Operação Falero

“Eu sou indigesto só da ponte pra lá”

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“Eu sou indigesto só da ponte pra lá” Foto: Carlos Pereira

Neste momento especial do lançamento do seu primeiro romance, José Falero responde a editores e colaboradores da Parêntese. A entrevista aborda seu processo de criação, educação formal, racismo, a vida na periferia entre outros temas.

Nathallia Protazio – Durante as lives de lançamento dos livros da coleção “A voz da Ancestralidade”, da Editora Venas Abiertas, você perguntou a todos os novos autores se cursar Letras havia ajudado ou atrapalhado em suas produções. Além disso, em uma crônica publicada aqui na revista Parêntese, você diz ter entrado na UFRGS como ajudante de pedreiro, quis voltar como aluno, mas que agora sua meta era retornar como palestrante. Qual sua relação com a academia? Desistiu de cursar Letras na UFRGS?

José Falero – Quando eu cheguei no Colégio de Aplicação da UFRGS, onde teoricamente ainda sou aluno, conheci alguns jovens que cursam Letras, e todos eles foram unânimes: decidiram cursar Letras porque queriam ser escritores e acharam que o curso contribuiria nesse sentido, mas o curso matou e enterrou essa vontade. Foi por isso que fiz essa pergunta pros escritores da coleção: eles se formaram em Letras, e eu queria saber se isso não tinha sido um problema. Sobre a minha relação com a academia, eu penso o seguinte: não vivemos um momento propício pra atacar as instituições de ensino formais, e isso até certo ponto parece ter criado uma sensação generalizada de que essas instituições não têm problema nenhum. Têm sim, e muito mais do que costumam admitir os professores, acadêmicos e afins. Se dependesse da escola, por exemplo, eu jamais teria me interessado pela escrita, assim como os jovens que conheci no CAP que cursam Letras desistiram de ser escritores justamente na graduação. É claro que o curso de Letras não foi inventado pra formar escritores, mas daí a matar a vontade de escrever… Isso, pra mim, é um pequeno sintoma de uma doença grave e generalizada. Acredito que haja muita coisa bacana, não só no curso de Letras, mas na universidade em geral, claro, mas aqui estou falando dos problemas, ou dos possíveis problemas. 

Eu tenho vontade de fazer uma graduação, sim. Na verdade, eu gostaria de fazer mais de uma. Gostaria de fazer Ciências Sociais, por exemplo, porque é uma área do saber que me atrai e eu penso que aprofundar os meus conhecimentos nela encaixaria umas peças faltantes no quebra-cabeça da minha visão de mundo. Cursar Letras, pra mim, sempre foi uma ideia mais pragmática do que qualquer outra coisa. O que não falta por aí é vaga pra professor de português, e eu preciso trabalhar, porque viver de livros é meio que impossível, e se eu não me graduar em alguma coisa, corro o risco de voltar pros subempregos injustos aos quais eu sempre tive que me submeter. E ser professor de português, especialmente na educação básica em um colégio da periferia, é uma ideia que me agrada muito. Mas a ideia de atravessar o curso inteiro, admito, não me causa o mínimo de alegria. Na verdade, eu me entristeço e me aborreço só de imaginar. Não por medo do conteúdo, não por preguiça nem nada disso; são os métodos das instituições de ensino formais o que eu abomino. Não acredito neles. Não concordo com eles. Acho difícil de engoli-los. Tanto que nem o ensino médio consegui concluir ainda. É difícil pra mim dar conta.

O autor em aula aberta do programa de pós-graduação em educação (Foto: Marcus Vinicius)

Julia Dantas – Tu recentemente participaste de uma mesa chamada “Territorialidade, pandemia e o acesso: qual o papel político da nossa literatura?”. Eu infelizmente não pude ver a live, então minha pergunta seria justamente essa: qual o papel político da tua literatura?

JF – Eu poderia dizer muitas coisas aqui. Eu poderia, por exemplo, parafrasear a Conceição Evaristo e dizer que “o meu texto não é para adormecer os da Casa Grande e sim para acordá-los dos seus sonhos injustos”. Isso, pra mim, faz todo o sentido. Mas eu estaria sendo desonesto se dissesse que tenho isso em mente quando escrevo. Se o meu texto provocar esse efeito, acho ótimo; se o meu texto puder reforçar a autoestima da galera da quebrada, acho ótimo; se o meu texto puder levar a classe média branca a pelo menos refletir sobre os seus privilégios, acho ótimo. Mas não escrevo com objetivos assim. Não escrevo pra chocar, não escrevo pra exaltar, não escrevo pra emocionar, não escrevo pra acusar, não escrevo pra denunciar. Creio que não seja sempre que os meus textos tenham aspecto militante, politicamente falando, e mesmo os que possuem um aspecto assim não é porque foram escritos pra isso: é só um reflexo de mim mesmo. Explico. Eu tenho falado por aí que gosto de pensar na escrita como filosofia aplicada, e sempre faço questão de lembrar que não sei de onde tirei esse conceito: não sei se inventei, ou se ouvi alguém falar ou se li em algum lugar. Mas faz sentido pra mim. Porque tudo o que eu filosofo de maneira abstrata, isto é, tudo o que borbulha dentro de mim, coisas sobre as quais penso com insistência, ideias que me perturbam ou me assombram, tudo aquilo que é objeto de análise do meu pensamento, tudo isso é o que eu tento concretizar no texto quando vou escrever, mesmo que, em vez de uma crônica totalmente autobiográfica, se trate de uma ficção mais ou menos distante de mim à primeira vista. Isso significa que, não importa o que eu escreva, não importa como eu escreva, ali estará eu; ali estará a materialização da minha forma de pensar; ali estará a expressão do que vai dentro de mim, retratada da melhor maneira que me foi possível retratar. E eu, bem, eu sou uma pessoa que têm refletido muito sobre questões políticas, especialmente nos últimos tempos, e isso, então, reflete nos textos que eu produzo. Mas repare que isso acontece de maneira indireta. Mesmo que o meu texto possua um aspecto político, e portanto possa desempenhar um papel político, não escrevo com esse objetivo. Escrevo pra me expressar. E aqui cabe uma pequena explicação em autodefesa antecipada: por favor, o fato de o meu texto refletir a minha forma de pensar não significa que eu concorde, por exemplo, com os personagens da minha ficção, com o que eles fazem ou pensam; muitas vezes é uma dúvida angustiante, ou mesmo uma aversão insuportável, o que me leva a expressar algo por meio da ficção; nem sempre é uma conformidade. 

Julia Dantas – Além disso, nas crônicas, tu seguido tratas de temas pesados com forte senso de humor. Eu admiro demais quem sabe escrever humor, e queria saber por que essa escolha.

JF – Sobre humor, acho que a resposta anterior também contempla essa questão: se isso está no texto, é um reflexo de mim. E em alguma medida eu concordo com essa observação. Porque eu tenho, assim como quase todas as pessoas que eu conheço no lugar onde eu nasci, uma tendência a encarar as coisas com humor, por vezes coisas trágicas e pesadas. Talvez isso seja indício de uma estratégia subconsciente pra suportar uma vida inteira rodeada por desgraças e mais desgraças, e sem perspectiva de mudança. Mas isso é outro assunto.


Déborah Salves – Qual é a pergunta que tu mais ouve, sendo um escritor que marca o lugar de origem na periferia?

JF – A pergunta que eu mais ouço é como foi que comecei a ter interesse por leitura e escrita. Acho que deve ser uma pergunta meio de praxe, independentemente da origem do escritor, mas tenho a impressão — e a princípio é só uma impressão — de que, no meu caso, pode ser um pouco mais do que isso. Às vezes me parece que, por eu ser de periferia, as pessoas me fazem essa pergunta muito mais por me considerar uma exceção absurda do que pelo costume de fazer esse tipo de pergunta a escritores. 

Déborah Salves – Qual o maior elogio que tu já recebeu de um(a) crítico(a)? E de um(a) leitor?

JF – O maior elogio que já recebi de uma especialista em literatura foi quando Dalva, minha namorada, leu em primeira mão o conto “Atotô”, do Vila Sapo, e disse: “Essa é uma das coisas mais bonitas que eu já li na vida”. E olhe que quando ela não gosta do que eu escrevo, ela costuma ser sincera, por vezes até mesmo meio dura. Por isso, acreditei no que ela disse, e fiquei absolutamente emocionado. Nunca vou esquecer o que senti. E o maior elogio de um leitor foi quando um mano aqui da quebrada, uma das pessoas mais inteligentes que eu já conheci, disse que o Vila Sapo é um livro que qualquer pessoa da vila poderia ter escrito. 

Déborah Salves – Considerando a experiência escolar, como tu acha que professores podem atuar pra permitir que o talento floresça?
JF – Sobre fazer talento florescer, bem, eu não acredito em talento. Mas isso é uma discussão gigante. E não vou me fazer de desentendido pra fugir da pergunta: tu quer saber como eu acho que os professores poderiam contribuir pras pessoas desenvolverem interesse pelas coisas nas quais fatalmente se tornarão exímias caso tenham a oportunidade de praticar o suficiente? Se for isso, te digo que, considerando a minha experiência escolar, uma forma importante de os professores conseguirem contribuir seria a aplicação de métodos freirianos. Mas aplicar de verdade, e não ficar citando o Paulo Freire feito um papagaio e fazer justamente o contrário na prática.

Déborah Salves – Considerando que tu namora outra escritora, como funciona a troca de referências e de ideias pros escritos de um e de outro? 

JF – Sobre as minhas trocas com Dalva, bem, basicamente ela me ajuda uma tonelada e eu ajudo ela um grama. Pelo menos essa é a minha impressão sincera; ela normalmente discorda, ela costuma dizer que eu ajudo bastante, sim. Mas não vou falar por ela; vou falar só por mim. E, veja só: sempre caímos na história da escrita como filosofia aplicada. Dalva joga lenha na fogueira dos meus pensamentos; ela me faz refletir sobre coisas que jamais refleti na vida; ela me apresenta perspectivas diferentes sobre os mais variados assuntos; a minha relação com a Dalva é a base de todo o progresso intelectual e emocional que consegui fazer nos últimos 2 anos; e tudo isso influencia grandemente a minha escrita. Não se trata apenas de ideias pontuais pro que eu escrevo, ou sugestões de referências; Dalva é quase coautora do que eu escrevo e do que eu digo por aí, porque tudo isso reflete o meu pensamento, e o meu pensamento, tal como se apresenta hoje, é, em grande parte, resultado da minha relação com ela. Agora, como eu contribuo pra escrita dela, seria melhor ela responder. Até porque, do meu ponto de vista, tenho a impressão de que a minha contribuição se limita a falar sobre vírgulas eventualmente fora do lugar.  


Sílvia Lisboa – O que tu acha do teu livro custar 60 reais?

JF – Eu não acho que seja um problema o meu livro custar 60 reais. O que eu considero um problema é que muita gente não tenha 60 reais pra pagar num livro — gente com a mesma origem social que eu, ainda por cima. Em outras palavras, eu não acho o valor do livro injusto; o que eu acho injusto é a distribuição de renda deste país, que chega a impossibilitar pessoas de comprarem um livro que custe esse valor. Uma coisa que eu aprendi com o meu primeiro livro, o Vila Sapo, é que se uma coisa custa muito barato, pode ter alguém se ferrando por causa disso. No caso do Vila Sapo, que foi e vem sendo vendido a 30 reais, não há lucro. É zero lucro. O dinheiro que entra mal cobre as despesas. E quais são essas despesas? Bom, tem que pagar a gráfica que imprimiu os exemplares, tem que pagar o frete da tiragem, tem que pagar a parte das livrarias que vendem o livro, tem que pagar os envios por correio quando sou eu mesmo que vendo. E há muito trabalho não-remunerado. Por exemplo, eu gasto tempo e energia fazendo divulgação sozinho e não recebo salário por isso, eu gasto tempo e energia conversando com um monte de gente que entra em contato demonstrando interesse pelo livro e não recebo salário por isso, eu me desloco pela cidade pra ir aos correios ou ir entregar livros pessoalmente e não recebo salário por isso, eu tenho que armazenar centenas de endereços e códigos de rastreio dos correios em uma planilha e ficar controlando quais livros chegaram e quais não chegaram e tenho que formalizar reclamação com os correios quando um ou outro livro não chega e tenho que ficar trocando e-mail com eles até a situação se resolver e não ganho salário pra isso, eu escrevi o livro e não ganhei uma remuneração adequada por isso, o lançamento do livro envolveu dezenas de pessoas que trabalharam sem serem remuneradas, fazendo coisas como varrer, limpar, organizar e decorar o espaço, sem contar as pessoas que toparam participar da roda de conversa e não receberam um centavo por isso, nem mesmo alimentação ou remuneração referente ao deslocamento, a pessoa que diagramou o livro, fez a edição e todo o contato com a gráfica trabalhou de graça, a artista que fez a capa recebeu apenas um pequeno valor simbólico, cerca de 50 vezes menor do que ela teria cobrado pelo trabalho. Tudo isso soma um enorme gasto de tempo e energia não-remunerados por parte de diversas pessoas. Mas o Vila Sapo custa 30 reais. Uma maravilha, não? Pra alguns, deve ser; pra outros, nem tanto. E Os supridores, agora, custa 60 reais, o dobro do Vila Sapo, mas é um livro 5 vezes maior (são cerca de 500 mil caracteres no romance contra mais ou menos 90 mil caracteres no livro de contos). Essa diferença de tamanho, evidentemente, influencia no preço: é mais trabalho pros revisores, é mais trabalho pros diagramadores, é mais trabalho pra todo o mundo, é mais tinta, é mais papel. Papel, inclusive, que acabou de ficar mais caro. Enfim. Eu não acho o valor do livro injusto, e é muito fácil de demonstrar que não é um valor injusto. 

Sílvia Lisboa – Tu te considera envolvido neste onda de um periférico ser usado pela academia e pelas editoras para preencher cotas? Isso te traz sentimentos conflitantes? 

JF – Quanto a eu me considerar ou não envolvido na onda de um periférico ser usado pela academia e pelas editoras para preencher cotas, tenho pensado bastante sobre esse tipo de coisa. Digo, tenho me perguntado por que estou publicando por uma grande editora agora, por que sou convidado pra falar nas universidades etc., qual é a razão, ou quais são as razões, por trás disso. E a princípio a única certeza que eu tenho é que se trata de um assunto complexo, com diversos fatores, e não um só. Eu acho que há, sim, “essa onda de um periférico ser usado pela academia e pelas editoras para preencher cotas”, como tu diz, e não posso me considerar exceção nesse sentido. É claro que eu gostaria de ver muito mais gente da periferia sendo publicada por grandes editoras, por exemplo, e não por serem pessoas da periferia, mas porque produzem textos bons e porque há demanda pro trabalho delas. Agora, tudo precisa começar de uma maneira, não? Dentro dessa questão de a periferia ganhar espaço, eu acredito que hoje as coisas são melhores do que ontem, e que amanhã elas podem ser melhores ainda, desde que os interessados nisso trabalhem nesse sentido — e eu, não tenha dúvida, sou um interessado nisso. Quanto a sentimentos conflitantes, sim, quem é próximo de mim é testemunha de que eu tenho experimentado muitos e muitos sentimentos conflitantes. Mas o meu barraco de madeira podre está prestes a desabar em cima de mim e da minha mãe, e eu acho que isso me ajuda a engolir sentimentos conflitantes.


Ricardo Romanoff – Há um interesse nacional despertado pela escrita de autores negros de Porto Alegre que escrevem sobre experiências da população negra na cidade. Além de ti, cito o Jeferson Tenório e o Paulo Scott. Que te parece essa novidade? Tem algo em comum entre vocês três?

JF – Bem, eu não escrevo sobre experiências da população negra na cidade. Como eu disse na outra resposta, eu escrevo pra me expressar, e essa expressão resulta em muitas coisas, entre as quais, eventualmente, as experiências da população negra na cidade. E eu não posso falar o que penso dessa “novidade” sem usar o termo “demanda reprimida”. Pra início de conversa, há uma demanda reprimida sendo suprida através dessa “novidade”, correto? Então cabe a pergunta: por que existe essa demanda reprimida? Quem reprimiu e ainda reprime essa demanda e por que faz isso? Pra mim, quando as pessoas abstraem o assunto dizendo “demanda reprimida”, perde-se um aspecto importante do significado disso: vivemos em um país extremamente racista, e um dos resultados disso é a invisibilização das produções artísticas por parte das pessoas negras, que gera essa “demanda reprimida”, já que existe uma gigantesca quantidade de pessoas interessadas nessas produções invisibilizadas: um exemplo de como, no Brasil, a mentalidade racista por vezes consegue ter mais força do que a própria mentalidade capitalista: consente-se em perder dinheiro, desde que as produções artísticas por parte das pessoas negras sigam invisibilizadas. Tudo isso pra dizer o seguinte: essa “novidade” que tu diz, pra mim, é apenas uma pequena rachadura na represa que mantém as produções artísticas por parte das pessoas negras invisibilizadas há séculos. 

Sobre termos algo em comum, eu acho que o máximo que posso fazer é dizer obviedades: somos pessoas, somos homens, somos negros, somos escritores. Para além disso, eu acho que eu só poderia identificar semelhanças menos óbvias entre nós se eu conhecesse a fundo a vida do Tenório e a vida do Scott, o que não é o caso, embora eu me considere amigo deles. Entre as nossas produções, não vejo semelhança nenhuma: acho que eu, o Tenório e o Scott fazemos literatura de maneiras radicalmente distintas, o que só demonstra que, enquanto homens negros, somos diversos. 

Ricardo Romanoff – Crônica x conto x romance: como tu trafega por esses gêneros?

JF – Sobre trafegar entre os gêneros, eu trafego assim: quando escrevo um texto, qualquer que seja, procuro desenvolver o conteúdo que concebi, dando a ele a forma que concebi; sou ao mesmo tempo o arquiteto e o engenheiro do texto, e esses dois, o arquiteto e o engenheiro, meio que se detestam: o arquiteto quer a coisa de um jeito, o engenheiro diz que não é possível e propõe uma alternativa, eles discutem, quase se estapeiam, e nas ocasiões em que conseguem chegar a um consenso, esse consenso é o texto tal como fica pronto. Isso é o que há em comum em tudo o que eu escrevo, seja crônica, conto ou romance. A crônica e o conto, do jeito que eu os trabalho, compartilham algumas características a mais. Por exemplo, são textos curtos, então é onde eu procuro desenvolver ideias mais simples. No caso das crônicas, essas ideias simples geralmente são mais autobiográficas e relacionadas ao meu tempo, ao que a sociedade é hoje, ou ao que eu sou hoje, ainda que esse eu de hoje reflita sobre lembranças de outras épocas ou fatos históricos remotos. No caso dos contos, as ideias simples que eu procuro desenvolver são mais ficcionais, menos autobiográficas, e não são necessariamente atreladas ao que a sociedade é hoje ou ao que eu sou hoje. Nas crônicas, eu exercito muito mais o meu olhar, seja direcionando-o pra dentro de mim mesmo, seja direcionando-o pra o que está ao meu redor, e nos contos eu exercito muito mais a imaginação, o faz-de-conta, as opiniões e visões de mundo interpretadas por mim mas que a princípio não são minhas, embora eu possa eventualmente concordar com elas (ou não). 

No caso do romance, o que eu procuro fazer é um conto grandalhão. Mas não apenas isso. Como há mais espaço disponível em um romance, eu procuro aproveitar esse espaço extra em relação ao conto basicamente de duas formas: desenvolvendo ideias mais complexas e construindo subtramas. Em outras palavras, um conto meu terá uma única ideia ficcional simples, uma única trama simples; já um romance meu terá uma ideia ficcional central um pouco mais complexa, uma trama central um pouco mais complexa, rodeada de ideias ficcionais menores, de tramas menores, isto é, uma história maior e principal rodeada de histórias menores e secundárias, que às vezes são auxiliares e às vezes são independentes. 

Ricardo Romanoff – Como é a experiência da pandemia na periferia?

JF – Sobre a pandemia na periferia, eu vou dizer o seguinte: a periferia é o lugar onde moram as pessoas que não podem se dar ao luxo de ficar trancafiadas dentro de casa sem trabalhar ou trabalhando remotamente. A periferia é onde moram as pessoas que precisam sair todos os dias, haja pandemia ou não haja, chova canivete ou não chova. A periferia é onde moram as pessoas que pegam ônibus lotados todos os dias pra ir limpar a casa dos outros, pra ir construir a casa dos outros, pra ir recolher o lixo dos outros, pra ir cozinhar a comida dos outros, pra ir ficar de porteiro no prédio dos outros. As pessoas que têm o privilégio de ficar em casa são servidas de todas as formas por pessoas que moram na periferia e precisam sair de casa pra ir servi-las. Quando eu vejo as pessoas aglomeradas no boteco, por exemplo, eu não tenho coragem de dizer pra elas que elas não deveriam estar ali aglomeradas, depois de elas terem pego ônibus lotados de ida e volta pra ir servir as pessoas que podem ficar em casa fazendo textão no Facebook. Eu não tenho coragem de falar pras pessoas da periferia que elas não podem se aglomerar, quando eu lembro que muitas delas moram com 5 ou 6 pessoas em uma casa que seria pequena pra 2, ou quando eu lembro que por vezes há diversas casas amontoadas em um pátio minúsculo. Eu não tenho coragem de falar pras pessoas da periferia pra comprarem álcool em gel quando eu lembro que boa parte delas perdeu o emprego ou tá com o salário reduzido, quando eu lembro o preço que tá o arroz e o feijão e o tomate e o leite, sem se falar na carne. Eu não tenho coragem de recomendar que as pessoas lavem as mãos com frequência quando eu lembro que elas moram no lugar onde nunca taparam as valas de esgoto e onde falta água por dias a fio. Então eu te digo o seguinte: a pandemia na periferia tá sendo como pode ser. Entende? Não aconteceu nenhum milagre por causa da pandemia. Há esforço de conscientização, claro, mas há também muitos e muitos fatores que dificultam tudo.


Marcela Donini – Sobre o público: que tipo de retorno mais te emociona? Tu pensa num perfil de público específico quando escreve? 

JF – O tipo de retorno que mais me emociona é o de pessoas parecidas comigo, com a mesma origem social que a minha, quando essas pessoas leem o que eu escrevi e me dizem que gostaram. Não, eu não escrevo pensando no público. Isso cai, mais uma vez, no que eu disse sobre ver a escrita como filosofia aplicada. Eu escrevo pra concretizar abstrações filosóficas, ou seja, pra me expressar, e isso não passa por pensar no público.


Lolita Beretta – Tu é um autodidata e te aventura em atividades bem variadas. O que é que deve vir depois da literatura?

JF – Eu gosto de escrever programas de computador. Me dá muito prazer. É o que vem logo após a literatura, antes de todos os outros prazeres. 

Lolita Beretta – Ser indigesto, me parece, é um ponto importante para ti, politicamente. Queria que tu falasse mais sobre a recusa de ser bem digerido, e como é isso pessoalmente?

JF – Sobre ser indigesto… Veja: tu coloca como se o ato de ser indigesto fosse um lance ativo, mas eu vejo como um lance passivo. Eu sou como eu sou, e sou indigesto justamente porque sou como sou. Eu sou indigesto porque o meu modo de falar é historicamente menosprezado, porque o meu modo de me vestir é historicamente menosprezado, porque toda a minha construção cultural é historicamente menosprezada, porque as pessoas que vêm de onde eu vim são historicamente menosprezadas; eu sou indigesto pelo mesmo motivo que antigamente as pessoas eram presas por portar consigo um cavaquinho ou um pandeiro; eu sou indigesto pela mesma razão que o RAP foi criminalizado no passado e o Funk é criminalizado hoje em dia; eu sou indigesto porque estou inserido em uma sociedade que detesta pessoas como eu. Cabe explicar, claro, que eu não sou indigesto pras pessoas que têm a mesma origem social que eu; eu sou indigesto só da ponte pra lá. Então, perceba como é um lance passivo: eu não preciso fazer nada pra ser indigesto, basta eu continuar sendo como sempre fui. O lance ativo que eu poderia fazer, pra ser melhor digerido, seria negar as minhas raízes, negar as minhas origens, negar o meu jeito de ser, desmerecer o meu próprio capital cultural, enfim, me tornar, aos poucos, uma outra pessoa, uma versão falsificada de mim mesmo, tudo pra ser melhor digerido da ponte pra lá. E é isso que me recuso a fazer. 

Lolita BerettaVamo dale pra não tomale. Queria que tu falasse sobre o “dale”.

JF – Sobre “dale pra não tomale”, bem, vamos por partes. Em primeiro lugar, conforme tu deve imaginar, “dale” vem de “dar-lhe”. Mas não tem nada a ver com dar algo a alguém ou bater em alguém. “Vamo dale”, no contexto dessa frase, significa “fazer essa coisa”. Por exemplo, quando tu convida alguém pra uma live, coisa que agora está na moda, a pessoa pode te responder “vamo dale”, ou seja, “vamos fazer isso, vamos fazer a live”. E uma coisa muito comum na periferia é um jogo de palavras dar origem a expressões com significados pouco intuitivos pra quem é de fora. O “vamo dale” logo virou “vamo dale pra não tomale”. Por quê? Por nada. Porque rima. Porque é curioso. Porque é um jogo de palavras. Porque sugere uma coisa, quando na verdade significa outra. Hoje em dia, simplesmente concordar em fazer algo é “vamo dale”, e “vamo dale pra não tomale” é como dizer “sim, vamos fazer, não podemos perder essa oportunidade”. 

Com a obra Vila Sapo no Slam da Minas (Foto: Brenda Cruz)

Lolita Beretta – Como foi o processo de editar Vila Sapo, pela Venas Abiertas, e ser editado, agora, pela Todavia? 

JF – Sobre ser editado na Venas Abiertas e ser editado na Todavia, são duas experiências maravilhosas, cada qual à sua maneira. Tanto Karine, minha editora na Venas, como o Leandro, meu editor na Todavia, não mediram esforços pra fazer o melhor possível com o meu texto. É claro que a Todavia, por ser uma editora grande, tem possibilitado uma série de coisas legais ao meu trabalho: há diversos profissionais contribuindo no projeto, cada qual em sua área; o livro pode chegar ao mercado com um bom preço apesar de ser bem grande; os exemplares rapidamente chegaram em livrarias de todo o país, etc., etc., etc. A Venas Abiertas, por outro lado, tornou realidade o Vila Sapo, livro que me trouxe e ainda me traz muitas alegrias, e vale lembrar que, àquela altura, quando a Venas, na figura da Karine, prestou atenção em mim, leu o que eu escrevia e botou fé no meu trabalho, ninguém nunca tinha ouvido falar de mim, e diversas editoras pras quais eu tinha enviado originais nem mesmo tinham se dado ao trabalho de lê-los. Por essa e por outras razões, sempre vou ter um carinho especial pela Venas Abiertas, na figura da Karine Bassi, e por todo o processo de feitura do Vila Sapo

Lolita Beretta – O que tu gostaria de ver na Parêntese? Ou: se tu fosse o editor de uma revista, o que estaria nela?

JF – Se eu tivesse total poder e recursos pra fazer da Parêntese o que eu bem entendesse, só haveria pessoas pretas trabalhando nela, todas vindas da periferia, e a maioria seria composta por mulheres. A revista falaria exclusivamente sobre samba, Funk, RAP, grafite, literatura marginal, slam e tudo mais que fosse relacionado à cultura negra e à cultura periférica; todas as entrevistas e reportagens, enfim, todo o conteúdo da revista seria nesse sentido. Por que eu faria isso? Porque, conforme sabemos, não existe essa história de conteúdo universal, objetivo, isento. Uma coisa que as pessoas tem debatido muito é que a branquitude também reflete uma etnia, e não a cosmovisão universal que serve pra todos. Então, quando tu observa com atenção, tu percebe que diversos veículos e segmentos da cultura são 100% classe média branca, isto é, 100% do conteúdo desses veículos e segmentos refletem a visão de mundo da classe média branca, apesar de eles imaginarem que seja um conteúdo universal. Não é o caso da Parêntese, claro, que faz um esforço tremendo buscando diversidade e agregação, conforme tenho visto de perto há um ano. Mas, como essa visão de mundo 100% classe média branca é o caso de muitos veículos e segmentos da cultura, eu penso que seria lindo, útil e revolucionário um espaço 100% voltado pra cultura negra e pra cultura da periferia. A demanda reprimida, sobre a qual falei antes, agradeceria.


Adriana Martorano – Como tu lida com religião, com existência ou não de deus, espiritualidade, esse mundo todo?

JF – Eu lido com isso de um jeito diferente a cada dia. Às vezes simplesmente nem lido, esqueço, não penso nisso. Às vezes sou ateu, e sou capaz de levar um debate até as últimas consequências pra defender o ateísmo. Às vezes acredito em Deus, isto é, acredito no senso comum eurocêntrico e falocêntrico do que seria uma divindade, e também nessas ocasiões sou capaz de levar um debate até as últimas consequências pra defender a minha crença daquele momento. Às vezes sinto que Obaluaê me protege. Às vezes fico pensando que não faz o menor sentido existir apenas um único Deus. Às vezes fico pensando que não faz o menor sentido os deuses serem masculinos. Enfim. Eu sou uma bagunça.


Luís Augusto Fischer – Por que tu jogou fora os teus mangás autorais? O que eles tinham? Como é aquela história de que vizinhos que sabiam que tu tava escrevendo te procuravam para saber se eles iam aparecer na tua história?

JF – Sim! A primeira série de mangás que eu fiz, lá na adolescência, tinha os meus parentes, amigos e vizinhos como personagens. Eu colocava todos eles, e eu também, em situações absurdas: lutas fantásticas, aventuras incríveis. Esses personagens literalmente se matavam de formas violentíssimas. E depois eu dava um jeito de trazer os mortos de volta à vida. Pra depois se matarem de novo. As minhas referências eram muito claras naquela história: eram os meus animes e jogos de vídeo game preferidos na época: Cavaleiros do Zodíaco, Dragon Ball, Yu Yu Hakusho, Mortal Kombat, The Legend of Zelda e por aí vai. Era muito engraçado. Os meus amigos iam lendo os mangás e tiravam sarro um do outro com base nos acontecimentos da história, se um matou o outro, ou se um deu uma surra no outro. Alguns amigos meus que não estavam na história pediram pra eu criar personagens representando eles também. Outros vinham me perguntar se algum dia eu ia ressuscitar os personagens que tinham morrido. Uns queriam que eu contasse antecipadamente o que iria acontecer nos números seguintes, o que hoje chamam de spoiler. Eu não dizia nada. O pessoal só descobria na hora que a revistinha ficava pronta. Então eles ficavam especulando. E volta e meia eles vinham aqui em casa perguntar se o novo número já tava pronto. Bah, meu. Nem me lembra disso. Eu me arrependo muito de ter jogado os meus mangás fora. Mas eu joguei fora porque fiz um progresso estético brutal ao longo da feitura deles. Se tu pegasse a primeira revistinha e comparasse com a última, feita 3 anos depois, não acreditaria que a mesma pessoa tinha feito ambas. Os desenhos melhoraram muito, os diálogos melhoraram muito, as tramas melhoraram muito, ficou tudo muito melhor! E isso me dava vergonha. Quer dizer: eu tinha vergonha dos primeiros números, e tinha orgulho dos últimos. Mas naquele tempo eu era ingênuo. Eu ainda não entendia que esse progresso jamais se completa, porque a gente sempre vai progredindo mais e mais. Então o que eu pensei? Pensei assim: “agora que eu desenho bem e crio boas histórias, vou jogar tudo fora e fazer algo que seja bom do início ao fim”. E foi o que eu fiz. Joguei todos os números fora e iniciei um novo mangá do zero. Daí, sim! Eram desenhos tão maduros, que sou capaz de gostar deles até hoje; a história que eu queria desenvolver também era mais original do que a anterior, e eu ficava muito empolgado pensando nos desdobramentos dela. Mas sabe o que aconteceu, então? Eu comecei a ler livros. E isso provocou uma revolução tão grande dentro de mim, que tudo ficou em suspenso. Eu não fazia mais nada. Eu só lia. E adivinha só? Quando decidi retomar a nova história, isto é, quando decidi retomar o desenvolvimento do meu segundo mangá, peguei toda a história e comecei a tentar transformar em um livro, em vez de fazer um mangá. Foi o primeiro livro que tentei escrever na vida.

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