Nossos Mortos

A diferença entre falar e ser entendido

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A diferença entre falar e ser entendido Foto: Eurico Salis

Homem de muitas histórias, Oskar Coester imprimiu em seu cérebro uma cena muito marcante, vivida quando ele tinha 17 anos, era aprendiz de mecânico na VARIG e estava muito longe de sua Pelotas natal. Era no Recife, num modesto trem, no ano de 1955; um senhor visivelmente modesto, no traje e na aparência, abre um embrulho com carne-seca e farofa, para matar a fome. 

Aquele jovem Oscar, filho de alemães vindos ao Brasil duas décadas antes e que em função da Segunda Guerra precisaram aqui permanecer, olhava atento a cena, tão diferente de seu mundo originário. E se surpreendeu ao ver o senhor mirando-o nos olhos para perguntar: “O senhor é servido?”


A cena só é banal para quem não tem coração, ou não sabe pensar por comparação e por contraste; o adolescente Coester tinha e já sabia, e não parou nunca de desenvolver a capacidade de medir uma situação em função de outras, um mecanismo em relação com outros, uma novidade a respeito das coisas habituais. 

Para quem, como ele, nasceu de imigrantes vindos de uma região pouco tempo antes mergulhada em guerra aberta, numa parte do planeta com invernos rigorosos, o gesto daquele senhor era a confirmação de que aqui, no Brasil, havia, além do clima amplamente favorável, uma cultura cotidiana de generosidade, de partilha. 

Não se trata de ilusão, nem de fantasia, nem de desconsideração pela violência que a cada momento pode brotar do mesmo ser humano, que isso tudo é da natureza; trata-se de olhar para o mundo medindo as coisas, as ações, as possibilidades, nos marcos da vida real de cada contexto, sempre sábia e implacável.

Vista linearmente, sua vida tem a marca da família imigrante, pai trabalhador especializado e mãe exemplarmente educadora ― “O que tu tens tu podes perder de uma hora para outra, mas o que tu sabes ninguém tira”, ela dizia. Na adolescência, passou por um curso técnico. Depois, Oskar cursou a Escola da VARIG e nela engatou sua vida profissional. Era um tempo de ascensão da aviação e daquela companhia em particular, e o líder Ruben Berta sabia tirar o melhor dos funcionários. 

Vendo o talento potencial daquele jovem, especialista em automação, Berta o convida para ir aos Estados Unidos, fazer curso na Boeing, que vendia para a VARIG novíssimos aviões, de capacidade de carga muito maior do que até então se conhecia. Já ali, um problema rondava o mundo da aviação: o deslocamento de pessoas e objetos entre a cidade e os aeroportos, quer dizer, o trânsito urbano. O jovem Oskar prestou atenção nisso.

A carreira de Coester na empresa alcança postos de chefia na manutenção das aeronaves, mas isso ainda era pouco para sua verve inventiva, fruto de observação, comparação, contraste. Em 1969 se desliga da VARIG para se dedicar a sua empresa, na qual passa a desenvolver uma série de inventos, criações, novidades, não só para a as máquinas voadoras mas também para as navegadoras – sim, ele inventou itens para barcos e navios, também. 

Em meio a esse processo, lhe surge a equação-chave: encontrar um meio de deslocamento urbano que combinasse funcionalidade, rapidez e gasto menor do que os modelos vigentes, que desperdiçavam quantidades absurdas de energia. O raciocínio de base é trivial, mas faz toda a diferença: ele lembra o exemplo elementar do sujeito que aciona o botão para ligar a luz. Operação simples? É. Mas e o que dizer da quantidade de gente, trabalho, invenção, investimentos que foram necessários para aquele gesto simples? 

Essa é a conta de um inventor, de um cientista aplicado, de um ecologista prático. Essa é a conta que levou Oskar Coester ao aeromóvel, invenção com patente requerida em 1977, de implementação tão lenta quanto… 

Tão lenta quanto as grandes idéias simples, as simples ideias grandes: uma via urbana alternativa, suspensa, e um veículo com rodas sobre trilhos, impulsionado por vento, como um barco a vela de cabeça para baixo, por assim dizer, com a vela colocada embaixo do trem dentro de um túnel que restringe o movimento do ar. Um contraste sensacional com o desperdício de energia verificado em automóveis trafegando dentro da cidade, os quais desperdiçam 90% da energia consumida, se levarmos em conta o peso: um carro de mil quilogramas carrega quase sempre apenas uma pessoa, de menos de cem quilos. 


A trajetória dessa descoberta renderia um romance, com ação e suspense, em cenários locais e internacionais (Alemanha e Indonésia). E mocinhos e bandidos, claro. Ou melhor: na opinião do inventor, não se trata de bandidos, mas de gente que, como a maioria, tem medo da novidade, porque não dispõe de esquemas mentais capazes de assimilar o novo. Uma coisa é o que a gente fala, e outra é o que as pessoas entendem. 

(Foi o que aconteceu com aquele primeiro trecho de aeromóvel, perto da Usina: com financiamento adequado construiu um trajeto pequeno, experimental, que poderia se expandir por muitas vias – já pensou um aeromóvel sobre o arroio Dilúvio, rompendo a geografia de Porto Alegre de leste a oeste, para transportar as dezenas de milhares de pessoas que se deslocam nesse eixo diariamente? As provas foram auspiciosas, mas o então ministro dos Transportes, Cloraldino Severo, por sinal gaúcho, vetou a sequência do projeto ao negar o financiamento. Preferiu, como tem acontecido em nosso país desde os anos 1950, jogar dinheiro público no financiamento desse modelo rodoviarista assassino e ecocida.) 

Mais de 40 anos passados da implementação da primeira linha experimental, Oskar Coester sentiu a emoção de inaugurar uma pequena linha, em 2014, ao acionar o motor do aeromóvel que serve ao aeroporto Salgado Filho. 

Talvez tenha voltado a pensar no que sentiu ao presenciar sua invenção servir para deslocamento num parque indonésio: “Mas e o que é que um guri lá de Pelotas está fazendo aqui?” 

Não parar nunca de se admirar com o mundo é a marca dos grandes homens, os que entenderam que é preciso aprender a lidar consigo mesmo e com os semelhantes, tanto quanto com as coisas do mundo.


Luís Augusto Fischer é professor de Literatura na UFRGS, autor de, entre outros, “Dicionário de porto-alegrês” e “Literatura brasileira: modos de usar”, ambos pela L&PM. É curador da revista Parêntese.

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