Reportagem

Estilhaços pandêmicos: um reencontro com o jornal Boca de Rua

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Estilhaços pandêmicos: um reencontro com o jornal Boca de Rua Catadores notam cada vez mais gente recolhendo lixo nas ruas (Fotos: Manoel Madeira)

Durante cinco anos, no início dos anos 2000, participei do Jornal Boca de Rua, realizado e vendido por pessoas em situação de rua em Porto Alegre. Comecei como estagiário de graduação em Psicologia na UFRGS e fui ficando. Saí do Boca em 2007, pois fui morar fora da cidade — voltei quase uma década depois. Em 2016, na Feira do Livro, encontro uma antiga colaboradora do jornal. Pergunto como está o pessoal, o Leandro, o Ceco, o Paulo. “Bá! O Paulo foi morto pela polícia outro dia”. Aquele frio na barriga, aquela tristeza sob a chuva da rua da Praia. A gente varava a cidade fazendo reportagens juntos. E, de fato, aos poucos muitos deles iam morrendo. Com o passar dos anos após o retorno à cidade, eu mantinha aquela ideia vaga de voltar ao Boca. Mas, bom, a gente não tem tempo, né? Um dia descobri a morte do Ceco. Ano passado, recebi mensagem de uma amiga pra avisar que Leandro havia falecido. 

Março de 2021, domingo, tempo ruim. Porto Alegre meio-vazia. Bandeira preta, chamam. Passeio com minha mulher e filha de carro pela cidade. Passamos o Cinema Capitólio, entramos na José do Patrocínio, quando vejo Paulo mexendo num container de lixo. Passei anos achando que ele havia morrido. A antiga colaboradora ou se enganara, ou falava de outra pessoa. Não sei ao certo. Ainda o vejo: Paulo, a rua vazia, o cenário de ruína. Seu corpo negro retinto, magro, tenaz ainda, como o conheci. Foi um acontecimento. Embicamos o carro ao lado do container. “Paulo!”. Conversamos. “Vamo fazer algum projeto junto? Vamo inventar alguma história, alguma matéria”. “Vamo, vamo, demorou”, dizia ele. “Eu fico sempre aqui nesse canto”, disse nos mostrando seus pertences. 

Paulo

Paulo foi morar na rua aos nove anos, hoje conta 55. A cidade parece sua casa, apesar de toda eventual hostilidade que lhe proporciona. Nos nossos tempos de andanças, ele era um repórter perspicaz, precioso. Depois daquele encontro, procurei Paulo semanas a fio pela Cidade Baixa, sem sucesso. Fiz algumas saídas sozinho, buscando conversas sobre esses tempos pandêmicos. Sem sucesso também. Lembro de entrar numa pensão pra tentar entrevistas. O primeiro sujeito com quem falei fechou a porta da pensão e desapareceu. Fiquei trancado. Esperei. Até que veio uma senhora, “Daonde tu é?”, perguntou. “Quero fazer uma matéria pra revista Parêntese”. “Quem tá aí?”, grita um cara lá de dentro, que não vejo. “Um cara querendo entrevistar nós prum jornal”, ela responde. “Qual jornal?”, ele pergunta. “Um jornal dos parente dele”, diz ela. “Manda embora!”, ele completa. Tento explicações. Ela me pede educadamente pra ir embora. Eles tinham toda a razão. Me senti um fiasco. 

O jornal Boca de Rua me acolheu novamente. Voltei a participar das reuniões semanais e descobri que, depois de tantos anos sem teto, Paulo havia conseguido um benefício pra morar num quarto de pensão. Nos encontramos entre grandes sortes e longas esperas. Varamos o Centro e a Cidade Baixa a pé colocando o papo de quinze anos em dia. Numa dessas, cruzamos com um casal e seus dois filhos revirando sacos de um container. Paulo os conhecia. Digo a ele da minha impressão de haver um aumento imenso de recicladores na cidade. “Aham!”, diz ele. “Aumentou muito. E tem cada vez menos material. Tem cada vez mais gente na rua, e mais gente fazendo reciclagem. Vejo, assim, famílias inteiras. Vejo muito cara que eu nunca tinha visto na rua”. 

Recicladores

Cena flagrada em depósito de reciclagem na Voluntários da Pátria

Todos os recicladores que entrevistamos, sem exceção, constatam o mesmo: o aumento intenso de pessoas que se dedicam à coleta após o início da pandemia. Eles dizem que a coleta é um meio relativamente rápido de conseguir algum dinheiro trabalhando. Carregam seus materiais em sacos, carrinhos de supermercado ou enormes carroças. Em todos os casos, há de se ter uma tenacidade absurda. Rodrigo, 32 anos, afirma que chega a fazer três viagens a pé por dia entre a Cidade Baixa e a Voluntários da Pátria, onde acredita que há o depósito de venda mais vantajoso — o que é, aliás, compartilhado com muitos dos entrevistados. “Tem que trotear”, diz ele. “Aqui na volta os cara pagam muito menos”, completa. Rodrigo recolhe o material em sacos pesadíssimos, já fazendo a separação antes de ir ao depósito: papelão, pet verde, pet branca (tipo Coca-Cola), pet leitosa (tipo iogurte), papel branco, latinhas. Com os sacos amarrados às costas sobre os ombros, caminha mais de uma hora até a Voluntários, vende o material e retorna. Ele diz que chega a ganhar entre R$ 40 e R$ 60 por dia, “se eu me esforçar muito”.

Em relação ao dinheiro, há um certo entrevero de narrativas. Alguns dizem que os pagamentos por cada viagem são mais minguados — os depósitos pagam por quilo de material. “É que eles não conseguem juntar muito peso. Pra tu juntar um quilo de pet, um quilo de latinha, tu tem que remar, né, meu”, diz Paulo. Conversamos com Anderson, 43 anos, que coleta material em sacos no Centro e na Cidade Baixa há três: “Tem mais gente pegando, tem muito menos material. Antes, eu fazia uma carga de manhã, uma carga de tarde e pagava bem. Agora, não. Como eles descobriram que é só pesar e pegar o dinheiro, eles começaram a fazer reciclagem. Hoje, se eu tirar dez pila por viagem já tá bom”, afirma. “Nunca quis ter carrinho [de supermercado], porque tu tem que casar com ele. Tu corre o risco de alguém vir te roubar, bater, por causa da porcaria de um carrinho”, completa.

Cada cubo de material reciclável pesa 1 tonelada

Os funcionários dos depósitos da Voluntários são os que indicam os pagamentos mais elevados aos recicladores. “Quem puxa os sacos nas costas chega a fazer quase cem reais por dia”, diz um deles, que não quis se identificar. “Os catadores reclamam muito, mas ganham mais que muito trabalhador com carteira assinada por aí”, sustenta. Tanto recicladores quanto os funcionários dos depósitos dizem que as carroças suportam entre 300 e 500 quilos. “Já vi cara chegar com 400 quilos de papel branco aqui e sair com R$ 200”, diz Jairo (nome fictício), que trabalha em um grande depósito.

Curioso emaranhado narrativo que aponta ao outro riquezas dentro de um contexto que carrega os clichês da precariedade. “O dono desse depósito aqui tá milionário. Ele compra um carro a cada quatro meses. Tem até casa na praia”, nos diz um reciclador em voz baixa na fila da balança. “Não, eles gastam muito. Rola muito dinheiro, mas eles ganham e já gastam”, retruca outro de soslaio.

Dentro do depósito, há duas balanças — a primeira é pra pequenas quantidades, normalmente pros sacos carregados nas costas; e a segunda, pros maiores volumes, trazidos pelos carrinheiros. Na frente das balanças, os recicladores fazem fila que vai até a calçada. Eles pesam sua coleta e recebem o pagamento. O quilo do papelão paga R$ 0,40; o das pets verdes ou leitosas, R$ 1,20; pet branca, R$ 1,70; papel branco, R$ 0,50; e o de latinha, o diamante do material, R$ 5,00. Ao lado da balança, Jairo trabalha na prensa do material. Atrás dele, sacos brancos de quase dois metros de altura, com a reciclagem já separada. E, ao lado da fila, grandes fardos em forma de cubo do material prensado e amarrado em pilhas que vão até o alto teto do depósito. “Cada fardo desse pesa uma tonelada”, diz. 

Reciclador pesa material em depósito da Voluntários.

As carroças utilizadas pelos recicladores, no mais das vezes, pertencem aos depósitos. Jairo afirma que, ali onde trabalha, o uso delas está atrelado a uma pensão que também pertence ao depósito. O quarto da pensão custa R$ 12 por dia, o que dá direito ao uso da carroça.  

Na calçada em frente ao depósito, o movimento é relativamente intenso. Há até um homem assando e vendendo churrasco, com alcatra, coxas e sobrecoxas. Enquanto conversamos, surge uma senhora em um Corsa vermelho, forrado de material pra vender. “Olha aí, ó! Tem até de carro”, diz Paulo. “Tá cada vez mais comum”, diz outro fazendo a fila. 

“ Ô, meu!”

Nessas primeiras saídas, pude reviver a satisfação de trabalhar com pessoas em situação de rua — com o Paulo, mais especificamente. Ele conhece quase todos que circulam pelas ruas; quem provavelmente contribuiria com a matéria e quem não. “Ô meu!”, grita ele quando aborda um entrevistado. Tem muita coisa condensada nessa saudação: seriedade, firmeza, desprendimento, legitimidade. “Ô meu! Quero falar contigo prum jornalzinho que nós tá fazendo aí”. Esperamos fazer mais dessas. 


Manoel Madeira é psicólogo (UFRGS) e psicanalista membro da APPOA. Email: [email protected] 

Paulo Ricardo da Silva é integrante do Jornal Boca de Rua desde 2004. 

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