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Política cultural: o affair Prêmio Trajetórias

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Política cultural: o affair Prêmio Trajetórias

No início, a arte era pura expressão da vontade criativa. Necessidade interior mesmo. Depois vieram os reis e mecenas. E a igreja. Logo, o reconhecimento de que é parte importante do viver humano sobre a terra. Mais na frente veio a constatação de que é também importante geradora de emprego e renda. Se a chamada economia criativa fosse um país, consta que hoje seria o quarto maior exportador mundial.

Aqui nos trópicos, os primeiros apoios aos artistas eram apenas para os amigos do rei. Logo passaram, modestamente, a aparecer nos orçamentos públicos sem quaisquer critérios de como distribuir as benesses.

Em 1986, findos os 21 anos de Ditadura Militar, o presidente escritor José Sarney fez a primeira lei de incentivo à cultura, que levou seu nome. Tal como faz para outros segmentos, o governo se dispõe a renunciar a pequena parte dos impostos arrecadados para que o contribuinte escolha onde direcionar na forma de doação ou patrocínio. Logo deu lugar a Lei Rouanet e seus espelhos nos Estados e municípios. No RS, chegou em 1996 a Lei de Incentivo à Cultura (LIC). As leis de incentivo à cultura são a única contribuição nacional às formas conhecidas de apoiar o setor.

Logo se constatou que os diretores de marketing das empresas contribuintes têm suas preferências, que excluem a maior parte dos chamados produtores culturais, categoria profissional até hoje não regulamentada. Vieram então os fundos e editais  que formam o fomento direto à cultura ao lado dos indiretos, os de renúncia fiscal. E um novo problema: quem decide quem ganha? Não surgiu nenhuma idéia melhor do que as comissões e júris. No Brasil, o Fundo Nacional de Cultura (FNC) e o do audiovisual. No RS, o FAC Fundo de Apoio à Cultura. Em Porto Alegre, o Fundo de Apoio à Produção Artística (Fumproarte).

Já vínhamos aos trancos e barrancos quando chegou a pandemia e fomos os primeiros a fechar com a certeza de que seremos os últimos a reabrir. Já em agonia, graças a uma articulação inédita no Congresso Nacional, fomos socorridos pela chamada Lei Aldir Blanc (LAB), que homenageia um dos mais de 350 mil brasileiros que foram desta para melhor pela Covid-19 até o momento. Com prazos curtos, foi preciso estados e municípios aplicarem o dinheiro até o fim de dezembro de 2020 a partir das diretrizes da LAB: auxílio emergencial, apoio a centros culturais e empresas e editais. Entre estes, uma ótima ideia: premiar trajetórias culturais.

A Prefeitura de Porto Alegre premiou as trajetórias locais sem maiores percalços. Com muito mais dinheiro, a Secretaria da Cultura do RS (Sedac) optou por realizar dois editais e terceirizar três, incluindo nestes o Prêmio Trajetórias Culturais RS, o mais aguardado e supostamente o mais objetivo de ser julgado. Vã expectativa, Batman.

Ganhou a chamada pública para executar o edital (e ganhar uma polpuda remuneração, 10% do bolo) uma ONG até então desconhecida chamada Trocando Ideia, que afirma ter “trocado ideia” com muita gente antes de largar o edital. Nele, muitas surpresas: quotas de 51% para amplos segmentos, como negros, índios, quilombolas, etc., permissão ao proponente de informar diversas áreas de atuação e meios de inscrição inusitados, como um simples telefonema.

Os resultados preliminares foram divulgados em 5 de abril deste ano da graça e jamais se viu uma reação contrária tão forte da comunidade cultural e seus membros com trajetórias significativas. Para completar, veio à tona um fato inédito: um deputado estadual, o cantor nativista Luiz Marenco, no momento das inscrições, distribuiu áudios informando que, a pedido, estaria encaminhando a um “amigo da empresa” organizadora do certame seus indicados, os quais seriam gentilmente entrevistados para “trocar ideia” com gente da ONG. A Sedac soube, diz que investigou, mas não apresentou as conclusões da investigação nem tomou qualquer providência. Os bem humorados dizem que temos o nosso Marencogate.

Entre os contemplados nas artes cênicas e audiovisuais, 80% não têm qualquer trajetória no segmento. Na região de Porto Alegre, a RF1, foram para quotistas 66% das vagas e não os 51% mencionados pelo edital. Consta que simplesmente não respeitaram a distribuição por regiões: na falta de quotistas no interior, compensaram na Capital. Totalizaram no Estado inteiro, ao contrário do que reza o edital. E pululam denúncias de que já premiados por suas trajetórias pelas prefeituras, não quotistas (autodeclarados) e não residentes no Estado ganharam, o que é vedado pelo edital. 

A Sedac, pressionada, promete auditoria para afastar irregularidades. A ONG, em nota pública desastrosa, fez chegar aos beócios da comunidade cultural, incluindo este articulista, pérolas como a de que coube ao “sistema” enquadrar o proponente numa área específica entre as múltiplas em que se inscreveu. Ah, bom. Eis o algoritmo chegando à cultura. Consta que a Microsoft quer licenciar o programa! Veja só. Mas querem “trocar ideia” com a gente.

Tenho 36 anos de estrada, quase 37, atuando como produtor audiovisual. Como diretor, estou no sétimo filme de longa-metragem. Nos últimos 15, também trabalho como advogado e consultor especialista em cultura, esportes e terceiro setor. Nunca vi uma coisa assim. Vejamos as cenas dos próximos capítulos.

Henrique de Freitas Lima é cineasta, produtor cultural e consultor.

Os artigos publicados nesta seção não necessariamente manifestam a opinião do Grupo Matinal Jornalismo.

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