Pequenas ficções

Visita à nascente

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Visita à nascente

De quinze em quinze dias, tem de subir à nascente. Tem de limpar a nascente, retirar a lama com a mão, bem de leve, assim, com os dedos meio abertos. Tirar as folhas e os galhos que caem em cima. Tem de desentupir as mangueiras, liberar os respiros. São mangueiras pretas, de borracha grossa, você vai ver. Tem a de uma polegada e meia e tem outras, de quatro, de cinco polegadas.

Antes, era só uma nascente e aí às vezes faltava água. No meio da noite, iam lá em casa me acordar. Duas, três horas da madrugada. Não queriam nem saber. Eu calçava a bota, apanhava o facão, pegava a minha lanterna e vinha para cá. Uma hora subindo no meio da mata. E aí, já pensou, quando eu estava bem aqui, tendo de pisar nestas pedras cheias de musgo, a bota metida até a canela na terra encharcada, e com os galhos batendo na minha cara, e vinha aranha na testa, e vinha morcego rasante pertinho da orelha, e aí, de repente, acabava a pilha da lanterna. 

Imagina só. Eu, sozinho no escuro, bem aqui, tinha de achar o caminho até a nascente, encontrar o problema, achar um cipó e enfiar na mangueira até desentupir. E depois, voltar no escuro. Essa trilha toda que a gente andou agora. Quando eu chegava lá embaixo, eles já estavam dormindo, de banho tomado.

Na verdade, o olho acostuma um pouco, depois de uns cinco minutos no escuro. Só um pouco. Também, a gente vira meio bicho, com o tempo, e de tanto andar na mata enquanto vai anoitecendo e a sombra baixando em volta, a gente, sem perceber, acaba enxergando mais, cada dia um pouco mais. Enxerga um pedaço e completa o resto na cabeça. Parece que está vendo o que nem vê. 

Tem outra coisa: eu não me perco. Dentro da cabeça, é que nem uma bússola. Mesmo no escuro, a direção está ali: a gente acha um sinal, reconhece um ponto de um lado e aí todos os outros se encaixam também no lugar. Só tem uma coisa que faz um homem se perder do mundo: um bosque de taquaraçu bem fechado. Não sabe o que é? Aqueles bambus altos, grossos. Isso. Um lugar assim não tem jeito. É linha demais para todo lado, parece que você caiu numa rede. Não ri, não.

Confesso que andei relaxando: não subo à nascente já faz um tempo. Quanto tempo? Olha… uns três meses. Pois é. Mas deixei tudo muito arrumado, muito protegido. Levo a sério. Uso uns cacos de telha para cobrir as nascentes e aí dá menos problema. É, caco de telha. As nascentes mesmo são só isto aqui, quase nada, um olhinho assim, num vão debaixo de uma pedra. Você vai ver. 

Fiz umas emendas nos respiros para, quando a mangueira entupir de um lado, a água poder correr pelo outro. Uns desvios, sabe? Fiz um esquema em que a água até sobe para aproveitar melhor. Como é? Olha, emendo uma mangueira menor na maior e, se não dá vazão por ali, a água sobe e aí, mais em cima, tem uma emenda só para ela descer do outro lado e ir para uma outra caixa, onde ela fica guardada. 

Com tudo isso, faz tempo que não dá problema. O problema é essa turma lá embaixo que joga água fora, larga a torneira pingando, deixa descarga da privada quebrada. Escute, você deixa uma torneira pingando para ver só como um reservatório de vinte mil litros não esvazia todinho num instante. Depois eles vêm reclamar comigo. Quero ver.

Quero ver se um dia eu for embora. Escute o que eu digo, não vai ter quem saiba mexer nisto aqui. Não vai ter nem quem queira subir aqui feito eu, nem de noite, nem de dia. Porque fui eu que montei todo esse negócio, liguei as três nascentes novas num reservatório menor. O novo compensa o antigo, tudo trabalha junto. É. Olha, a gente chegou. O reservatório da nascente antiga está ali. É aqui, está vendo? É sim, do tamanho de uma casa. Eu e meus primos construímos. Quer dizer, tinha um reservatório velho, do tempo da fazenda. Mas a gente reformou demais, ampliou, deu um jeito bom. 

Agora, imagina construir isto aqui no meio da mata, no alto dessa montanha. Subir carregando cimento, pedra, vergalhão nas costas, quando o caminhão não podia subir por causa da lama. Um sofrimento. Foi a gente que abriu o caminho para o caminhão passar, até dinamite a gente usou. Dava um horror ver os pedaços de pedra voando. Uns quarenta quilos cada um. Depois, com o tempo, a mata foi fechando o caminho de novo, a chuva foi abrindo umas valas fundas, a terra foi roendo nas beiradas, agora não passa nem carroça com burro.

Nossa, que água é essa que a gente está pisando? Tem alguma coisa entupida. Já estou ouvindo o barulho. Olha lá. Não disse? Está subindo pelo respiro. Então a encrenca é mais para baixo. Cuidado, segura aqui. Pronto, agora me dá esse cipó que está ali. Não, tem mais, tem três metros, três metros e meio, por aí. Vamos enfiar aqui nessa boca de cano que está muda, sequinha. Olha só como está entrando. O entupimento é bem lá no fundo. Chegou, é aqui. Agora a gente dá umas batidas assim. Não demais. Imagina se ele fica preso lá dentro. Pronto, lá vem ela, já está saindo. Pois é, primeiro vem escura de barro, olha. Agora é a areia, clareia um pouco. Pronto, ficou limpa. Sente só como é gelada. Toma. Boa de beber demais.

Está vendo as mangueiras no chão? Não são muitas? Levei tempo para montar o esquema. Isso aí? É um buraco de paca. Não, eu só fiquei dois anos na escola. Meu pai me batia muito. Vara, porrete. Batia demais nos filhos, batia até na minha mãe grávida. Acho que não era ruim. Mas tinha uma coisa dentro dele, ficava vermelho. Um ódio de alguém, coisa antiga, que ninguém podia entender. Fui embora de casa pequeno. Andei para lá, andei para cá, até vir parar aqui. Fui ficando. Eu gosto. Minhas filhas nasceram aqui. 

Olha, não é brincadeira. Sei consertar de tudo, e se não souber, aprendo num instante. Cortador de grama, motor de bomba, motor de carro, brinquedo, tudo quanto é máquina. Vivem me chamando. Ver um negócio quebrado me dá uma coisa por dentro, nem sei explicar. Eu olho, viro, e acabo consertando. É até engraçado, chego a rir sozinho, depois. Desmonto e monto de novo só para ver como é. Mas gosto de limpeza, deixo tudo arrumado e no lugar.

E acha que dão valor? Dão nada. Tem juiz, médico, engenheiro, tem jornalista que fala outras línguas. Eu conserto o que eles nem sabem como vai começar a mexer. Ficam tontos, a mão na cabeça, e depois ainda choram para me pagar a mesma coisa que gastam no ingresso de um cinema, lá na cidade deles. Eu gosto é de subir aqui para a mata. A gente se sente bem, se sente grato, e nem sabe por quê. 

Opa, espera aí. Não vou deixar. Esse pé de lima fui eu quem limpei, cuidei, e agora você quer acabar com ele?

Estende a lâmina de meio metro do facão na direção de uma folha. Recolhe, bem na ponta de aço, uma lagarta gorda e da mesma cor da folha, mas listrada de preto no meio. Com um balanço do facão no ar, joga o inseto para cima e, com outro gesto, golpeia a lagarta contra o chão − uma, duas, três vezes. Faz a lagarta em pedaços. Levanta a cabeça, recupera aos poucos o ritmo da respiração e fica olhando, em silêncio, para o pequeno pé de lima da pérsia.


Rubens Figueiredo – Nasceu no Rio de Janeiro em 1956. Formado em letras na Universidade Federal do Rio de Janeiro, é tradutor de autores como Dostoiévski e Philip Roth, entre outros, professor de português e tradução literária e um dos mais originais ficcionistas brasileiros contemporâneos. Em 1998 seu livro de contos As palavras secretas recebeu os prêmios Jabuti e Arthur Azevedo. É autor de, entre outros, Barco a seco (Prêmio Jabuti) e Passageiro do fim do dia.

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