Operação Belchior

O mais latino-americano dos cantautores brasileiros

Change Size Text
O mais latino-americano dos cantautores brasileiros I – Montevidéu Quando aquele estranho casal entrou no Café Tribunales em Montevidéu, há alguns anos, numa manhã tíbia de outubro, parecia estar trazendo junto, no seu passo titubeante e discreto, a época da ditadura uruguaia. Um frio remoto e único, com as gélidas lâminas que só o Rio da Prata sabe afiar, entrou junto com eles. A cena – com um homem escondido sob um chapéu, atrás de enormes óculos escuros, esgueirando-se sobre o ombro da companheira – lembrava algo das marcantes histórias do Mario Benedetti. Aqueles contos sobre os terríveis tempos que o Paisito Oriental, e os demais países do nosso continente, em maior ou menor grau, viveram há poucas décadas. Porém, não havia dúvida, quem estava atrás daqueles óculos era ele. Inconfundível no rosto, mais inconfundível na voz. A face larga, o sotaque nordestino, a tonalidade anasalada, a voz que algum dia Inês também ouvira, beijando um estudante, em seu quarto de pensão. O autor daqueles versos, com sabor a cana-de-engenho e aroma de palmeiras tropicais, que embalaram a juventude do meu país. Lembrei logo, eu que nascera e ainda vivia na fronteira, que sempre me admirara que um dos maiores cantautores brasileiros, mesmo sendo do norte do Brasil, falasse tanto em América Latina. Vários outros do nosso monte Olimpo da MPB também eram imensos, mas somente ele, Belchior, era capaz de ter uma visão continental, ou ao menos de traduzi-la tão amplamente em suas canções. Por isso eu não me surpreendera, como tantos outros, quando soube que ele não fora se auto-exilar nos EUA ou na Europa e sim aqui, do nosso lado, no pequeno e grandioso país do candombe, da torta frita e do dulce-de-leche Conaprole. Creio que poucos sabem, mas ele, inclusive, fez uma belíssima parceria com o duo uruguaio Larbanois-Carrero (um dos melhores e o mais antigo em atividade), em que desfaz magistralmente o mito da descoberta da América: En la América, la nuestra, de azúcar, cobre y café, no hay motivos para fiesta, 500 años de qué?  Nesse disco, que é uma raridade, há uma gravação com uma amiga nossa, também fronteiriça, de Santa Vitória do Palmar, Maria da Conceição, uma das vozes femininas mais lindas do nosso cancioneiro. Voltemos ao Tribunales. Pedimos alguns cafés e outras tantas medialunas. Pareciam ter muita fome. Enquanto a companheira dele falava sobre vários planos – um tanto mirabolantes, pareciam -, eu o observava o mais discretamente possível. Logo veio à minha mente a frase que estava no mural do cubículo da república dos estudantes, muitos anos antes, em Rio Grande. Ali dizia, em letra cursiva e quase ininteligível, uma estrofe que eu copiara logo no primeiro ano de engenharia (quando então eu tinha 19 anos): Tenho 25 anos de sonho e de sangue e de América do Sul, por força desse destino o tango argentino me vai bem melhor que o blues…  Quanta verdade aquilo dizia para mim. Depois, quando a vida me levou pelo caminho da arte, e a fazer algumas parcerias com músicos […]

Quer ter acesso ao conteúdo exclusivo?

Assine o Premium

Você também pode experimentar nossas newsletters por 15 dias!

Experimente grátis as newsletters do Grupo Matinal!

I – Montevidéu Quando aquele estranho casal entrou no Café Tribunales em Montevidéu, há alguns anos, numa manhã tíbia de outubro, parecia estar trazendo junto, no seu passo titubeante e discreto, a época da ditadura uruguaia. Um frio remoto e único, com as gélidas lâminas que só o Rio da Prata sabe afiar, entrou junto com eles. A cena – com um homem escondido sob um chapéu, atrás de enormes óculos escuros, esgueirando-se sobre o ombro da companheira – lembrava algo das marcantes histórias do Mario Benedetti. Aqueles contos sobre os terríveis tempos que o Paisito Oriental, e os demais países do nosso continente, em maior ou menor grau, viveram há poucas décadas. Porém, não havia dúvida, quem estava atrás daqueles óculos era ele. Inconfundível no rosto, mais inconfundível na voz. A face larga, o sotaque nordestino, a tonalidade anasalada, a voz que algum dia Inês também ouvira, beijando um estudante, em seu quarto de pensão. O autor daqueles versos, com sabor a cana-de-engenho e aroma de palmeiras tropicais, que embalaram a juventude do meu país. Lembrei logo, eu que nascera e ainda vivia na fronteira, que sempre me admirara que um dos maiores cantautores brasileiros, mesmo sendo do norte do Brasil, falasse tanto em América Latina. Vários outros do nosso monte Olimpo da MPB também eram imensos, mas somente ele, Belchior, era capaz de ter uma visão continental, ou ao menos de traduzi-la tão amplamente em suas canções. Por isso eu não me surpreendera, como tantos outros, quando soube que ele não fora se auto-exilar nos EUA ou na Europa e sim aqui, do nosso lado, no pequeno e grandioso país do candombe, da torta frita e do dulce-de-leche Conaprole. Creio que poucos sabem, mas ele, inclusive, fez uma belíssima parceria com o duo uruguaio Larbanois-Carrero (um dos melhores e o mais antigo em atividade), em que desfaz magistralmente o mito da descoberta da América: En la América, la nuestra, de azúcar, cobre y café, no hay motivos para fiesta, 500 años de qué?  Nesse disco, que é uma raridade, há uma gravação com uma amiga nossa, também fronteiriça, de Santa Vitória do Palmar, Maria da Conceição, uma das vozes femininas mais lindas do nosso cancioneiro. Voltemos ao Tribunales. Pedimos alguns cafés e outras tantas medialunas. Pareciam ter muita fome. Enquanto a companheira dele falava sobre vários planos – um tanto mirabolantes, pareciam -, eu o observava o mais discretamente possível. Logo veio à minha mente a frase que estava no mural do cubículo da república dos estudantes, muitos anos antes, em Rio Grande. Ali dizia, em letra cursiva e quase ininteligível, uma estrofe que eu copiara logo no primeiro ano de engenharia (quando então eu tinha 19 anos): Tenho 25 anos de sonho e de sangue e de América do Sul, por força desse destino o tango argentino me vai bem melhor que o blues…  Quanta verdade aquilo dizia para mim. Depois, quando a vida me levou pelo caminho da arte, e a fazer algumas parcerias com músicos […]

Quer ter acesso ao conteúdo exclusivo?

Assine o Premium

Você também pode experimentar nossas newsletters por 15 dias!

Experimente grátis as newsletters do Grupo Matinal!

ASSINE O PLANO ANUAL E GANHE UM EXEMPLAR DA PARÊNTESE TRI 1
ASSINE O PLANO ANUAL E GANHE UM EXEMPLAR DA PARÊNTESE TRI 1

Esqueceu sua senha?

ASSINE E GANHE UMA EDIÇÃO HISTÓRICA DA REVISTA PARÊNTESE.
ASSINE E GANHE UMA EDIÇÃO HISTÓRICA DA REVISTA PARÊNTESE.