Nossos Mortos

Elton Manganelli, um amigo que muito me ensinou a olhar

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Elton Manganelli, um amigo que muito me ensinou a olhar Elton (centro) entre amigos

Elton Manganelli! Mais do que um artista visual inquieto e sensível, de múltiplos talentos e de olhos acesos para o mundo, foi um amigo raro, que muito me ensinou a olhar, perceber, sentir, viver. Quando soube da morte repentina do Elton, provocada por um infarto fulminante, no meio da tarde de uma terça-feira, 17 de agosto de 2021, perdi o chão. E chorei como há muito tempo não chorava. Eu tinha um compromisso no final desse dia, marcado com a equipe da Práxis, do Rio de Janeiro – participar do “Curso de Extensão Constelação e Práticas Sistêmicas: Um Percurso Emancipatório”, iniciativa do departamento de ensino da Escola da Magistratura/Tribunal de Justiça do Estado do Rio, para falar sobre Inclusão e Acessibilidade. Um espaço instigante para as minhas lutas dos últimos anos. Fiquei feito uma barata tonta e o impulso primeiro foi desistir. Enquanto tentava assimilar a partida inesperada do meu amigo, passou um filme na minha cabeça. Filme que me fez não desistir e repetir, como um mantra, palavras de Guimarães Rosa: “O que a vida quer da gente é coragem”. 

Carnaval de inverno em São Francisco de Paula

Depois de dar conta do compromisso, dei asas para a dor que eu sentia e para as lembranças do amigo de múltiplos talentos, bacharel em Desenho pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul/UFRGS, que iria completar 73 anos em 21 de agosto. E que desde os anos 1960 já frequentava com desenvoltura o cenário das artes gaúchas como cenógrafo, escultor, pintor, desenhista, animador e professor. No final dos anos 1980, início de 1990, Elton fez uma exposição de pinturas na Galeria Arte&Fato, e duas obras que integraram a mostra passaram a fazer parte do acervo do Museu de Arte Contemporânea/MACRS – Corpo (1985) e Medidor de Tempo (1990) – o que me enchia de orgulho. Entre 2011 e 2014, estas obras participaram de um projeto de pesquisa, curadoria e expografia – “A Medida do Gesto” –, um panorama do Acervo do MACRS, com exposição, catálogo e projeto educativo realizado em Porto Alegre, Pelotas, Bagé, Passo Fundo, Montenegro, Santa Maria e Lajeado, em parceria com o IA-UFRGS e apoio do Sistema Fecomércio-RS/Sesc. E assim ele ia tranquilo espalhando arte!

Conheci o Elton na TV Guaíba ainda nos tempos da família Caldas Júnior, onde trabalhei no Departamento de Pesquisa (o Google da época) e na produção do programa Guaíba Feminina, apresentado por cinco mulheres, conhecidas como as Panteras de Caldas – Tânia Carvalho, Magda Beatriz, Liliana Reid, Marina Conter e Aninha Comas. Ele integrava a equipe que fazia o programa infantil Guaíba Criança (1981), onde criou, com o ator Roberto Oliveira, um personagem chamado Remendão, que ensinava, entre outras atividades, as crianças a criar com sucata. Nas primeiras vezes em que vi pelos corredores e no estúdio da TV aquela figura magra, bem humorada e cheia de energia foi puro encantamento. Não demorou muito para virarmos amigos, frequentarmos um a casa do outro e esticar boas conversas deitados no chão. 

Com a crise da Caldas Júnior, depois de greves e situações trabalhistas difíceis, vieram as fatídicas demissões e eu saí em busca de outros espaços de trabalho. Mas seguimos em contato. A casa do Elton e da Bea (Beatriz Fleck), parceira dele na época, era um oásis. Um refúgio com direito a massagens, música suave e relaxamento. Mais tarde, vieram os filhos Júlia e Bernardo, que eu vi crescer. E depois a netinha Clara, filha da Júlia, que o vovô amava e cuidava muito. Sempre acompanhei a carreira do amigo no mundo das artes, as mostras coletivas e individuais, os cursos, as invenções, os projetos. 

Júlia, filha do Elton, a netinha, filha da Júlia, e eu.

Em 1987, na gestão de Alfredo Fedrizzi, fui trabalhar na TVE. Assumi a chefia de um departamento responsável pelos cenários, pela arte, pela gravação de chamadas que destacavam os programas a serem exibidos e pelos boletins que enviávamos semanalmente para a imprensa divulgar a programação. Uma responsabilidade tão grande que me fez ir atrás de uma equipe com garra para dar conta de tudo. Além de profissionais como os jornalistas José Walter de Castro Alves e Luciano Alfonso e os produtores e atores Márcia Erig e Eduardo Fachel, consegui levar o Elton para trabalhar com a gente.

Não tínhamos verba, e ele fazia milagres para dar conta dos cenários e de tudo que inventávamos, como as gravações, no estúdio da TV, de chamadas para os espetáculos de teatro e música, entre outras atividades culturais que aconteciam na cidade. Os produtores, diretores e atores subiam o morro Santa Teresa, faziam pequenas cenas de 30 a 40 segundos, que depois eram editadas e rodavam nos intervalos dos programas – comerciais singelos que vendiam arte! Elton aí soltou a imaginação e praticamente do nada montava pequenos sets para as gravações. Aventurava-se como poucos no universo da criação e os resultados eram muito bons. Foram quatro anos de uma convivência muito rica, afetiva e cheia de desafios. Nesta mesma época, ele também integrou a equipe de outro programa infantil marcante, o Pandorga, que estreou em 1988. Ao lado de Maria Inês Falcão e uma equipe de bonequeiros, ele também foi ator e manipulador de bonecos.

No final da administração do Fedrizzi, saí da TVE.  Mas não deixei de conviver com o Elton, que eu já admirava – um artista contemporâneo por excelência. Uma vez estávamos em uma exposição e lamentei a minha dificuldade em reconhecer o valor artístico de uma obra e ele me disse: “Não precisa entender, nem explicar, basta sentir”. Acho que não disse para ele o quanto foi libertador ouvir esta frase. São muitas as histórias, os trabalhos e projetos compartilhados, as invenções, aventuras, festas, risos, lágrimas. Foi ele que me apresentou o Leandro Selister, outro artista contemporâneo que admiro muito. Foi ele uma das primeiras pessoas a aparecer na nossa casa quando ficou sabendo que Marlene estava com câncer. E foi quem me levou no colo para o hospital quando minhas pernas falharam e precisei fazer uma cirurgia com urgência na coluna. Era um leonino arquetípico e sabia disso. Um criador, um palhaço maravilhoso, sempre cheio de ideias. Tínhamos, inclusive, um projeto que começava a se estruturar: desenhos que ele faria para ilustrar um pequeno livro de poemas da filha Júlia Manganelli. Falamos por telefone e estávamos aguardando um bom momento para um encontro.

Preparação para uma noite de carnaval.

Li e ouvi praticamente tudo o que falaram e escreveram sobre ele nas notas oficiais de pêsames, nos jornais, na televisão, no rádio, nas redes sociais. Não percebi nenhum exagero. Elton era múltiplo, atento e quando assumia um projeto dedicava-se integralmente. Sua arte vai seguir crítica e lúdica, entrelaçando os amigos e a grande família que formamos. Para terminar este depoimento, uma frase do psicanalista Édson Souza que me comoveu muito quando li: “Uma doçura de pessoa e atento às sombras que atravessamos não silenciando”. Assim era o Elton Manganelli!

Agosto de 2021


Lelei Teixeira – Jornalista

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