Arthur de Faria | Porto Alegre: uma biografia musical

Capítulo XLVI

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Capítulo XLVI

Voltemos aos músicos. Especificamente a um tio e um sobrinho que fizeram história no choro.

O tio: Eraldim Foutoura Cunha, nome artístico Peri Cunha, nasceu dia 28 de agosto de 1902, na fronteiriça Santana do Livramento (493 km a oeste de Porto Alegre, cidade separada do Uruguai por uma rua). Desde criança Eraldim dedicou-se à arte do bandolim erudito, hoje quase esquecida no Brasil, mas então na moda, com o instrumento sendo muito utilizado em orquestras e estudantinas. Aos 10 anos o moleque foi aprimorar-se com um professor em Jaguarão, então uma cidade maior, na fronteira sul com o Uruguai. Aos 15 anos, sempre em busca de aprimoramento, foi parar em Porto Alegre. Mas aí havia a turma de chorões capitaneada pelo bandolim popular de Octavio Dutra, e seu mundo mudou. Manteve o instrumento, mas converteu-se irremediavelmente ao universo do choro.

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Voltemos aos músicos. Especificamente a um tio e um sobrinho que fizeram história no choro.

O tio: Eraldim Foutoura Cunha, nome artístico Peri Cunha, nasceu dia 28 de agosto de 1902, na fronteiriça Santana do Livramento (493 km a oeste de Porto Alegre, cidade separada do Uruguai por uma rua). Desde criança Eraldim dedicou-se à arte do bandolim erudito, hoje quase esquecida no Brasil, mas então na moda, com o instrumento sendo muito utilizado em orquestras e estudantinas. Aos 10 anos o moleque foi aprimorar-se com um professor em Jaguarão, então uma cidade maior, na fronteira sul com o Uruguai. Aos 15 anos, sempre em busca de aprimoramento, foi parar em Porto Alegre. Mas aí havia a turma de chorões capitaneada pelo bandolim popular de Octavio Dutra, e seu mundo mudou. Manteve o instrumento, mas converteu-se irremediavelmente ao universo do choro.

Foi parar no Rio em 1923, como músico do exército, e logo estava no grupo Os Gaturamos, rival do Bando dos Tangarás, que reunia Noel Rosa e Almirante. Lá conheceu seu ídolo, o bandolinista pernambucano Luperce Miranda, que tinha dois anos menos do que ele, mas já era famosão. A partir daí, junto com Luperce, Peri se tornou um dos nomes fundamentais do instrumento no Rio de Janeiro.

Tocou com todo mundo dos anos 1920 e 1930. De veteranos como Catulo da Paixão Cearense, João Pernambuco e Ernesto Nazareth até jovens estreantes como Carmen Miranda. 

Em 1932 faz uma turnê pelo Rio Grande do Sul, integrando Os Ases do Samba, ao lado de Francisco Alves, Noel Rosa, Mário Reis e o pianista Nonô. E segue ambientado nesse ecossistema pelos próximos 20 anos. 

Nos anos 1960, quando a música que fazia já não era a que interessava, acabou indo morar em São Vicente, cidade colada em Santos, São Paulo. Funcionário da Alfândega de Santos, logo se enturmou com os músicos dos arredores e foi convidado de honra para integrar o Conjunto Lenha de Casa, que havia sido fundado, creiam, em 1885. Não só topou, como mandou vir de Porto Alegre dois reforços, músicos incríveis que também amargavam o ostracismo do choro naquele momento: o sobrinho Jessé Silva e o flautista Plauto Cruz.

Em 1972, com Peri aposentado da alfândega, resolvem voltar todos juntos para Porto Alegre. Ele logo é chamado para o regional comandado pelo Professor Darcy no bar Chão de Estrelas, além de tocar em dupla com o sobrinho no recém-inaugurado Bosky, de quem logo falaremos (e volta e meia voltavam a Santos e ao Lenha da Casa).

Gravou pouco. Quatro 78 rpm para a Todamérica, entre 1952 e 1953: dois deles só com choros, polkas e valsas de Octávio Dutra, um com duas músicas de Azevedo Marques e outro com temas dele, Peri, incluindo o surpreendente Baião na Coréia, todo intermeado com rajadas de metralhadoras e bombardeios!

Há também um disco gravado com Jessé em São Paulo nos anos 1960, mas ninguém sabe bem desse LP. E um compacto duplo, com quatro valsas suas, lançado pela ISAEC na década de 1970.


Jessé Silva, seu sobrinho, é outro grande nome dessa geração nascida nas primeiras décadas do século XX.

Veio ao mundo em Erebango (cidadezinha 339 km a norte de Porto Alegre, entre Passo Fundo e Erechim) dia 26 de agosto de 1919. Morreu em 1988 mas seu mito segue entre os chorões da cidade, e não é pra menos.

Com 10 anos já tinha estudado violino, teoria e solfejo com Olga Fossati, em viagens feitas a Porto Alegre só para isso. A família resolvera apostar no seu já perceptível talento musical, e o resultado é que, aos seis anos de idade, aprendeu a ler partituras antes de aprender a ler palavras. Com nove mandava bem no violino, violão, bandolim e cavaquinho, e já ganhava um dinheirinho acompanhando os filmes, ainda mudos, do Cine Erechim. Outras das peculiaridades do guri era o jeito com que muitas vezes tocava o violino: como um cavaquinho, e com um palito de fósforo usado como se fosse uma palheta.

Compositor desde os 11 anos de idade (sério: o que é que botavam no leite dessas crianças do começo do século XX?!?), muda-se com a mãe para Porto Alegre, onde vai estudar, entre outros, com Octavio Dutra. Logo depois, repetindo o trajeto do tio, e sabendo que podia contar com ele, muda-se para o Rio de Janeiro.

Tinha 18 anos, e aí é como contou na clássica entrevista em que secundou Lupicínio Rodrigues, para o jornal O Pasquim, na década de 1970 (entrevista onde ele, Jessé, também falou muito): 

Minha formação musical foi aqui no Rio de Janeiro. Eu sou gaúcho mas vim beber água e aprender violão aqui, na fonte.

Logo é contratado da Rádio Tupy, integrando o quarteto do tio Peri. O grupo tinha, entre outras funções, a de acompanhar o estreante programa “Calouros em Desfile”, de Ary Barroso, que seguiu por décadas. Logo em seguida Jessé conhece Pixinguinha e se torna um habitué dos almoços domingueiros na casa do gênio. Almoços que seguiam noite a dentro, regados por hectolitros de cachaça e alimentados por uma ininterrupta roda de choro com gente como Peri, Dilermando Reis, Zé Menezes e os irmãos de Pixinguinha, China e Léo.

Em 1939, novamente ao lado do tio, tocou na primeira transmissão experimental de TV feita no Brasil, pela Telefunken, numa Feira de Amostras. No ano seguinte, entra pra FAB (Força Aérea Brasileira), como piloto e radiotelegrafista. Nessa condição, é transferido para Fortaleza já com o Brasil metido na Segunda Guerra. Participa de 201 missões de patrulhamento e, segundo ele, afundou pelo menos dois submarinos alemães que haviam invadido mares brasileiros.

Em 1944 está nos Estados Unidos para dois anos de aperfeiçoamento em radiotelegrafia aeronáutica. Faz todo o curso, mas logo em seguida aposenta-se como militar. Com apenas 27 anos, mas com mais de três mil horas de voo e o posto de sargento.

Passaria a dar aulas e a dedicar-se ao então pouco comum violão de sete cordas. Grava com Orlando Silva, Abel Ferreira, Luiz Americano e, finalmente, Jacob do Bandolim, com quem tocaria em rádios, teatros, saraus e estúdios de gravação. Durante algum tempo, a dupla de violões que acompanhou o bandolinista mais importante da história do instrumento no Brasil foi Cesar Faria e Jessé – e registraram juntos pelo menos três 78 rpm, num total de seis músicas (entre elas, Dolente, um dos clássicos do bandolinista, na versão de 1949). 

Nada disso parou nem entre 1951 e 1955, quando Jessé foi morar em Belo Horizonte. E não parou pelo simples fato de que, lá, trabalhava numa companhia de aviação que lhe dava passagens grátis. E aí era Belo Horizonte-Rio-Belo Horizonte às vezes várias vezes numa semana.

Depois de 17 anos de amizade, finalmente Pixinguinha o chama pra tocar com ele. Estamos em 1957, e Jessé entra no mítico Grupo da Velha Guarda. No ano seguinte, gravam um LP para o selo Festa, reunindo a música de Pixinguinha e crônicas, poemas e trechos de contos de Machado de Assis lidos por Tônia Carrero, Paulo Autran, César Ladeira e Margarida Rey. Num comentário escrito por ninguém menos que Manuel Bandeira, leva o epíteto de “magnífico Jessé do violão”.

Em 1959, reunindo tudo que aprendera em décadas como professor, realiza um belo álbum triplo didático para a RCA Victor: Aprenda a Tocar Violão – Método Prático de Jessé Silva.

Aparentemente estava tudo certo com sua carreira, mas vai saber… Neste mesmo ano resolve largar tudo e voltar pra sua terra.  Com a mulher e quatro filhos, vai morar em Passo Fundo, com a firme decisão de mudar de vida e deixar de ser músico. 

Não aguentou muito tempo: três meses depois da mudança, sua esposa vai ao Rio resolver questões pendentes e ganha, de extra, a missão de trazer todos os métodos e partituras para violão que encontrasse. Voltou com uma mala cheia. Daí, com tempo e disposição, o senhor aposentado de 40 anos passa três anos estudando oito horas por dia de violão clássico. Só parando pra… tocar pela noite de Passo Fundo.

Depois de um tempo resolve dar uma sentida no clima de Porto Alegre. E nas primeiras 24 horas na cidade onde não conhecia ninguém já acontece o seguinte. Narrado pelo flautista Plauto Cruz ao jornalista Kenny Braga:

Nós estávamos num ensaio da Banda dos Carijós, quando apareceu um moço carregando seu violão. Eu estava tocando flauta. Aí ele me perguntou se eu gostava de chorinho, se eu conhecia o repertório do Pixinguinha. Informei que trabalhava no Regional do Paraná e o convidei para ir comigo até a Rádio Gaúcha, que ficava no Edifício União, na Borges de Medeiros. O Jessé Silva entrou de cara num programa de variedades musicais e foi contratado na hora pelo Paulo Russomano, diretor-artístico da rádio.

Na verdade, só em 1962 se mudaria definitivamente para Porto Alegre. Mas com o currículo que tinha, foi efetivamente contratado pela Rádio Gaúcha e, no ano seguinte, eleito vice-presidente do Sindicato dos Músicos. Em 1964 entrava no citado Regional do Paraná e, no ano seguinte, na Orquestra Brasileira Octavio Dutra (mais tarde rebatizada de Orquestra Filarmônica Popular de Porto Alegre — OFIPPA). Mas a época era de vacas magras para o choro. O negócio foi se entrosar com o pessoal do samba, Lupicínio e Túlio Piva à frente. 

Lupi, na verdade, tinha sido a primeira pessoa que Jessé procurou em Porto Alegre, anos antes. Mas não achou: 

Eu, chegando no Rio Grande do Sul, tinha que procurar o Lupicínio. O problema foi meu: procurar e encontrar o Lupicínio.

Em 1965, a convite do jornal Zero Hora e da Rádio e TV Gaúcha junta nada menos que 50 violonistas para acompanhar Orlando Silva num show no Auditório Araújo Viana. Era para marcar o aniversário de Porto Alegre, e a façanha teve grande repercussão na mídia local.

Alternando repertório de violão clássico com choro e samba, agora relativamente conhecido, começa a apresentar-se por todo o Estado. Mas só em meados da década de 1970, com o renascimento do seu gênero preferido, que essas apresentações vão se tornar rotina, com direito até a lotar o Theatro São Pedro.

Menos mal que em 1972 ele inaugurara o Bosky, restaurante com música ao vivo que fará, segundo alguns, “reviver a noite de Porto Alegre”. O convite da estreia diz:

Um bandolim, um violão, vozes da noite. Pery e Jessé dão o recado. Não fique surpreso se Lupi, Johnson, Darcy Alves, Alcides Gonçalves (…) e outros da pesada abrilhantarem a noite.

Segundo o jornalista especializado em vida noturna Danilo Ucha, começava ali “uma segunda idade do ouro da seresta”: 

O Bosky fatura mais que as casas de ié-ié-ié então na moda para a juventude.

No mesmo ano consegue gravar nos nascentes estúdios da gravadora local ISAEC, uma nova versão do seu método de violão. Vai se chamar Leve Seu Professor de Violão Para Casa, um álbum duplo, caprichadíssimo, patrocinado pela Prefeitura de Porto Alegre e pela fábrica de violões Giannini. Vem com um manual ilustrado por fotos de Salomão Scliar. No ano seguinte lançará um terceiro volume nos mesmos moldes.

Ampliando horizontes e estilos, ganha o prêmio de Melhor Arranjo na quarta edição do festival de música regional Califórnia da Canção, de Uruguaiana, em 1974. Voltaria ao festival em 1979 e, no meio disso, ainda participa da também regionalista III Vindima da Canção Popular de Flores da Cunha.

No ano seguinte, Meu Pensamento, composto e interpretado por ele, leva um honroso segundo lugar no I Festival Nacional do Choro – Brasileirinho, com que a Rede Bandeirantes de TV celebrava o renascimento do gênero. No ano seguinte, no mesmo festival, não vai tão longe, mas classifica outra obra sua: Sinuoso.

Meu Pensamento teria algumas gravações, como a do álbum Nós, os Chorões, lançado pela Continental em 1980. O disco reuniu os melhores veteranos do choro de Porto Alegre, como Plauto Cruz na flauta, Peri Cunha no bandolim, Jessé no violão, Lúcio do Cavaquinho, Azeitona no pandeiro e por aí vamos. Meu Pensamento também é gravado no álbum coletivo Porto Alegre 84.

A partir daí, foi se aproximando da nova geração do choro de Porto Alegre.  

Monta o regional Vibrações com os netos de Túlio Piva – Rodrigo e Rogério Piva –, o pandeirista Giovanni Berti e Lúcio do Cavaquinho. O regional tocou muito numa década de ouro do choro na capital: os anos 1980. Também é sócio-fundador do Regional do Theatro São Pedro, junto com Lúcio e Giovanni, mais Plauto Cruz (flauta), Ayrton do Bandolim, Fernando do Ó (surdo) e o Professor Darcy Alves (violão). Com esse grupo, acompanhou de Altamiro Carrilho a Ademilde Fonseca, e sedimentou sua lenda local.

Quando morreu, de câncer, em 15 de setembro de 1988, era figura reverenciada do samba e do choro da sua cidade. Tinha 69 anos, tocava violão há 60. Para tristeza geral, a doença o impediu de gravar todos os violões de seu segundo LP (o primeiro fora Sambas e Sambas, nos anos 60). Mas o disco saiu ainda naquele ano, junto com uma biografia sua escrita pelo jornalista Danilo Ucha.

Durante toda a vida Jessé estudou violão, diariamente, horas a fio. O repertório ia, tranquilo, de Bach a Villa-Lobos – passando, evidentemente, por Pixinguinha e Jacob do Bandolim. Tocava de tudo, mas sua paixão era efetivamente o virtuosismo harmônico e melódico do choro. O cara viu o gênero entrar e sair de cena mais de uma vez. 

Por isso, todo mundo ouvia quando ele repetia: 

O choro não morreu, nem vai morrer. Mas está na UTI. De vez em quando toma um fôlego.


Arthur de Faria nasceu no ano que não terminou, é compositor de profissão (15 discos, meia centena de trilhas) e doutorando em literatura brasileira na UFRGS por puro amor desinteressado. Publicou Elis, uma biografia musical (Arquipélago, 2015).

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