Operação Piglia

A ficção-ensaio de Ricardo Piglia

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A ficção-ensaio de Ricardo Piglia

Na literatura de Ricardo Emilio Piglia Renzi (Adrogué, Argentina, 1940 – Buenos Aires, 2017), é difícil definir o limite entre ficção e ensaio. Nisso, aliás, Piglia não está sozinho, uma das linhas de força da literatura argentina é a ficção ensaística, nos moldes do que fizeram, guardadas as enormes diferenças, Domingo F. Sarmiento, Jorge Luis Borges ou Victoria Ocampo, para citar três exemplos clássicos. Ricardo Piglia, além de inscrever-se nessa tradição da ficção-ensaio, dedicou parte importante de sua obra a comentá-la, seja em seus romances e contos, seja em diários, conferências, aulas, programas de televisão, documentários, numa mostra da variedade de sua atuação. Não parece exagero afirmar que o principal assunto literário de Piglia é a própria literatura argentina, seus autores canônicos, o papel preponderante da tradução, o que escritores argentinos aportam à forma literária, digamos, mundial. Mas essa matéria literária vem, em geral, arquitetada com elementos da narrativa policial (detetives, crimes, mistérios, complôs…) o que dá à literatura de Piglia um calor romanesco, embora o ensaísmo cerebral esteja sempre presente. E essa temática literária elaborada em forma detetivesca vem atravessada pela política argentina, ela mesma marcada por massacres, crimes, desaparecimentos e complôs1 de toda ordem.

A estreia literária de Piglia se deu no conto, com a coletânea A invasão (1967)2 em que já aparecem recursos de sua obra madura, o alterego Emilio Renzi, por exemplo. Relembrando o nome completo de Piglia: Ricardo Emilio Piglia Renzi. Emilio Renzi vai aparecer como personagem ou narrador dos principais livros de Piglia e também nos três tomos de seus diários, provocativamente intitulados Os diários de Emilio Renzi (2015, 2016, 2017)3. Se por um lado, essa sobreposição entre autor e narrador/personagem pode levar à leitura da obra de Piglia como metaliterária ou autoficcional, recurso muito presente na ficção contemporânea, por outro, vale destacar que Emilio Renzi se transforma a cada livro. Embora exerça atividades relacionadas à intelectualidade (professor, jornalista, escritor, crítico literário), o que o aproxima de Ricardo Piglia, sua tarefa, em cada enredo, está também associada à resolução de um crime/mistério, dificilmente confundível com a atuação da pessoa física Ricardo Piglia. Esse jogo de espelhos propositalmente criado por Piglia pode ser entendido como mais uma mostra da mescla ficção e ensaio em sua obra, na medida em que ficcionaliza inclusive os seus diários, onde também discute ensaisticamente temas políticos e literários. 

A obra seguinte, Nome falso: homenagem a Roberto Arlt (1975)4, é um exemplo claro da ficção ensaística que comentamos antes, explícita desde o subtítulo. No enredo desse livro, um crítico literário na tarefa de detetive, às voltas com a descoberta de um texto inédito de Arlt, esboça sua leitura da narrativa do romancista, um dos assuntos preferidos de Piglia. O comentário sobre Roberto Arlt vai reaparecer em Respiração artificial (1980)5, principal romance de Piglia, dessa vez incluído em um panorama da literatura argentina dos séculos XIX e XX.      

O projeto literário de Piglia em Respiração artificial é pra lá de ambicioso. Na primeira parte do romance, a partir da criação de quatro personagens literários – Enrique Ossorio (nascido em 1810), Luciano Ossorio (1870), Marcelo Maggi (1910) e Emilio Renzi (1940) – Piglia trata de quatro momentos-chave da história argentina: a ditadura de Juan Manuel de Rosas na primeira metade do século XIX; o boom econômico e populacional da virada do XIX para o XX; o golpe militar de Uriburu, que derrubou o presidente Yrigoyen em 1930; o golpe civil-militar de 1976. Esse enquadramento histórico, no entanto, não é nada linear, muito menos evidente; vai se revelando tortuosamente a partir do presente do romance (entre 1976 e 1979) e da perspectiva do narrador Emilio Renzi, empenhado em desvendar a história da família (Renzi é sobrinho de Maggi, que é genro de Luciano, que é neto de Enrique).

Se na primeira parte do romance, a história familiar de Renzi esconde/revela a história política argentina, na segunda parte ela vai desencadear uma discussão sobre a história literária argentina. Seguindo o rastro do tio desaparecido6, Renzi se desloca da capital para o interior do país (“Buenos Aires, aleph da pátria, por um desrespeitoso privilégio portuário”) onde conhece Tardewski e outros estrangeiros com quem inicia uma “payada intelectual” (a expressão é de Piglia). A simples presença desses estrangeiros na província argentina, e a denominação deles como “payadores” – esses improvisadores repentistas da tradição popular – já retoma traço importante da literatura argentina. Eles passam em revista, não sem ironia, as trajetórias de Pedro de Ángelis, Paul Groussac, Charles de Soussens, William Henry (Guillermo Enrique) Hudson, Witold Gombrowicz e suas relações com Esteban Echeverría, Miguel Cané, Leopoldo Lugones, Ricardo Güiraldes, Jorge Luis Borges. Essas parcerias entre a elite argentina e os estrangeiros aclimatados aparecem no romance como sátira (“esses europeus tinham conseguido criar o maior complexo de inferioridade que qualquer outra cultura nacional jamais sofrera”), bem como a avaliação sobre o lugar de Borges na tradição argentina (“o melhor escritor argentino do século XIX”) e Roberto Arlt (“com a morte de Arlt, foi ali que a literatura moderna da Argentina chegou ao fim, o que resta é um páramo sombrio”). Essa leitura irônica da história literária argentina dá o tom da segunda parte de Respiração artificial. No entanto, o desfecho do romance é sério, com o imaginário encontro entre Kafka e Hitler. Aqui a fantasia rende uma homenagem à literatura:

Kafka faz em sua ficção, antes de Hitler, o que Hitler lhe disse que ia fazer. Seus textos são a antecipação daquilo que via como possível nas palavras perversas daquele Adolf, palhaço, profeta que anunciava, numa espécie de sopor letárgico, um futuro de uma maldade geométrica. Um futuro que o próprio Hitler via como impossível, sonho gótico onde chegava a transformar-se, ele, um artista piolhento e fracassado, no Führer. Nem o próprio Hitler, tenho certeza, acreditava em 1909 que aquilo fosse possível. Mas Kafka sim. Kafka, Renzi, disse Tardewski, sabia ouvir. Estava atento ao murmúrio enfermiço da história.

Mistura de ensaio cínico mas certeiro e romance histórico, Respiração artificial é a grande obra de Piglia. O livro seguinte, Crítica y ficción (1986), reúne entrevistas e ensaios sobre temas centrais em Respiração artificial e na obra anterior de Piglia (Roberto Arlt, Borges, o gênero policial, paródia e propriedade…), mais uma demonstração da verve ensaístico-ficcional do autor. Piglia volta ao conto, à escrita detetivesca, a Emilio Renzi e à literatura argentina (Macedonio Fernández) em Prisão perpétua (1988)7. Macedonio Fernández vai ser assunto também do romance A cidade ausente (1992)8, espécie de reescrita do livro póstumo de Macedonio, Museu do romance da eterna (1967)9

Em Dinheiro queimado (1997)10, terceiro romance de Piglia, ele ficcionaliza um assalto a banco verdadeiramente acontecido na Buenos Aires dos anos 1960, e a história ganha novas tintas se contrastada à bancarrota da economia argentina na década de 1990. Dividido entre as tarefas de crítico e professor universitário (Piglia viveu nos EUA entre os anos 1990 e início dos 2000), Piglia demoraria a publicar novo romance: Alvo noturno11 é de 201012. Emilio Renzi volta à cena, agora como jornalista da capital que vai para a província acompanhar o trabalho do comissário Croce, chefe da polícia local, encarregado de desvendar um assassinato. A trama policial novamente esconde/revela a história política do país, dessa vez a expectativa com o retorno de Perón no início dos anos 1970. Croce reaparece em um dos últimos livros de Piglia, a coletânea de contos Los casos del comisario Croce, publicada postumamente, em 2018.  

Do romance, Piglia se despediu com O caminho de Ida (2013)13. Aqui Emilio Renzi é professor universitário nos Estados Unidos, mas o que poderia ser uma autobiografia clássica logo se transforma em mais uma história policial que envolve a Ida do título, misteriosa professora com quem Renzi se envolve. O pano de fundo é um país onde todos são suspeitos, ainda mais depois do 11 de setembro.

Esta sumária exposição da literatura de Piglia se concentrou nas linhas de força de sua produção: a ficção ensaística, a história política (em especial da Argentina) elaborada como complô, com os artifícios da literatura policial, a continuidade entre os livros, formalizada principalmente pela constância de Emilio Renzi como voz narrativa. Ricardo Piglia construiu pra si um lugar privilegiado nas letras argentinas. Pelos escritores que escolhe estudar e homenagear, Piglia parece estar traçando uma linha que vem de Sarmiento, passando por Borges, Macedonio, Arlt e chega nele mesmo. Poderia soar oportunista se Piglia não tivesse acertado a mão em tantos livros. Piglia está confortável nessa linhagem que ajudou a criar.                

  


¹A interpretação da política sob a chave do complô foi feita por Piglia no magistral Teoria do complô (transcrição de uma conferência de 2001, publicado no Brasil em 2009 na revista Serrote, tradução de Hugo Mader).
²No Brasil, publicada em 1997 pela editora Iluminuras, tradução de Rubia Prates Goldoni e Sérgio Molina.
³Os três tomos de Os diários de Emilio Renzi estão sendo traduzidos por Sérgio Molina para a editora Todavia. Os dois primeiros – Anos de formação e Os anos felizes – foram publicados em 2017 e 2019 respectivamente. 
4Publicada pela editora Iluminuras em 1988, tradução de Heloisa Jahn.
5Traduzido para o português em 1987 por Heloisa Jahn, para a editora Iluminuras; depois reeditado pela Companhia das Letras.
6Embora não esteja na superfície do romance o terrorismo de estado durante a ditadura civil-militar argentina dos anos 1970-80, esse tio desaparecido reverbera como problema do período; lembrando: o presente do romance se passa entre 1976 e 1979, o livro foi publicado em 1980.
 7Tradução para o português em 1989, por Rubia Prates Goldoni, para a editora Iluminuras. 
8Publicado no Brasil pela editora Iluminuras, em 1993, tradução de Sergio Molina.
9Editado no Brasil pela Cosac Naify, 2010, tradução de Gênese Andrade. Piglia produziu, juntamente com o cineasta Andrés di Tella, um documentário sobre Macedonio Fernández, disponível no Youtube. E Andrés di Tella levou para o cinema os Diarios de Piglia, em 327 cuadernos.  
10Tradução de Rosa Freire d’Aguiar, em 1998, para a Companhia das Letras.
11Traduzido por Heloisa Jahn, em 2011, para a Companhia das Letras.
12Nesses treze anos sem publicar ficção, entre Dinheiro queimado e Alvo noturno, saem dois importantes livros de ensaio: Formas breves (1999, editado no Brasil pela Companhia das Letras em 2004, tradução de José Marcos Mariani de Macedo) e O último leitor (2005, no Brasil, traduzido por Heloisa Jahn para a Companhia das Letras em 2006).
13Traduzido por Sérgio Molina para a Companhia das Letras em 2014.


Karina de Castilhos Lucena é professora de literatura no Instituto de Letras da UFRGS.

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