Crônica | Parêntese

José Falero: Redundância

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José Falero: Redundância José Falero Há coisas que a gente só consegue entender depois que cresce. Mas às vezes eu penso comigo mesmo que algumas das coisas mais importantes da vida a gente só pode compreender bem durante a infância, e pouco a pouco o perverso passar do tempo fatalmente tratará de nos desensiná-las. O entendimento da beleza do mundo e da vida, por exemplo, me parece reservado à pouca idade. Que o diga o Urso, meu primeiro cachorro. O pulguento, já há muito falecido, testemunhou tudo, tudo, tudo o que eu já fui capaz de compreender. Nós costumávamos sentar lado a lado na pilha de tijolos que havia no pátio para, juntos, perdermos o fôlego com a maravilha da existência explodindo ininterruptamente diante dos nossos olhos, enquanto lambíamos um sorvete. Claro que o Urso nunca teve um sorvete para repartir comigo; era sempre eu que compartilhava o meu: uma lambida para mim, uma lambida para ele. E nesses momentos fugazes, que nem por isso deixaram de ser eternos, o rabo do pulguento, lembro bem, balançava com mais vontade do que nunca, o que me levava a imaginar que os cachorros deviam ter o coração ali, no rabo. Naquela época de verões mais exuberantes, cujas noites abrigavam vaga-lumes e cujas tardes distribuíam cigarras, as árvores reservavam segredos a quem enfrentasse o medo dos bichos-cabeludos e nelas trepasse. Quanto mais alto se conseguia ir, mais numerosos e mais interessantes eram esses segredos. A certa altura, podia-se ver que, por alguma razão, todas as mães do mundo —  cada qual em seu próprio pátio, cada qual com a barriga encostada em seu próprio tanque —, todas elas lavavam a roupa de seus filhos num mesmíssimo horário; um pouco mais para cima, descobria-se que o telhado de todas as casas era recoberto de limo e que, de algum jeito, todos os brinquedos perdidos da história tinham ido parar lá, em cima deles; num galho ainda mais alto podia-se, de vez em quando, flagrar abraços estranhos e prolongados que as pessoas só se davam às escondidas, nos quais as mãos de uma não apertavam as costas da outra, mas sim a bunda; e uma vez eu consegui subir tanto, mas tanto, que acabei descobrindo a existência de muitas outras casas lá longe, bem para lá do matagal, e elas me lembraram um formigueiro, de tantas que eram e de tão minúsculas que pareciam àquela distância. Acho que o Urso nunca me perdoou por não conseguir levá-lo para cima das árvores comigo. Sempre que eu subia, ele ficava me latindo uma porção de desaforos lá de baixo. Só que quando eu descia de volta, fazia questão de recompensá-lo, enchendo as suas orelhas e o seu pescoço de cafuné, enquanto lhe contava tudinho o que eu tinha visto, tudinho o que eu tinha descoberto. Nessas ocasiões, ele me lambia sem parar, mas aquilo não era o seu jeito de retribuir ou agradecer pelo carinho e pelo compartilhamento do meu aprendizado, e sim a sua maneira de implorar que eu […]

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José Falero Há coisas que a gente só consegue entender depois que cresce. Mas às vezes eu penso comigo mesmo que algumas das coisas mais importantes da vida a gente só pode compreender bem durante a infância, e pouco a pouco o perverso passar do tempo fatalmente tratará de nos desensiná-las. O entendimento da beleza do mundo e da vida, por exemplo, me parece reservado à pouca idade. Que o diga o Urso, meu primeiro cachorro. O pulguento, já há muito falecido, testemunhou tudo, tudo, tudo o que eu já fui capaz de compreender. Nós costumávamos sentar lado a lado na pilha de tijolos que havia no pátio para, juntos, perdermos o fôlego com a maravilha da existência explodindo ininterruptamente diante dos nossos olhos, enquanto lambíamos um sorvete. Claro que o Urso nunca teve um sorvete para repartir comigo; era sempre eu que compartilhava o meu: uma lambida para mim, uma lambida para ele. E nesses momentos fugazes, que nem por isso deixaram de ser eternos, o rabo do pulguento, lembro bem, balançava com mais vontade do que nunca, o que me levava a imaginar que os cachorros deviam ter o coração ali, no rabo. Naquela época de verões mais exuberantes, cujas noites abrigavam vaga-lumes e cujas tardes distribuíam cigarras, as árvores reservavam segredos a quem enfrentasse o medo dos bichos-cabeludos e nelas trepasse. Quanto mais alto se conseguia ir, mais numerosos e mais interessantes eram esses segredos. A certa altura, podia-se ver que, por alguma razão, todas as mães do mundo —  cada qual em seu próprio pátio, cada qual com a barriga encostada em seu próprio tanque —, todas elas lavavam a roupa de seus filhos num mesmíssimo horário; um pouco mais para cima, descobria-se que o telhado de todas as casas era recoberto de limo e que, de algum jeito, todos os brinquedos perdidos da história tinham ido parar lá, em cima deles; num galho ainda mais alto podia-se, de vez em quando, flagrar abraços estranhos e prolongados que as pessoas só se davam às escondidas, nos quais as mãos de uma não apertavam as costas da outra, mas sim a bunda; e uma vez eu consegui subir tanto, mas tanto, que acabei descobrindo a existência de muitas outras casas lá longe, bem para lá do matagal, e elas me lembraram um formigueiro, de tantas que eram e de tão minúsculas que pareciam àquela distância. Acho que o Urso nunca me perdoou por não conseguir levá-lo para cima das árvores comigo. Sempre que eu subia, ele ficava me latindo uma porção de desaforos lá de baixo. Só que quando eu descia de volta, fazia questão de recompensá-lo, enchendo as suas orelhas e o seu pescoço de cafuné, enquanto lhe contava tudinho o que eu tinha visto, tudinho o que eu tinha descoberto. Nessas ocasiões, ele me lambia sem parar, mas aquilo não era o seu jeito de retribuir ou agradecer pelo carinho e pelo compartilhamento do meu aprendizado, e sim a sua maneira de implorar que eu […]

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