Pequenas ficções

A mulher que matou o presidente

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A mulher que matou o presidente Detalhe da capa do livro A mulher que matou o presidente (Reprodução)

Maria Rita acabara de quebrar o ovo ao meio e jogá-lo na frigideira. De novo havia esquentado demais o óleo. Nunca acertava o ponto certo, a temperatura. Ou era o óleo frio demais e aquele ovo balançando como uma gelatina, ou era isso: o chiado e o odor característico subindo e esfumaçando a cozinha.

A televisão da sala estava ligada. O volume muito alto. Aquele cheiro de ovo queimado, a fumaça se espalhando e além do mais o barulho exagerado da TV. Para piorar o quadro, aquela musiquinha assustadora do plantão de notícias. Só colocavam aquele som quando acontecia uma tragédia. “Ai meu Deus…além de tudo, isso”, pensou Maria Rita.

Resolveu pedir para a irmã baixar o volume.

– Mana, baixa essa porcaria!

– Não…peraí.

– Baixa isso. Não quero saber de tragédia mais. Já chega o que acon….

– Aaaaah!!!

O grito de susto da garota lhe fez desistir de vez do ovo frito.

– Ai. Não me assusta, mana. O que que houve? Tá ficando louca?

– Mataram o presidente!!

– O quê?

– Mataram… tão dizendo aqui na TV. Mataram o Tosco!

Maria Rita correu até a sala, incrédula.

Três tiros a queima roupa, disparados por uma apoiadora, em frente ao Palácio da Aurora.

Como em todas as manhãs, um grupo de apoiadores do presidente se postou no chamado “chiqueirinho” em frente ao Palácio, esperando a sua chegada.

Quando ele se aproximou, várias pessoas se aglomeraram e pediram para tirar fotos. A suspeita sorriu para o presidente, e segundo o relato de oficiais da segurança, mostrou que portava uma arma…

As garotas assistiam com atenção à cena. Várias imagens de ângulos diferentes mostravam um grupo de pessoas em torno do presidente. A pequena aglomeração não permitia distinguir detalhes. Logo um som parecido com três estouros sufocados. E depois a correria do que pareciam pessoas comuns, seguranças, militares e tudo mais.

A atiradora foi presa em flagrante e identificada, e se chama…

Quando a fotografia da mulher apareceu, ocupando dois terços da tela de 32 polegadas, as duas garotas entraram em choque. Maria Rita desmaiou logo em seguida. Sua irmã perdeu a voz, e a ação. Não conseguia controlar o choro nem tampouco o corpo. Sentia que a urina escorria pelas pernas, mas não podia fazer nada.

O noticiário urgente se repetia em todas as redes de TV, estações de rádio e portais de Internet pelo mundo.

Em poucos minutos, as duas adolescentes saíram do anonimato para a exposição total, da pior maneira possível. De duas desconhecidas garotas de periferia, se transformaram nas filhas da mulher que matou o presidente.

Estava ali, enorme na TV, a foto de sua mãe.

São enigmáticos os caminhos da vida de um ser. Se nossa pequena sabedoria humana pudesse ao menos esboçar, mesmo que timidamente, um desenho dos passos que são dados até que algo se suceda, será que entenderíamos melhor?

Um esboço da sequência de atos, um a um. Uma linha do tempo, reta e visível, que mostrasse a criança se transformando na jovem e na adulta, e assim por diante. Será que veríamos o momento certo, o lampejo, a faísca que antecede a explosão? O que transforma uma pessoa comum em uma assassina? Uma mulher simples, cumpridora resignada das tarefas impostas pela sociedade, tímida até, em uma espécie de celebridade, transformada em minutos no objeto do amor e do ódio de milhões?

Antes de entrarmos em particularidades da nossa personagem, agora amada e odiada, é preciso sobrevoar um pouco a paisagem, observar do alto o contexto pestilento do momento em que ela se encontrava. Veremos com alguma facilidade que ela foi muito mais um produto de seu tempo, muito embora o que foi noticiado como um ato tresloucado tenha iniciado de certa forma um novo capítulo na história daquele país das Américas. O patinho feio do sul do mundo.


Elenilton Neukamp é professor de Filosofia da rede municipal de Porto Alegre.. O conto completo está disponível para leitura clicando aqui.

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