Nossos Mortos

Olhar a si mesmo, ver o mundo

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Olhar a si mesmo, ver o mundo Foto: Divulgação

Gelson Radaelli (Nova Bréscia, 1960) é um artista do trabalho – ofício feito de constância e intensidade, dia após dia, sem trégua, na solidão de seu ateliê. Quando não está pintando, amassa argila; quando não molda, desenha. São cadernos e cadernos integralmente preenchidos, além de folhas avulsas, em diferentes formatos e tamanhos, golpeadas por materiais também diversos. Tudo se acumula e se embaralha. As demandas chegam de modo contínuo, mas não vêm de longe, são todas internas. O que eventualmente se oferece a público corresponde a uma parte mínima, minguada, de toda essa produção.

Seu mote provém, em larga medida, do exercício, já clássico, da observação: olhar atento nos objetos, nas paisagens e nos tipos humanos, olhar impetuoso no suporte à sua frente. Radaelli dedica-se não apenas à observação direta, imediata, mas também àquela que é de alguma forma mediada: as imagens que nos chegam a todo instante, pelo noticiário, pela web, em vídeos e fotografias. 

Afetam a percepção do artista tanto o que ele descortina desde seu espaço de trabalho – décimo andar de um prédio da Avenida Salgado Filho, onde o Centro de Porto Alegre parece ainda mais velho, mais cansado e mais desbotado – quanto os indícios fumegantes de um Brasil devastado pelo fogo e pelos desmandos.

Ocorre ainda que uma coisa e outra – o trabalho, a observação – tratam de se combinar em regime de urgência. No embate com as tintas e a superfície da tela, tudo se acelera. Os corpos se contorcem. As naturezas-mortas se inflamam. Os rostos não têm paz. Mesmo aqueles retratos muito frontais, que eram para ser duros feito 3×4, se derretem sem cerimônia. A visceralidade que Radaelli vinha experimentando na escultura se emplasta mais do que nunca sobre o tecido. As pinturas assimilam a maleabilidade do barro. As figuras se desmancham: nervos expostos, formas deformadas.

O espelho aparece apenas no título da série: No espelho não sou eu. Mas, obviamente, o espelho está lá e reflete quem se dispuser a olhar. Nesse jogo de identidades (quem é o estranho que aparece onde o sujeito esperava encontrar uma cara familiar?), eis a chance de se perceber. Perceber a si mesmo e a esse país, esse momento e esse mundo: cenário que conhecemos tão bem mas deixamos de reconhecer.Há uma cena no filme Beijos roubados (Baisers volés, 1968), em que o personagem Antoine Doinel (estimado alter ego do cineasta François Truffaut) se posta de pijamas diante do espelho do banheiro e fica repetindo o nome completo da garota por quem está apaixonado: Fabienne Tabard, Fabienne Tabard, Fabienne Tabard… Até que muda, sem pausa, para o nome de outra jovem: Christine Darbon, Christine Darbon, Christine Darbon… Ainda sem repente, os nomes passam a se alternar: Fabienne Tabard, Christine Darbon, Fabienne Tabard, Christine Darbon… O ritmo se apressa, a mão se movimenta no ar, como que regendo o discurso de nomes e sobrenomes, o locutor cuida para não se atropelar, articula bem cada palavra, atento à dicção, mas ainda mais e mais carregado. Alcança enfim o próprio nome: Antoine Doinel, Antoine Doinel, Antoine Doinel… A cena, sempre sem cortes, termina quando, quase gritando, o personagem precisa desviar o olhar do espelho e esconder o rosto, desesperado, nas próprias mãos. Não é tarefa fácil ter que se encarar de frente. Só se vê, de fato, a si e ao outro, quem tiver disposição. Convite sincero que nos faz o artista do trabalho.

Texto escrito especialmente para a exposição No espelho não sou eu, apresentada na Galeria Bolsa de Arte de Porto Alegre (2020) 


Obras da exposição No espelho não sou eu (Divulgação)

Obras da exposição No espelho não sou eu (Divulgação)

Obras da exposição No espelho não sou eu (Divulgação)

Obras da exposição No espelho não sou eu (Divulgação)


Eduardo Veras é crítico e historiador da arte, professor da UFRGS.

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