Operação Falero

Vinte anos em dois

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Vinte anos em dois

Eu acredito que não tenha nada aqui que eu já não tenha escrito ou falado pessoal e publicamente. Temos essa estranha mania de declarar amor uns pelos outros a todo momento. Quero deixar registrado a tua sorte de ter uma irmã canceriana. É, eu acredito nessas coisas e funciona muito bem para nós; eu, aquela que ama o irmão como um filho, e o irmão leonino que sempre teve essa aura popstar; o ídolo e a fã incondicional. E lembro de todos os momentos de orgulho: a banda marcial do colégio, os desenhos, o teclado, o cavaco, banjo, violão… Inclusive, na época do violão te levei para o teatro comigo, onde tu compôs lindamente, dividimos a cena e tu ainda desenhou a arte do espetáculo. Eu sou boba de desperdiçar esses talentos? Não só te levei para cena, como te joguei no meio de reflexões sobre dialética, comunismo, e nossas caminhadas rumo aos ensaios eram basicamente a formação da nossa consciência de classe.

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Eu acredito que não tenha nada aqui que eu já não tenha escrito ou falado pessoal e publicamente. Temos essa estranha mania de declarar amor uns pelos outros a todo momento. Quero deixar registrado a tua sorte de ter uma irmã canceriana. É, eu acredito nessas coisas e funciona muito bem para nós; eu, aquela que ama o irmão como um filho, e o irmão leonino que sempre teve essa aura popstar; o ídolo e a fã incondicional. E lembro de todos os momentos de orgulho: a banda marcial do colégio, os desenhos, o teclado, o cavaco, banjo, violão… Inclusive, na época do violão te levei para o teatro comigo, onde tu compôs lindamente, dividimos a cena e tu ainda desenhou a arte do espetáculo. Eu sou boba de desperdiçar esses talentos? Não só te levei para cena, como te joguei no meio de reflexões sobre dialética, comunismo, e nossas caminhadas rumo aos ensaios eram basicamente a formação da nossa consciência de classe.

Mas a verdade é que, como boa família de pobre, construímos os vínculos mais fortes nos piores momentos. E haja vínculo, porque não foram poucas as perdas e desilusões. Nossa sociedade secreta “Dim Dim” surgiu do primeiro e maior baque: a saída da Vila Sapo. O que se entenderia como uma evolução social, para nós, crianças de dez e seis anos, era sair de um lugar cheio de amigos e pessoas parecidas conosco, com pátio, bichos e muitas aventuras, para ir morar num apartamento de um quarto, duas ou três vezes maior que nosso barraquinho, onde não conhecíamos ninguém, mas todos nos conheciam como os filhos do empregado. Ali, não podíamos fazer barulho, tínhamos uma vista linda da nossa janela do último andar que dava ver toda a cidade, mas para apenas ver e entender que não fazíamos parte dela. Foi horrível para nós. Éramos então “Dim Dim”, e desse vínculo surgiu uma amizade indestrutível. 

José e Caroline Falero na infância (Acervo pessoal)

Nossa imensa imaginação nos proporcionou os melhores jogos inventados nas viagens de ônibus. Brincadeiras pela casa, pelas escadas, com nossas bicicletas pelas ruas da cidade baixa e pelo estacionamento, todas as tardes, enquanto o pai colocava o lixo de todos os condôminos para a rua. Um vínculo onde tudo era extremo, tanto o amor quanto o ódio, quando brigávamos só tínhamos a nós mesmos para descontar nossos descontentamentos. Isso era inconscientemente compreendido, porque estávamos sempre prontos para o perdão e a reconciliação, afinal éramos só nós dois. 

A ida para o centro foi tirando tudo que mais apreciávamos. Logo veio a separação dos nossos pais, que nos levou de volta para a Vila Sapo (eu por pouco tempo). Mas nada era como antes. Tu e a mãe em colapso; e eu sobrecarregada com as demandas da adolescência: namorado, ensino médio/técnico/estágio e segurando uma barra que me envelheceu vinte anos em dois. Depois, perdemos o pai, aos trinta e sete anos. No ano seguinte, a mãe adoeceu e o resto meio que se arrastou ou estagnou para ti até fevereiro de 2019.

Lançamento de Vila Sapo (Foto: Diego Apoli)

Com o lançamento do livro Vila Sapo, era hora de recuperar o tempo perdido. Tem sido a tua vez de viver vinte anos em dois e eu sei que não está sendo fácil. Mas tu aguenta, porque além de não ter outra opção, tu não está sozinho. Uma linda rede de pessoas que te amam e que estão contigo na tua escrita e ao teu lado. Estamos todos orgulhosos, mas nada surpresos com a situação. Faz sentido essa escrita. Enquanto eu, muito facilmente, colocava para fora meus sentimentos, tu calou e guardou por um tempo, que pra mim parece ser humanamente impossível de suportar, e que agora tá sendo revelado ao mundo, trazendo à tona não só os teus sentimentos, mas o de todos os teus. Uma escrita de quem observa calado, há anos. Uma escrita que não deve ser calada, deve ser lida aos gritos, a plenos pulmões.

Eu acredito que tudo tenha acontecido desse jeito tortuoso porque passamos por todas essas coisas, a maioria delas terríveis, mas eu repito que, como boa família de pobres, soubemos fazer e preservar o melhor do pior, e desse mexe construímos nossa intimidade, nossa parceria, de poder contar uns com os outros pra tudo: produção, vídeo, canto, cena, e para as ideias mais absurdas como dormir três numa cama de solteiro (como era bom). E, por fim, o amor, verbalizado e praticado diariamente, seja em longas noites de cafuné ou nas palavras mais duras. Porque amor também é repreender, chamar a atenção e de vez em quando dar umas chineladas e tabefes se for necessário. Afinal, somos eu, tu e a mãe tendo que dar conta de amadurecer vinte anos em dois. 


Caroline Falero é diretora, atriz e arte-educadora, licenciada em Teatro pela UERGS. Iniciou sua trajetória artística em 2002 e desenvolve desde então uma pesquisa com foco da cena um teatro periférico e popular, em diálogo com o Teatro Épico, de Bertolt Brecht. Desde 2015 está voltada para a temática racial e o teatro de bonecos, focada na ludicidade de crianças negras e tendo como instrumento as bonecas de tecido e amarração “abayomis”.

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