, principalmente da Alemanha e da Áustria. Eram jovens que vinham ao sul do Brasil para absorver de perto as ideias e o trabalho desenvolvido por Lutzenberger, que eles conheciam pelos livros ou pela imprensa dos seus países de origem. Como estagiavam na sede rural da Fundação Gaia, o Rincão Gaia, em Pantano Grande, sempre que precisavam permanecer em Porto Alegre muitos destes jovens ficavam hospedados em minha casa. Desses encontros, ficaram algumas amizades: Moritz Härlin, Max Heinrich, Johannes Ebner, Marko Lock, Isabel Schneikert e Marion Kassebaum. 

Com o passar dos anos e com a perda da projeção internacional da instituição, decorrente da morte de Lutzenberger, a vinda dos jovens europeus diminuiu, até desaparecer, como aponta a falta de registros nos relatórios anuais da instituição a partir de 2005. 

Embora a ajuda financeira de instituições do exterior para os projetos realizados pela Fundação Gaia já viesse diminuindo, resultado de políticas que priorizavam investimentos em projetos e ONGs no Norte do país e nos países do continente africano, a morte do ecologista interrompeu de vez essas parcerias. Na época, o argumento era o de que o Sul do Brasil é uma região próspera e rica, com instituições e empresas com condições de subsidiar projetos na área ambiental. 

Também tiveram que seguir outros caminhos funcionários e colaboradores, a exemplo de Beth Renck. Companheira de Lutz por muitos anos, enfermeira de formação e ecologista por vocação, Beth não foi apenas sua mulher: seu trabalho junto de Lutz foi fundamental para ajudar na consolidação do Rincão Gaia, onde desde o início coordenava as atividades da sede rural, além de acompanhar Lutzenberger em suas inúmeras viagens profissionais mundo afora. 


José Lutzenberger e Beth Renck, no Rincão Gaia – início. Muito trabalho pela frente. (Arquivo pessoal de Lilian Dreyer)

Beth, dentre tantas qualidades, é uma cozinheira de mão cheia, prova disso eram as compotas e conservas produzidas por ela com as frutas do pomar, com os legumes e com as hortaliças. Até hoje não provei molho pesto melhor que o dela. Para a tristeza e espanto de muitos, Beth teve que deixar o Rincão Gaia pouco tempo depois do falecimento de Lutzenberger. Coisas da vida, das injustiças da vida. 

Se vivo fosse, Lutz estaria com 95 anos. Mesmo que não tivesse chegado até aqui, por sua genialidade e contribuições para o mundo, merecia ter ficado pelo menos 10 anos a mais entre a gente. 

Desde que partiu, muita coisa aconteceu em nosso país e no mundo. Certamente ele teria nos dado forças e discernimento para enfrentarmos a degradação moral do ser humano e a sua consequente ambição, combinação que tem levado o planeta a níveis alarmantes de destruição. Nada do que ele já não tivesse nos alertado.

Os retrocessos são muitos. De lá para cá, mesmo proibidos em outros países por serem altamente cancerígenos, dezenas de agrotóxicos foram liberados para serem usados nas lavouras brasileiras, contaminando nossa água e nossos alimentos, matando a fauna e a flora. O planejamento urbano, necessário para manter a mínima qualidade de vida em nossas cidades, também vem sendo desrespeitado e destruído.

Com os recordes de destruição de nosso ecossistema, com a devastação em alta na Amazônia, com as secas e queimadas no Pantanal e no Cerrado, onde avançam a pecuária e as monoculturas, tão criticadas por ele – e até mesmo com a pandemia da Covid-19 –, tudo piorou de tal forma que às vezes fico me perguntando o que teria Lutz a nos dizer para além do tanto que nos ensinou. 

Aliás, Lutzenberger tinha profundo conhecimento dos biomas brasileiros, como nos mostram suas inúmeras entrevistas concedidas para a imprensa escrita e televisiva, seus artigos e livros publicados – muitos organizados com a ajuda e edição de Lilian Dreyer.

Além do documentário de Frank Coe sobre sua vida, citado anteriormente, no início dos anos 1980 Lutzenberger participou de uma série documental produzida pela televisão britânica sobre a devastação da Amazônia. A Década da Destruição (The Decade of Destruction, 1980-1990), com direção de Adrian Cowell, teve projeção internacional, com destaque para o episódio Nas cinzas da floresta

Na ocasião, Lutz apresentou o documentarista e ecologista inglês a Chico Mendes, contribuindo para que o seringueiro e defensor da Amazônia se tornasse uma personalidade mundialmente conhecida. Tanto o documentário de Coe como os documentários de Cowell são facilmente encontrados em buscas no Google e no Youtube. 

As incursões de Lutzenberger pelos biomas brasileiros, principalmente Amazônia, me remetem a um acontecimento relativamente recente, de 19 de julho de 2019, quando o general Augusto Heleno, num café da manhã com jornalistas estrangeiros, pediu a palavra para insinuar que Lutzenberger não conhecia a Amazônia até ser nomeado Secretário do Meio Ambiente (atualmente Ministério), em 1990. 

Esse episódio aponta para algumas questões importantes: A primeira é o fato de um militar ainda hoje lembrar e reconhecer a brilhante atuação de nosso velho Lutz. Ou seja, eles sabem da importância e do reconhecimento de Lutzenberger, principalmente fora do país. A segunda é a tentativa de descredibilizá-lo junto a jornalistas estrangeiros, contando-lhes uma mentira. A terceira é a constatação de que em 2019 as fake news já eram usadas para ocultar a destruição de nossa biodiversidade e fazer “passar a boiada”. 

Repetem hoje, sem nunca terem interrompido, o que Lutzenberger denunciava desde a década de 1970.

Acusado por alguns de ser catastrofista, passados 20 anos de sua morte, para entendermos como chegamos até aqui, talvez fosse necessária uma análise minuciosa dos acontecimentos das duas últimas décadas a partir da sua produção intelectual e científica. Seria um exercício interessante de resgate de suas projeções. 

Muito poderia ser dito sobre ele, mas o essencial é que era um sujeito simples, avesso a futilidades e extravagâncias. No cotidiano, era a sobriedade em pessoa. Pautava suas relações pessoais pela ética ecológica. Dizia que as relações humanas repercutem nas relações destes com os demais seres vivos. Tinha profundo respeito pelos que trabalhavam com ele, reflexo disso era o tratamento justo que dispensava aos funcionários (relações afetivas e trabalhistas eram duradouras), reconhecendo a necessidade de uma remuneração que lhes proporcionasse dignidade e qualidade de vida.

Que falta faz Lutzenberger! 


Cristiano Goldschmidt – Jornalista, doutorando e mestre em Artes Cênicas (Ufrgs), Conselheiro de Estado da Cultura do RS.

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