Um olhar de filha
Em balanço sentimental, presente a pandemia, pensei em retratar o Sergião, apelido carinhoso do pai. Acordei lembranças guardadas no baú familiar, reavivei as cores dos laços afetivos. Resolvi enviar-lhe uma carta.
Nas boas e más horas, esteve em pessoa e coração, mesmo quando optou pelo silêncio. Levou-me à praça, ao circo, ao cinema e ao jogo de futebol. Mostrou-me o mar, o paraíso das areias brancas de Cidreira, os cômoros e o farol. Percorremos o interior do Estado, os parreirais da Serra, as coxilhas de Soledade. Provamos as laranjas do Taquari. Curtimos os banhos de rio. Descobrimos uns hoteizinhos simples e acolhedores, pura diversão. Foram muitas as andanças, talvez a razão de eu ser um pouco nômade. Precisei conhecer o mundo além da minha terra.
Os livros eram nosso patrimônio familiar. Na leitura de Amicis, Coração, choramos juntos. Às vezes, ouvimos música clássica e poesia. Lembro-me das declamações do Martín Fierro, o pai todo emoção, olhos lacrimejantes.
Jeito calado e hábitos tranquilos, transmitiu senso de família, de dever, de respeito ao próximo. Legou simplicidade, honestidade, contrição ao trabalho, propósitos e sonhos.
A boa mesa, simples e bem feita, aprendi em casa, mescla de pai glutão e mãe de origem italiana. Na hora da sopa, no inverno rigoroso de Erechim, até o tutano do osso era dividido em família, com afeto e harmonia. Ao redor do fogão a lenha, pinhão na chapa, cresci ouvindo boas histórias.
Considero-o um parceiro de viagem, embora da poltrona de casa. Sair das fronteiras do Brasil era motivo de intranquilidade, mas os receios dele não me tolheram os sonhos.
Guiou-me na escolha profissional. Não me arrependo. Depois de incursão na Magistratura, acabei seguindo os passos paternos no Ministério Público. Serviu-me de orientador no primeiro emprego, sem superproteção.
Incentivou-me o estudo do inglês, especialmente do francês, resultando experiência incrível no exterior. É certo que não realizei meu sonho mais caro: perambular pelas ruas de Paris, sendo ele o guia cultural e histórico.
Durante pesquisa na Santa Casa da Misericórdia de Coimbra, entre paredes de mais de 500 anos, evoquei o gosto por arquivos poeirentos, não raro com mofo e traças. Seria uma semente da paixão paterna pela história, uma marca no DNA?
Sempre pura memória, revelou a cidade de ontem, reconstituiu o mapa das ruas, praças e prédios de interesse, e, hoje, a identifica, para que não seja esquecida. Ainda vibra com as melhorias da Porto Alegre de adoção. Ajudou a compreender o Rio Grande do Sul e os feitos do seu povo. Ensinou a valorizar as fontes primárias, a acreditar no estudo sério e a desconfiar do espetáculo e da ostentação.
Na tarefa complicada de educar filhos, foi um pai “bom o bastante”, como diria o Bruno Bettelheim, psicólogo infantil, tanto que toda a prole caminha segura com os próprios pés.
Envelheceu e está entre nós. Autêntico, interessante, companheiro, bem humorado, generoso, dono de um pensamento progressista.
Gratidão e orgulho, Sergião.
Maria Ignez Franco Santos – Procuradora de Justiça