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Prefeitura oferece versões contraditórias sobre reabertura e gestão da Usina do Gasômetro

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Prefeitura oferece versões contraditórias sobre reabertura e gestão da Usina do Gasômetro

Reportagem de Fernanda Wenzel e Naira Hofmeister

Fechada desde novembro de 2017, sob a promessa de reabrir no ano seguinte em um novo formato inspirado na Tate Modern Gallery de Londres, a Usina do Gasômetro tem seu destino desenhado em cinco setores diferentes da Prefeitura de Porto Alegre. Mas, em vez de convergirem, gabinete do prefeito e secretarias de Cultura, Infraestrutura, Gestão e Parcerias Estratégicas oferecem visões contraditórias sobre o futuro do espaço cultural.

Na Secretaria da Cultura, o plano é reabrir a sala P.F. Gastal e o Teatro Elis Regina em novembro, e concluir o restante da obra em março de 2021. Quem assegura o prazo é o diretor da Usina do Gasômetro, Mauro Ochman. “O cinema terá equipamentos de última geração, e o teatro, som e iluminação novos”, projeta o gestor.

A fala corrobora a informação dada à Parêntese pelo secretário adjunto da Secretaria de Parcerias Estratégicas, Fernando Pimentel. “Daqui a sete ou oito meses vamos ter uma nova sala de cinema pública em Porto Alegre”, anunciou, referindo-se à P.F. Gastal.

Contudo, a Secretaria de Infraestrutura e Mobilidade Urbana, responsável pela fiscalização da reforma que está em execução desde janeiro, não se compromete com a entrega parcial dos espaços da Usina neste ano. “Nossa área técnica trabalha apenas com o prazo final contratual (da reforma), que é março de 2021. Os demais prazos são expectativas, são extraoficiais”, afirmou a assessoria de imprensa.

Contribuem para a confusão de prazos os vários contratos que envolvem o Gasômetro. O contrato de financiamento da obra, assinado em 2016, determina que a entrega do edifício reformado deveria ser feita em agosto de 2020. Porém, no edital de licitação para contratação da empreiteira, a previsão de início era dezembro de 2019, e a conclusão, 14 meses depois. As obras só iniciaram em janeiro.

Tampouco há consenso, internamente, sobre como será administrado o espaço após a reabertura. Assim como outros equipamentos culturais de Porto Alegre – Centro Cultural da Restinga, Pinacoteca Ruben Berta, Atelier Livre e Cinemateca Capitólio –, a Usina está na lista de centros culturais cuja gestão deve ser passada para a iniciativa privada ou para organizações da sociedade civil (OSCs).

Entre assessores do prefeito Nelson Marchezan Jr. (PSDB), a informação que circula é precisa: o Gasômetro seria oferecido em um contrato de concessão por 20 anos, cujo valor chegaria a R$ 29,5 milhões. Confirmada essa hipótese, seria o mesmo tipo de contrato que rege o Auditório Araújo Vianna, em que uma empresa faz investimentos e em troca pode explorar o local – mas o modelo é marcado pela menor ingerência do poder público, o que contraria determinação tomada pelo secretário de Cultura, Luciano Alabarse, logo no início de seu mandato, quando garantiu que a programação artística da Usina seria formulada pelo poder público.

O diretor do Gasômetro, Mauro Ochman, entretanto, nega que já exista uma decisão sobre o formato de terceirização que será adotado para o centro cultural – a prefeitura usa termos específicos para identificar diferenças entre as possibilidades de gestão privada, conforme explicou em nota ao Matinal. “Não está definido se vai ser concessão, contratualização, parceria-público-privada. Quem está cuidando desse detalhamento é a Secretária de Parcerias Estratégicas”, informa. 

A reportagem foi então pedir esclarecimentos à pasta, que informou não ter a definição final sobre o que será feito. Segundo a assessoria de imprensa, o projeto da Usina do Gasômetro ainda nem chegou aos escaninhos do órgão: “Nas próximas semanas, a Secretaria Municipal de Planejamento e Gestão, um dos órgãos responsáveis pela revitalização da Usina do Gasômetro, finalizará o estudo inicial para que a Secretaria Municipal de Parcerias Estratégicas trabalhe na modelagem do projeto”.

O fato é que a prefeitura já tem um projeto sobre a melhor forma de gerir o Gasômetro, feito pelo Instituto Odeon através de um acordo acertado ainda na gestão passada. O próprio secretário da Cultura, Luciano Alabarse, disse, logo após assumir a pasta, que a terceirização do Gasômetro já estava decidida: Estou recebendo esse projeto, não participei dele. Já está aprovado”.

 

Contrato em segredo

Quando o antecessor de Alabarse, Roque Jacoby, começou a receber os primeiros questionamentos sobre o futuro da Usina do Gasômetro, ele garantiu que o processo de contratação do gestor privado e do formato previsto para o contrato seriam alvo de “consultas complementares”, feitas à classe artística,. Na época, os artistas temiam perder espaço em uma eventual privatização. Jacoby estava de saída, mas assegurou o compromisso com a transparência e disse que o diálogo com a comunidade aconteceria a partir de 2017, já sob a batuta do novo mandatário.

Mas a previsão não se confirmou. O resultado do trabalho do Instituto Odeon é mantido em sigilo pela prefeitura sob o argumento de que subsidiará a elaboração do edital e que sua divulgação antecipada poderia prejudicar a concorrência pública. Apenas um dos oito volumes de estudos elaborados sob o título “Modelo de gestão e sustentabilidade Usina do Gasômetro” é disponibilizado pela administração municipal. Trata-se  do terceiro, correspondente à “Definição de políticas, estratégias de administração e programação” e cuja data de entrega estampada na folha de rosto do relatório é junho de 2018.

Já o contrato que deu origem ao desenho exposto no estudo – e que poderia trazer pistas sobre o conteúdo da proposta de terceirização – tampouco está acessível ao público porque a prefeitura não se envolveu na contratação do Odeon. O Instituto foi contratado diretamente pelo Banco de Desenvolvimento da América Latina, o CAF, para “evitar mau uso de investimento”, conforme explicação dada na época

Por isso, não há obrigatoriedade de disponibilizar o contrato no portal da transparência pública nem de informar o valor pago pelos serviços. Embora possa parecer surpreendente para o cidadão comum, esse é um expediente usual conforme o CAF. Chama-se acordo de cooperação técnica, em que o órgão financiador doa um recurso (no caso, o estudo) ao beneficiário do empréstimo para garantir o melhor emprego do dinheiro.

 

Corrida para não perder o dinheiro

As obras da Usina do Gasômetro deverão custar cerca de R$ 12 milhões. A maior parte desse recurso é proveniente de um empréstimo do CAF. Formalizado em agosto de 2016, seu principal objetivo era viabilizar a revitalização da orla do Guaíba, mas o acordo incluiu também obras de mobilidade, além da reforma no centro cultural.

Pelo contrato com a instituição financeira, as obras deveriam ser entregues até agosto deste ano – prazo que, no caso do Gasômetro, se tornou inviável depois que muitas mudanças foram feitas no projeto arquitetônico para adequá-lo ao orçamento disponível. Por isso, desde o ano passado a prefeitura negocia a prorrogação até agosto de 2021 – caso contrário, seria necessário devolver o dinheiro. Segundo a Secretaria Municipal de Planejamento e Gestão, o pedido está sob análise do CAF.

Ainda que tudo dê certo, o centro cultural que vai emergir após a reforma é bem mais modesto do que a proposta inicial. Elaborado pela empresa 3C Arquitetura e Urbanismo em 2015, o projeto incluía sugestões recebidas em oficinas e debates com a comunidade artística e frequentadores da Usina e previa uma remodelação completa na parte interna do edifício. Mas esse projeto arquitetônico – que custou R$ 417 mil aos cofres públicos – foi abandonado, e a empresa elaborou um novo, mais simples, ao custo de R$ 90 mil. À época, a prefeitura justificou que não havia dinheiro nem para começar a reforma que daria ao Gasômetro os ares da Tate Modern Gallery, uma das referências dos arquitetos ao projetarem a primeira reestruturação “Como o Gasômetro, a Tate, em Londres, também era uma usina de produção de energia que virou centro cultural – a escala é muito maior, claro, mas a lógica é semelhante”, explicou, em 2017, o arquiteto Tiago Holzmann da Silva, sócio da 3C. 

A nova reforma se restringiu a assegurar acessibilidade, criar planos de prevenção de incêndio e fazer a reforma das redes elétrica e hidráulica. Também foi mantido o trabalho de reforço estrutural do prédio, essencial para o terraço ser usado com segurança.

O edifício tem mais de 9 mil m² de área útil, com diversas salas para apresentações e oficinas artísticas. Em obras desde janeiro, até o momento foram executados apenas trabalhos iniciais, como a colocação de tapumes, montagem de canteiros de obras e demolições. Quem caminha pelo lado de fora da Usina praticamente não vê movimentação de operários. O único sinal da reforma são eventuais barulhos de marteladas vindos de dentro do prédio. De vez em quando, um caminhão entra ou sai pelo portão instalado junto aos tapumes, pela Avenida Presidente João Goulart.

 

Compra de equipamentos não tem data

Desde que Usina do Gasômetro foi fechada, grande parte da programação da sala P. F. Gastal – famosa pelas sessões cult, que incluía filmes “b”, mostras especiais e festivais alternativos – foi absorvida, com sucesso de público, pela Cinemateca Capitólio, que a prefeitura pretende incluir no pacote de terceirizações.

Em seu retorno, a P.F Gastal não ficará no local original – no terceiro andar, junto ao antigo café e ao lado do terraço que dá para a avenida João Goulart. O novo projeto transferiu o cinema para o térreo, junto à Galeria dos Arcos, onde os arquitetos entendem que está o “coração” do centro cultural, entre a orla renovada do Guaíba e o Cais Mauá, que aguarda há uma década a prometida revitalização.

O problema é que, embora a Cultura sinalize com a reabertura do antigo cinema antes mesmo do fim das obras no Gasômetro, poltronas, projetores, equipamentos de luz e som não estão incluídos no projeto arquitetônico e nem no orçamento da obra. O diretor da Usina, Mauro Ochman informou que tudo será comprado através de licitação, mas não deu prazo para que ela ocorra.

 

A odisseia de um teatro

Se realmente ocorrer em novembro, a entrega do Teatro Elis Regina será o fim de uma verdadeira odisseia que dura mais de duas décadas. Escolhido em um concurso público em 1994, quando o Gasômetro se transformou em centro cultural e foi salvo do abandono — e talvez da demolição —, o projeto dos arquitetos Sylvia Moreira e Rufino Becker nunca foi concluído por falta de recursos – em 2007 a prefeitura conseguiu R$ 1,5 milhão por meio da Lei Rouanet para reformar o teatro, mas nem assim a obra foi adiante. O dinheiro foi sendo usado em partes. Quando chegou na conclusão, em maio de 2008, a verba tinha acabado. 

A proposta é de um teatro adaptável para diferentes tipos de espetáculos, com cadeiras móveis que permitam configurações diversas do espaço. Moreira explica que a sala é muito pequena para um teatro convencional, do tipo italiano – em que os espectadores ficam de frente para o palco. “Um espaço tradicional como o do Theatro São Pedro não caberia ali. Então tivemos que criar uma solução diferente, projetando uma grande caixa cênica onde pode haver qualquer tipo de apresentação”, explica a arquiteta.

Na época em que foi apresentada, entretanto, a proposta desagradou parte da comunidade cultural de Porto Alegre. Essa resistência, associada à falta de planejamento do poder público, fez com que, até o início da atual reforma, as obras dos anos 1990 ficassem inacabadas até hoje. Mesmo incompleto, o teatro chegou a ser aproveitado para espetáculos do Porto Alegre em Cena e da Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz.

Agora, Ochman promete um teatro totalmente reformado, apto a receber até 300 pessoas, respeitando o projeto original e com “equipamentos de som e iluminação novos”. Uma promessa na qual a arquiteta Moreira tem dificuldade em acreditar, após 26 anos de espera. “A única coisa que me faz acreditar é porque é o Luciano [Alabarse] o secretário. Ele participou do projeto desde o início e sabe da importância do teatro para a Usina, para a cultura e para Porto Alegre”, desabafa. 

 

Usina das Artes sem garantia de continuidade

O destino do projeto Usina das Artes, que garantia residência artística e ajuda de custo a grupos de teatro locais, segue indefinido. O último edital foi lançado em dezembro de 2015, embora uma lei assegure novas chamadas públicas a cada ano. Os selecionados recebiam o direito de usar uma área do Gasômetro para desenvolver projetos de criação artística e, em troca, promoviam apresentações gratuitas para a comunidade.

Sem novas chamadas públicas, os vencedores do último edital tiveram autorização para permanecer na Usina mesmo sem contrato válido e, desde que o centro cultural fechou, foram realocados em um edifício da antiga escola municipal Santa Terezinha, vizinha da Vila Planetário, onde seguem até hoje. 

A dúvida em relação à reabertura é se o projeto vai voltar para o local onde nasceu. “Tudo vai depender de como vai ser feita a gestão”, desconversa Mauro Ochman. Em abril do ano passado, Alabarse chegou a dizer ao jornal Extra Classe que a lei não determina que o projeto aconteça dentro da Usina do Gasômetro, sugerindo a possibilidade de não devolvê-lo ao centro cultural. “Eu até acho que não é um local apropriado para isso”, avaliou, na ocasião. 

 

Estudo de ocupação prevê coworking e sala de vinhos

No terceiro volume do estudo do Instituto Odeon – o único a que a reportagem teve acesso –, há sugestão de incorporação de novas atividades na Usina do Gasômetro, previsão de equipe necessária para a manutenção do centro cultural e até diretrizes para a programação.

No quarto andar, está prevista a abertura de um complexo chamado Usina Criativa, que ofereceria escritórios compartilhados no formato coworking e atividades focadas no desenvolvimento de startups, sobretudo do setor da indústria criativa (que inclui, por exemplo, arte, moda e games, entre outros). No mesmo pavimento seria a Sala de Vinhos, uma loja-escola especial para degustação de vinhos e capacitação de novos sommeliers. 

O estudo também orienta a programação do cinema, que deve ser dividida entre lançamentos, curadoria própria, festivais e produções locais. O Odeon propôs ainda shows semanais com artistas locais, projetos de incentivo à literatura e apresentações curtas na hora do almoço. Segundo o documento, espaços da Usina devem ser ocupados por artistas locais, selecionados através de editais e mecanismos semelhantes. Quatro salas seriam reservadas para a formação e capacitação de profissionais, com foco nas artes visuais. Já a Galeria Lunara, no quintal andar, seria ocupada a cada ano por um artista diferente.

Para dar conta da operação do Gasômetro, estão previstos, no estudo, 30 servidores fixos além do  pessoal de limpeza, segurança, recepção, portaria e bilheteria, que serão terceirizadas.

Nada disso, entretanto, será obrigatoriamente incorporado na reabertura –, e o público só conhecerá o formato final quando o edital de terceirização for lançado, o que ainda não tem data para acontecer. A única definição que se tem é a abertura de um bar e restaurante no terraço de frente para o Guaíba. A promessa é um de happy hour sob uma pérgola com vista para o pôr do sol.


 

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