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Porto Alegre quer testar modelos de mobilidade europeus, mas a prefeitura ainda não diz como

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Porto Alegre quer testar modelos de mobilidade europeus, mas a prefeitura ainda não diz como

Com histórico de problemas no transporte coletivo, cidade inaugura trechos de ciclovia como contrapartidas atrasadas da iniciativa privada


Como medida durante a pandemia, a prefeitura quer instalar ciclovias temporárias para conectar trechos de ciclovias permanentes. Créditos: Alex Rocha/PMPA


Juan Ortiz 
*Colaboração de Juliana Coin e Naira Hofmeister


No último mês, a professora de urbanismo Adriana Sansão viu Barcelona, a cidade onde vive desde fevereiro, passar por uma transformação: cerca de 12 km de pistas em grandes avenidas viraram calçadas; outros 13 km de ciclovias temporárias foram abertos, com pintura no asfalto e sinalização por cones e placas. Faixas de ônibus foram ampliadas; e o acesso de passageiros, limitado pela metade do número de cadeiras disponíveis – nos veículos que ainda não têm uma tela de proteção para os motoristas, as pessoas entram pela porta traseira. Todas essas medidas fazem parte de um grande projeto municipal de mobilidade para evitar a propagação da Covid-19. “Publicaram um plano do que seria feito, com alguma antecedência, começaram a fazer as pinturas. Agora já deve estar praticamente tudo pronto”, contou Sansão, em 20 de maio.



A prefeita da capital catalã, Ada Colau, disse que as alterações no espaço urbano tem o objetivo de reduzir os automóveis nas ruas e promover formas não poluentes de deslocamento. “Foram muitos efeitos terríveis que essa pandemia nos trouxe, mas um aspecto positivo é que o ar das cidades melhorou. Então, há um ‘normal’ anterior ao qual não queremos voltar, como o da contaminação”, explicou em uma live organizada pela pré-candidata à prefeitura porto-alegrense Manuela D’ávila (PCdoB).

Como Barcelona, diversas cidades europeias estão implementando mudanças na mobilidade urbana para tornar possível a saída do isolamento social, com menos riscos à saúde. Embora pareça uma questão secundária no momento em que o país registra picos de mortes diárias, contabilizando mais de 30 mil óbitos por Covid-19, o tema da mobilidade é crucial. Afinal, a disseminação do coronavírus depende também dos descuidos sanitários nos fluxos urbanos – a doença se tornou pandêmica por causa dos voos intercontinentais. As pessoas precisam se sentir seguras ao sair de casa e não se contaminar nos trajetos. 

A própria Organização Mundial da Saúde orienta o uso da bicicleta para manter o distanciamento necessário entre as pessoas e garantir uma carga mínima de atividade física diária – não à toa diversas cidades ao redor do mundo ampliaram sua rede cicloviária logo depois de superar seus quadros mais trágicos na saúde pública. Na Itália, uma das novidades na reabertura é a oferta de um bônus de 500 euros para todo o cidadão maior de 18 anos que comprar uma bicicleta. A cidade de Milão também implementou 35 km de ciclovias temporárias e reduziu o limite de velocidade para 30 km/h. Em Bruxelas, já são 40 km de ciclovias temporárias. Londres, famosa pelo seu céu nublado e poluído, tem planos para se tornar a capital com mais zonas livres de carro do mundo.


Em Barcelona, faixas de ônibus foram ampliadas e o acesso de passageiros, limitado pela metade do número de cadeiras disponíveis. Créditos: Prefeitura de Barcelona


Porto Alegre também tenta entrar na onda – mas ainda não definiu como vai fazer isso. “Estamos pensando em algumas ciclovias temporárias”, adianta Rodrigo Tortoriello, secretário extraordinário de Mobilidade Urbana. “Quando a cidade já tem esse hábito é mais fácil aumentar a infraestrutura”, diz Tortoriello, citando o exemplo da colombiana Bogotá, que tem 550 km de ciclofaixas permanentes, uma ciclovia que atravessa a cidade aos domingos e 117 km de ciclovias temporárias implementadas em razão da Covid-19. “Agora, usar essa estratégia onde não havia nada, nem ciclovia aos finais de semana, tem um risco muito grande, porque o motorista não sabe como se comportar”, justifica. O secretário não deu detalhes sobre o projeto, mas disse que a prefeitura vai “ampliar os espaços para os pedestres no centro da cidade” e “buscar a conexão entre ciclovias já existentes para ampliar a rede cicloviária”.

Dos 395 km de malha cicloviária desenhada no Plano Diretor Cicloviário, de 2009, apenas 54 km foram realmente implementados. Isso equivale a pouco mais de 13% do total ou a 43% da estrutura mínima prevista de 123 km. A gestão do prefeito Nelson Marchezan Júnior (PSDB) entregou cerca de 10 km até agora – sendo 4,4 km em 2020. Os trechos ficam na região central da Capital e são instalados como compensação obrigatória de empreendimentos privados, de acordo com o número de vagas de estacionamento do local. É o caso dos 3 km novos distribuídos pelas avenidas Ipiranga e Aureliano de Figueiredo Pinto, instalados como contrapartida à expansão do Shopping Iguatemi, em 2016. Ou seja, as ciclovias não fazem parte de um plano para lidar com a Covid-19, já estavam previstas e foram implantadas, com atraso, como contrapartida.

Apesar da estrutura cicloviária insuficiente, os porto-alegrenses já estão ligados que a forma de locomoção terá de mudar. A procura por bicicletas, peças ou serviços aumentou entre os moradores da Capital durante a pandemia. A tendência é global: segundo o Google Trends, a busca online por bicicletas disparou desde o fim de março. A recomendação da OMS para escolher as pedaladas em vez do acelerador vem funcionando. “A pandemia está criando a possibilidade de muitas cidades entenderem a questão da mobilidade, com a retomada de outros modais que não o carro”, explica o urbanista Leonardo Brawl, cofundador do coletivo TransLAB.URB. “A grande questão é, se na reabertura, essas estruturas emergenciais já farão parte do novo panorama de mobilidade urbana”.

Novo normal, atingidos de sempre

Ainda é difícil antever como serão os fluxos urbanos depois de superada a Covid-19 – até porque não sabemos quando isso vai acontecer. Mas é consenso entre os especialistas em mobilidade que nosso relacionamento com a cidade vai mudar – e precisa mudar. Seja repensando deslocamentos desnecessários, seja evitando aglomerações e encontros presenciais, o “novo normal” já está impactando nossa rotina, mesmo para quem se recusa a seguir as orientações sanitárias.

“Há muito se discute a questão da gestão de demanda para reduzir congestionamentos urbanos em horários de pico. As empresas poderiam ter horários mais flexíveis, estimular as pessoas a trabalharem alguns dias em casa. Existia uma resistência a isso, porque a população não estava acostumada”, aponta a engenheira de tráfego Helena Cybis, professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). “Agora, a gente desenvolveu toda uma estrutura para trabalhar remotamente. Muitos trabalhos vão se rearranjar para continuar trabalhando a distância”, acredita. Segundo o consultor em inovação Josep Piqué, será necessário impulsionar a mobilidade virtual. “O mundo pré-Covid era físico, com momentos em que estávamos online. Agora vai ser o contrário: a maior parte do tempo estaremos na nuvem, com alguns momentos menos frequentes de contato físico”, diz.

Mas trabalhar de casa não é opção para muita gente. Seguranças, caixas de supermercados e balconistas, por exemplo, não pararam durante o período de isolamento e menos ainda durante a gradual reabertura do comércio. São esses trabalhadores que, via de regra, moram longe do serviço e precisam dos ônibus, porque não há pedalada ou caminhada que dê conta do trajeto. “A gente vai precisar resolver problemas de transporte de massa de longas distâncias, e eles ainda são dependentes de automóveis”, observa Cybis.

Desde o início da pandemia, a quantidade de passageiros nos ônibus de Porto Alegre caiu quase 65%, segundo dados da prefeitura. Se eram cerca de 825 mil usuários diários na primeira semana de março, agora mal chegam a 290 mil. O número de viagens ofertadas também caiu em proporção semelhante: de 21 mil por dia útil para 8,2 mil. “Fizemos mais de 10 mil alterações nas tabelas horárias”, conta o secretário Tortoriello.

A orientação da OMS é de manter pelo menos um metro de distância entre as pessoas no transporte público, mas isso não parece valer nos ônibus da Capital. Quando Marchezan decretou estado de calamidade, em 31 de março, a prefeitura limitou a capacidade máxima do transporte coletivo para o número de passageiros sentados. O decreto do dia 22 de abril mudou de novo a lotação máxima: além do número de passageiros sentados, agora poderiam embarcar dez pessoas em pé nos ônibus comuns e 15 pessoas nos articulados. Quando questionado sobre como funcionaria o distanciamento físico nesse segundo caso, Tortoriello disse que “o ônibus tem mais ou menos 13 metros, então dá para se distribuir bem. E, quando a gente liberou isso, obrigou o uso de máscaras, o que geraria um risco menor de contaminação”, explica. Pelo cálculo do secretário, cada pessoa de pé ficaria a 1,3 metro de distância um do outro, mas a conta não leva em consideração a proximidade com os passageiros sentados.

Status do plano: em quarentena

Enquanto a prefeitura não detalha os planos de mobilidade para preparar a cidade para a reabertura, problemas nunca resolvidos no transporte público irromperam em meio à emergência sanitária. As empresas de ônibus amargam perdas financeiras em razão da diminuição abrupta de passageiros e alegaram não poder mais operar sem mudanças no contrato. A Associação dos Transportadores de Passageiros (ATP) pediu a suspensão de 12 linhas de ônibus à Empresa Pública de Transporte e Circulação (EPTC), que negou a solicitação.

“As empresas não podem tomar uma medida de forma unilateral. Vamos manter a posição de exigir a continuidade e, ao mesmo tempo, estamos preparando alternativas para uma possível interrupção do transporte, inclusive com apoio do Exército”, disse o prefeito, em nota

“O Exército ajudou na operação dos ônibus durante uma greve em 2014. Mas, por minha parte e da EPTC, não houve nenhuma análise mais profunda com relação a isso, apenas está dentro de um espectro amplo de possibilidades”, assegura Tortoriello.

O impasse recente é só a ponta do iceberg de um problema crônico: todo ano, o valor da passagem sobe acima da inflação – segundo a prefeitura, por variações no preço do diesel e da folha de pagamento de funcionários, que juntos representariam 70% do custo da tarifa. Os passageiros pagam mais sem ver melhorias no serviço. Quem tem condições financeiras migra para o transporte por aplicativo, o que derruba ainda mais o número de passageiros e, junto, a receita das empresas de transporte. E assim segue esse círculo vicioso.

Em janeiro, o governo Marchezan anunciou um plano para tentar estancar o problema do transporte coletivo. Em vez de subsidiar boa parte do valor da tarifa, como fazem Madri, Berlim e Praga, a proposta da prefeitura gaúcha se baseou em um conjunto de cinco projetos de lei: 1) o fim da CCT, taxa embutida no valor da passagem e hoje usada para custear a gestão do sistema; 2) a cobrança de tarifa por km rodado para serviços de aplicativo; 3) um pedágio para automóveis que entram na cidade; 4) uma taxa por funcionário cobrada de todas as empresas (e passe livre para trabalhadores formais), inspirada em um modelo francês; 5) a redução gradual de cobradores de ônibus.

“No geral, os projetos traziam um conceito importante, adequado, de privilegiar o transporte coletivo”, diz o vereador Marcelo Sgarbossa (PT). “Mas a forma em que [o prefeito] fez isso foi totalmente equivocada, sem debater com a sociedade ou com a Câmara, colocando projetos que não faziam sentido algum – me refiro àquele do pedágio para entrar em Porto Alegre.”

No parecer prévio do projeto do pedágio, o procurador-geral da Câmara, Fabio Nyland, entendeu que a proposta era inconstitucional por violar o princípio da isonomia e fazer uma distinção “discriminatória e desprovida de razoabilidade”. Segundo argumenta Nyland, “as pessoas de outras cidades não vêm aqui, em sua maioria, fazer turismo, vêm trabalhar, estudar, acessar serviços públicos que não têm em seus municípios de origem”. Pelo plano de Marchezan, haveria um pedágio no valor equivalente a uma passagem de ônibus (hoje R$ 4,70) para veículos com placas de outras cidades que entrassem na Capital. Um novo pacote de medidas, anunciado nesta terça-feira (2) pelo Marchezan, deve incluir uma modificação na ideia do pedágio: desta vez, para carros que circularem pelo centro da cidade. Ao todo, são 20 projetos de lei – ainda não enviados à Câmara – em áreas como sustentabilidade, mobilidade, educação e previdência.

Do outro lado do espectro político, o vereador Felipe Camozzato (Novo) também considerou o projeto mal elaborado. “Boa parte do que estava ali não me parecia efetiva, acho que o Marchezan está completamente equivocado”, disse. Além disso, Camozzato criticou o atual sistema de transporte público: “Acho que já está bem claro que esse contrato atual não está bom nem pra um lado nem para o outro. Só vejo falar em forçar as pessoas a usar o transporte coletivo e reduzir o preço da passagem à força”. O prefeito ainda insiste em aprovar o pacote – ou o que der dele – como solução para evitar a “falência do transporte público”.

Até o momento, só o projeto de redução gradual dos cobradores havia sido rejeitado na Câmara, lá em 2017. Tanto Sgarbossa quanto Camozzato garantem que, no momento, o legislativo municipal dificilmente votará o plano de Marchezan. E, assim, os sonhos de mobilidade europeia que a prefeitura tenta alcançar esbarram nos mais diversos impasses, que não são resolvidos passando tinta no chão.

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