Arthur de Faria | Porto Alegre: uma biografia musical

Capítulo XLV

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Capítulo XLV

Antes de seguir adiante, voltemos umas casinhas no jogo.

Primeiro, para lembrar da desgraceira que foi a enchente de 1941. Toda a população, incluindo dezenas de artistas em shows beneficentes, se organizou para ajudar os flagelados. As chuvas chegaram com a Páscoa e custaram a parar. E aí, quando pararam, o Guaíba continuou subindo, graças à água que descia dos seus afluentes. Dia oito de maio a cheia alcançou seu ponto máximo: o lago, estuário, rio (ou como queira o amigo chamá-lo) estava quatro metros e 76 centímetros acima de seu leito. Parou tudo: 70 mil flagelados, 50 milhões de dólares de prejuízo. Foi aí que decidiram pela construção do muro da Mauá, que separa o centro de Porto Alegre das águas que viram a cidade nascer. Só que curiosamente, ele só seria construído 30 anos depois, na ditadura seguinte (entre 1971 e 74, prefeitura de Thompson Flores). E NUNCA usado.

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Antes de seguir adiante, voltemos umas casinhas no jogo.

Primeiro, para lembrar da desgraceira que foi a enchente de 1941. Toda a população, incluindo dezenas de artistas em shows beneficentes, se organizou para ajudar os flagelados. As chuvas chegaram com a Páscoa e custaram a parar. E aí, quando pararam, o Guaíba continuou subindo, graças à água que descia dos seus afluentes. Dia oito de maio a cheia alcançou seu ponto máximo: o lago, estuário, rio (ou como queira o amigo chamá-lo) estava quatro metros e 76 centímetros acima de seu leito.  Parou tudo: 70 mil flagelados, 50 milhões de dólares de prejuízo. Foi aí que decidiram pela construção do muro da Mauá, que separa o centro de Porto Alegre das águas que viram a cidade nascer. Só que curiosamente, ele só seria construído 30 anos depois, na ditadura seguinte (entre 1971 e 74, prefeitura de Thompson Flores). E NUNCA usado.

Porto Alegre, a contragosto uma Veneza brasileira

Também passamos batido pelo crescimento da Livraria do Globo, que se tornara uma das maiores editoras do país. Sente o time: Mario Quintana – que estreara em livro ali, em 1940, com Rua dos Cataventos -, Erico Verissimo (que publicaria nela suas mais de 30 obras), Dyonélio Machado, Darcy Azambuja, Vianna Moog, Athos Damasceno Ferreira. Mais as traduções, onde a editora sedimentaria sua fama de pioneira, em obras como Admirável Mundo Novo, do Aldous Huxley, e As Vinhas da Ira, do Steinbeck, ambas vertidas ao português por ninguém menos que Erico. Ou Baudelaire, Thomas Mann, a Comédia Humana de Balzac, Em Busca do Tempo Perdido, do Proust, aparecendo no país pela primeira vez, traduzido por Mario Quintana.Por três décadas seria uma das principais editoras nacionais, com um catálogo de mais de dois mil títulos. E isso que ela não podia ter começado de forma mais modesta: em 1899, editando – pense no lugar e no momento – Augusto Comte, o pai do positivismo. E numa modesta oficininha nos fundos da livraria, fundada por Laudelino Pinheiro Barcellos e Samuel Alves Pinto em 1883. Em 1918 havia já o Almanaque do Globo e, com a morte de Laudelino, José Bertaso entra como sócio. Seu filho, Henrique Bertaso, será a peça-chave para que a editora se torne o que foi. É quando ele assume a coordenação que chega a turma da pesada: Mansueto Bernardi, Erico e Quintana.

A livraria nos anos 1920 e nos anos 1940.

Tanto quanto dos livros, a fama da casa vem da Revista da Globo, que começa a ser editada em 1929 (há duas versões para seu surgimento, e ambas envolvem Getúlio Vargas, então Presidente do Estado, um grande interessado em qualquer mídia – em troca, a revista não só vai apoiar sua candidatura à presidência da República como também a subsequente Revolução de 30, seguindo na fé getulista ao longo de todo o Estado Novo). 

A Revista do Globo só para de circular em 1967, mas aí já não tinha quase nada da importância que teve entre os anos 1930 a 1950.

Décadas de capricho gráfico.

E ainda não falamos na explosão dos bailes a partir dos anos 1950. Neles, as melhores oportunidades apareciam, é claro, para quem tocava em alguma das rádios locais – e que, por consequência, tinha mais renome. Havia, claro, orquestras do interior que fizeram sucesso também na capital, como o Conjunto João Roberto – de Cachoeira do Sul – ,  ou Pedrinho e Seu Conjunto – de Bento. Mas as grandes vedetes eram mesmo as formações locais, como a Orquestra de Karl Faust. Esses chegavam a fazer 22 bailes num único mês. Jornadas de cinco horas de música, mas para as quais tinham várias regalias. Uma delas: se o lance fosse a mais de 250 quilômetros de distância de Porto Alegre, só iam de avião… 

Também exigiam um conjunto melódico, para revezar enquanto descansavam e faziam uma das três trocas de figurinos de cada apresentação. Eram a culminância de uma época (entre meados dos anos 1920 e o final dos 60) que teve, só em Porto Alegre, mais de uma centena de orquestras e jazz bands. Um mundo rapidamente substituído pela febre local dos tais melódicos – mas isso é assunto para um capítulo vindouro.

Enquanto uns ambientes cresciam, outros minguavam: o último café com música ao vivo – o it dos anos 30 – fechou suas portas em 1950. Era o Indiana, na rua da Praia, onde tocava um sexteto all star de formação bastante curiosa: Chaguinha no trompete, Breno Baldo no sax e clarinete, Antoninho Gonçalves na guitarra, o Maestro Zabalia no bandoneón, Marcelus no piano e João Bandeira no contrabaixo.

Mas é justamente nessa década que o rádio chega ao auge da popularidade, profissionalismo e faturamento. Estava no centro da sala de qualquer casa. No horário das radionovelas noturnas, 92% dos aparelhos existentes em Porto Alegre estavam ligados. O impacto no interior só não era maior porque apenas um terço dos lares gaúchos tinha energia elétrica, e o rádio de pilha ainda não tinha se popularizado.

Anos 50: o lendário auditório da Farroupilha, com o time quase completo
Aqui, na escadaria, o time COMPLETO

A Orquestra Sinfônica de Porto Alegre, fundada em 1950 pelo maestro húngaro Pablo Komlós, vem para somar no cenário, empregando gente muito boa e experiente como o já tantas vezes citado Salvador Campanella: 

Quando entrei na OSPA eu já tinha bastante prática, porque na rádio é necessária muita tarimba, do contrário não se resolve nada. (…) Não dá tempo para nada, tudo é feito muito ligeiro. E eram cinco programas noturnos de meia hora, ensaio de duas horas. Então o negócio era feito assim: “Tá, tá, tá pronto, cuidado com o sinal.” O maestro Pablo Kómlos (…) ia lá para assistir a rádio e ficava bobo: como é que esse pessoal se arranja? (…) Saía bem porque os músicos eram de primeira categoria: (…)Breno Baldo,Rui Silva, eram 35 músicos. Foi lá da Rádio Farroupilha que surgiu a OSPA. Toda vez que a OSPA tinha algum concerto, despachava 22 músicos. Nós gravávamos o programa e a OSPA fazia o concerto. Foi quando me convidaram pra ser regente da OSPA. (…) E daí foi toda a orquestra junto.

Esse “foi toda a orquestra junto”, ne real, só aconteceria quando a coisa desandou, nos anos 1960. Já já falaremos disso.


Antes, aproveitemos para dar uma estudada no que tocavam as rádios da capital na virada dos anos 1950 pros 60. O repertório era vastíssimo: de tudo, e em grandes quantidades. Muita música centro-americana, do Caribe ao México, com uma avassaladora quantidade de boleros e toda a variedade de ritmos cubanos agrupada sob o rótulo de “salsa”. Uma onda forte de guarânias paraguaias. Muitíssima música pop estadunidense de então (swing, fox, temas de filmes, standards variados). Tangos dos anos 1930 e 40. Os “estrangeirismos” eram tantos que exigia-se dos locutores – muitos deles contratados por concurso – conhecimentos de francês, inglês e italiano (além de empostação de voz, boa presença de palco e alguma noção de música erudita).

A isso somava-se os sucessos da música brasileira de todas as épocas. 

Pois então: por música brasileira entendia-se aquela feita 90% no Rio de Janeiro, por cariocas, baianos, mineiros e um que outro paulista ou pernambucano. 

Nas rádios locais, a escolha dos repertórios era feita pela direção artística, que então se encarregava de encomendar os arranjos a este ou àquele maestro. Ao intérprete, restava pouco mais que escolher o tom. Salvador Campanella, por exemplo, recebia a programação mensal das Emissoras Associadas de Assis Chateaubriand e, a partir dessa playlist, definia o que seria tocado na Farroupilha, por quem e com quais arranjos. Exatamente como hoje fazem as emissoras pop comerciais com as paradas da Billboard.

Salvador Campanella, chamado carinhosamente pelos músicos da orquestra de Nossa Senhora da Bronca

Com todas as orquestras gaúchas, a situação era a mesma: o pessoal queria ouvir o que tocava no rádio. E o que tocava no rádio não era música composta em Porto Alegre.

Nesse repertório variado, o único compositor local que efetivamente entrava na roda era Lupicínio Rodrigues. (Claro: havia sucessos isolados, desde que estourassem nacionalmente antes – como o Fiz a Cama na Varanda.)

Entre 1935 e 1965, um E.T. que baixasse no Rio Grande do Sul concluiria que os gaúchos tinham uma curiosa espécie de bloqueio que os impedia de compor música que tocasse no rádio ou virasse disco. O próprio Lupi, já em 1939, reclamava na Revista do Globo

Um sambista, no Rio, à primeira composição, já vê o seu nome enchendo as páginas das revistas, ecoando pela rua, e, mais do que isso, passa logo a ganhar dinheiro… Mas aqui não acontece o mesmo. É preciso um autor fazer sucesso para que se acredite nas suas possibilidades. Os próprios meios radiofônicos da capital não ajudam o compositor a aparecer.

Como já vimos, pouco tempo antes não era assim. Até meados dos anos 1930, a cidade fervilhava de bons e populares compositores como Octávio Dutra, fazendo uma música que começava a soar original, a ter uma cara porto-alegrense.

Algo houve para que isso mudasse.

E o motivo foi gaúcho: Getúlio Vargas, principalmente a partir do Estado Novo, fazendo todo o possível para unificar o Brasil sob a mesma cultura. Como a capital era no Rio de Janeiro, onde estavam também as gravadoras e, a partir de 1940, a poderosíssima e estatal Rádio Nacional, música carioca passou a ser sinônimo de música brasileira.

Getúlio recém-entrado no Palácio do Catete

Apesar da evidente ligação com o fascismo italiano e o nazismo alemão (passeatas com centenas de jovens ostentando bandeiras com a suástica aconteceram em várias cidades do Estado, incluindo Porto Alegre; 500 militantes nazistas vieram da Alemanha diretamente para a capital gaúcha ao longo da década de 1930), a política de unificação passa a perseguir violentamente atitudes vistas como “separatismo étnico”. Seja vinda de fora ou mesmo das diferentes culturas regionais.

Um exemplo basta para esclarecer o nível de estupidez xenófoba a que se chegou.

O compositor e cantor porto-alegrense Cláudio Levitan conta que seu pai e seu tio faziam parte de um grupo de russos, poloneses e húngaros, muitos deles judeus, que ensaiava num salão sobre o Clube Xangri-lá, esquina da General Câmara com a rua da Praia. Tocavam e cantavam música russa, com um grande coro e uma orquestrinha formada por violinos e todos os tipos de bandolins e balalaicas. Juntando-se a eles, um grupo de dança, cujos bailarinos também tocavam. Uma bela noite, a polícia política de Vargas invadiu o local, quebrou todos os instrumentos e prendeu alguns russos, que desapareceram para sempre.

É mole?

E então Lupicínio.

Genial como era – e, a partir do final dos anos 1940, também bem-sucedido –, Lupi fez escola. E fez escola ignorando totalmente o convívio que teve com os mesmos músicos que, nas décadas de 1910 e 20, misturavam schottischs, polcas, valsas, mazurcas, habaneras, batucadas negras, tarantelas italianas, fandangos ibéricos e algumas das quase extintas raízes açorianas. 

Orgulhava-se de fazer samba como um carioca.


Arthur de Faria nasceu no ano que não terminou, é compositor de profissão (15 discos, meia centena de trilhas) e doutorando em literatura brasileira na UFRGS por puro amor desinteressado. Publicou Elis, uma biografia musical (Arquipélago, 2015).

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