Nossos Mortos

Galvani me piscou o olho

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Galvani me piscou o olho Walter Galvani e a companheira Carla Irigaray

No autógrafo que me deu no lançamento de seu segundo livro, Informação ou Morte, em novembro de 1972, Walter Galvani se referiu ao jornalismo como “esta nossa tão difícil e maltratada profissão”. E ele já era um jornalista bem-sucedido: entrara em 1955 na poderosa Cia. Jornalística Caldas Jr. como um foca interiorano da editoria de Esportes do Correio do Povo e, dez anos depois, tornara-se chefe de Redação da Folha da Tarde, o jornal mais ágil e querido de Porto Alegre. A seguir, só faria aumentar sua significação no jornalismo e no ambiente cultural do Rio Grande do Sul. A morte, em 29 de junho, aos 87 anos, trouxe a fixação de sua relevância.

Nas redes sociais, vários jornalistas que atuaram com Galvani ao longo do tempo fizeram seus relatos, cada um com uma história, todos unânimes em reconhecer nele não apenas um mestre da profissão como um ser humano especial. Sobre a profissão, embora tenha se dedicado a ela ao longo da vida, ele a ultrapassou, abrindo espaços na literatura como ensaísta, historiador e ficcionista. Mas este texto não quer ser biográfico, quem deseja saber quase tudo sobre o Galvani é só ir ao Google. Quero apenas lembrar duas ou três coisas que me unem a ele e ajudam a entender os motivos de sua unanimidade a partir das relações pessoais.

Para começar, nunca o vi especialmente zangado. Sempre o vi firme, com objetivos claros, mesmo enfrentando barras pesadas como os dias finais da Caldas Jr., por exemplo. Na Redação da Folha da Tarde, tinha o comportamento de orientador. Nem imposições autocráticas, nem tapinhas nas costas. Cheguei lá em 1969, ainda estudante de Jornalismo, para fazer estágio – prática, aliás, criada por Galvani, que assim revelou grandes talentos, e também não cabe aqui citar tantos nomes. Ao fim dos três meses do estágio, meu chamou e disse: “Gostei de ti, vou te efetivar”. Depois de um tempo na reportagem geral, me passou a setorista de Economia!

Imagina um pirralho de 24 anos fazendo esse tipo de cobertura. Mas às vezes me mandava fazer outras matérias, como por exemplo escrever sobre a Festas das Hortênsias, em Gramado e Canela. E assim conheci a Serra. Outra vez, um julho gelado, chuvinha fina, previsão de temperaturas negativas, comentei com ele: tenho o palpite que vai nevar na Serra. E ele: “Então vamos pegar um fotógrafo, uma Kombi, e vais pra lá”. Quando estávamos chegando a São Francisco de Paula, começou a nevar. E nevou bastante. Escrevi com o dedo no vidro nevado da Kombi: Neve 70. A foto foi capa da Folha e saiu até no Estadão. Galvani me piscou o olho.

Aí ele viajou para passar acho que um mês ou pouco mais nos Estados Unidos – dessa viagem resultaria o livro Informação ou Morte. De lá, uns 15 ou 20 dias depois, chega uma carta dele à Redação. Vai citando e mandando abraços para todos, com rápido comentário sobre cada um. Li: “…e o Juarez, esse dínamo…”. Claro que eu jamais poderia esquecer tal referência, vinda de meu primeiro chefe como profissional. De outra feita, estava na Redação quase vazia, altas horas da noite, quando, na área do pessoal de Esportes, que devia estar escrevendo sobre um jogo daquele começa uma guerra de laranjas, que estouravam nas paredes.

Claro que ninguém limpou, ficaram aquelas manchas escorridas e as frutas no chão. Pela manhã, o primeiro a chegar à Redação avisou Galvani, que chamou o contínuo da noite para saber quem estava. E ele dedurou todos. Eram uns sete ou oito. Todos demitidos. Como eu estava lá, entrei na lista. Mas na tarde do mesmo dia Galvani soube que eu não participara da guerra. Mandou o contínuo ir ao meu apartamento e como eu não estava deixou um bilhete dizendo que o Galvani queria falar comigo. Liguei. Ele disse que soubera que eu não estava na “brincadeira” e que minha demissão estava desfeita. Perguntei: “E os outros?”. Respondeu: “Os outros não”.

Rebelde, fiquei solidário com os demitidos e deixei a Folha. Pouco depois estava em Zero Hora como… setorista de Economia. Reencontrei Galvani naquela noite de autógrafos e o que ele me escreveu mostrou que não apenas não tinha guardado “diferenças” como me chamava para a amizade, continuando a me incentivar. E assim seguiu a amizade pelo tempo. Sempre que nos encontrávamos, em noites de autógrafos, nas feiras do livro da vida, em ocasiões culturais, na maioria das vezes ele com sua amada Carla Íria Irigaray (que estava na Folha na mesma época que eu), tínhamos memórias e novidades para compartilhar.

A morte dele me morre um pouco também.


Juarez Fonseca é jornalista formado pela UFRGS, 50 anos de carreira, quase todos dedicados à área cultural, principalmente à música. Colunista de Zero Hora desde 1972, com intervalo entre 1996 e 2012. Produtor de vários discos de música regional gaúcha (Renato Borghetti, Victor Hugo, Leopoldo Rassier, Luiz Carlos Borges, Barbosa Lessa). Autor dos livros “Gildo de Freitas – O Rei dos Trovadores”, “Ora Bolas – O humor de Mário Quintana” e “Neugebauer – Uma história”.

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