Pequenas ficções

“Éverton” de Vera Margot Mogilka

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“Éverton” de Vera Margot Mogilka

Vou escrever hoje até arrebentar. Aquele cachorro! sabia, sabia. Quando cheguei para jantar, tarde já, depois da paz inequívoca das Bibliotecas, começou. Roendo. Escreve, escreve, Vera. (Não quero! Há de passar.) Não passou. Foi um apelo tão grande, tão inquietante, um descobrimento de tantos talentos latentes, loucos por romperem que não pude mais. Me deitei e foi uma fuga de ideias mais do que psicanalítica. E então me lembrei da primeira vez que o vi.  Aí tudo começou a se desenrolar como fita de cinema e veio rolando, rolando, e no meio do furacão, vinha rolando também, noturno, pré-morto, infuturo, incompleto, aquele Éverton, mas desta vez sem alicerces, sem riso, sem método, sem defesa nenhuma. Mas deixemos esta prosa vindoura. 


Tínhamos combinado (vou contar exatamente como foi, como nunca havia relatado antes. E não sei se haverá alguma coisa de novo), parece que às 9h, na biblioteca. Fui. Cheia de medo, esperando um monstro. A voz no telefone era simpática, construía uma imagem bem provável e romântica. (As mulheres! – não me abstenho de odiá-las, nem me excluo. Este maldito senso de culpa! Sempre aplicando as suas teorias aos fatos, vendo com os seus olhos. Quando aprenderão a descobrir a realidade! Ao menos enfrentar-se, que já é meio caminho andado. As mulheres! Poderia escrever um compêndio contra elas, só alguma Simone de Beauvoir, segundo sexo, inlúcidas, práticas, inconscientes, terneiros balindo. Mas de onde este desamparo e opressão? Por quê?) Bom, me meti com toda coragem Biblioteca adentro. Nada de algo evertoniano. Nem a minha famosa intuição preveniu-me. O sujeito não estava lá. Saio. À porta, choque. Há um parado. Parado principalmente. Meu Deus, que cara pavorosa! Se me falar, se for ele, morro. É falta de atenção, é brutalidade, mas sumo. Sou muito desamparada, ávida de outros, mas com este fujo. E vá então a tortura. Eu parada, ele também. De repente a sensação: – E se ele sabe que sou eu e me observa a experimentar as reações? E esta covardia… Não aguentei. Resolvi o problema – não é ele, e saí. Aliviada, respirando o sol, culpada — sem poder olhar para trás, sentindo ele ali desprezado, repudiado… Caminho, caminho. As grevilhas e o verde sempre escuro da Praça da Matriz. Calor. Fico imaginando o que sucedeu. Na certa nem se lembrou. Como sempre acontece contigo, pobre Vera fracassada, vulnerável a todos os desprezos, mesmo daqueles que nem conheces ainda. Chego na esquina da Jerônimo Coelho. Vou dobrar quando de repente um grito: – Vera! ou –Vera, Vera Margot! (não me recordo bem e os passos correndo na calçada, o ruído cada vez mais próximo. Quem é, como é? Um guri ainda. Põe-se na minha frente, arquejante e todo novíssimo, aberto, inesperadamente camarada, aberto à surpresa e ao conhecimento. Plaft! o soco na cara. Tenho uma baita decepção, não muito definida. Tão jovem, tão estranho fisicamente, muito palpável por partes mas indefinível em conjunto (procuro a palavra), talvez crespo, uma imagem crespa, de grandes olhos e com um cabelo que eu seria obrigada a amar mais tarde. E como fala, meu Deus! e vamos descendo a rua, explicando, desculpando, procurando uma porção de coisas. E paramos na esquina da Riachuelo com a Borges e vá conversa, eterna de repente. Não me lembro mais do que falamos. Sei que tinha aula e eu devia (vejam bem, devia) ir para casa, fome, almoço. Segurei-o o mais que pude. Na realidade, não ouvi uma só coisa do que disse e o que eu disse foi sem importância. Lembro-me de sua camisa branca como um foco de luz. De como era estranho, além de ser realmente estranho, vindo do desconhecido, mesmo até hoje (e descubro, sabendo que também sou, e que todos nós, menos talvez o P., somos feitos de uma natureza estranha), mas como um ser que não existia e que agora, de repente, estava à minha frente e eu acabava de conhecer. Eu estava suando com aquele calorão de fevereiro, saia de linho, blusa xadrez, vida enjoada. E aquele fedelho (dizia quase 22 e eu acreditava, sabia ser irremediavelmente verdade, mas não o sentia) falando na minha frente. Passou gente, pararam, olharam (naquela época já, hein?). Afinal conseguimos despedir-nos. E me fui para a parada do bonde com a impressão repentina de que havia tão perdido como adquirido algo de muito valor futuro. Não sei quando nos vimos novamente. Algumas, talvez muitas vezes. Houve aí um período nebuloso até junho, mais ou menos, quando numa noite deu umas loucuras nele, e então eu passei a integrá-lo como um real conhecimento em mim, dei-me conta de que existia e que tal existência me perturbava. Inútil seria contar nossas relações depois. Cada encontro foi enorme e pleno de soluções e inquietações mútuas, por culpa desta minha fome de emoções. Em cada encontro sucederam coisas, proferiram-se palavras que foram ouvidas. Ah, Éverton, lembrar-me tão bem da primeira vez que te vi! Vantagem, embora tão familiar és agora e parte de mim mesma. Uma vez ele foi lá no colégio. Todo limpinho, de terno desconhecido, numa pinta daquelas (sem intenção – a gente vê, porém, e parece assim mesmo). Fiquei encantada. Quando nos despedimos e voltei para a aula, comentaram. Redargui: — Eu me dou muito com ele. É muito simpático, vocês não acham? Chama-se Éverton.


Texto da escritora Vera Margot Mogilka publicado na revista Crucial, número 2, de fevereiro de 1952. A direção da revista era de Lineu Dias, José Paulo Bisol e Paulo Hacker Filho. Para saber mais sobre a autora visite sua biografia em três episódios escrita por Jandiro Koch.

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