Resenha

A Estrada Corre Para Sempre

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A Estrada Corre Para Sempre (Imagem: Spotify/Reprodução)

Por Cristiano Bastos

Apenas um artista prolífico como Julio Reny para reunir um alforje de incontáveis (emblemáticas) canções e, assim, ter munição suficiente para lançar uma coletânea tal qual a recém-lançada A Estrada Corre Para Sempre. Ainda mais tendo lançado, em 2001, a irrepreensível compilação A Caminhada de Julio Reny, que passeia por todas as fases de sua vasta carreira – da Expresso Oriente aos Cowboys Espirituais e contemplando também outras das diversas fases, incluindo sua obras solo, pelas quais a carreira de Julio passou.  

Em A Estrada Corre Para Sempre, o outsider Julio Reny pinçou, de seus três últimos álbuns (Diários da Chuva, A Primavera do Gato Amarelo e Bola 8), representativas canções feitas em sua carreira solo, retomada, com fôlego renovado, no começo dos anos 2000. São 14 músicas que, ele conta, foram escolhidas “auditivamente” e, sobretudo, sentimentalmente. Canções, diz Julio, que queria resgatar do limbo, pois achava que haviam ficado perdidas em seus respectivos discos.

Canções, muitas delas, românticas ou sobre alguns de seus desamores. As mulheres, afinal, sempre foram o grande combustível poético de Julio. Assim, “Rainha das Ruas”, “Casaco de Lã”, “Linda Menina”, “Impossível”, entre outras, tem em suas histórias amorosas o Julio Reny mais verdadeiro (e eternamente) romântico que se pode esperar. Outras canções são sobre as suas vivências, na vida e na estrada. Julio, que só escreve sobre o que vivenciou, mostra, em canções como “Enfeitiçado no Amor”, “Noite em São Sepé” e “Chove no Sul”, que a estrada pela qual caminha, de fato, corre para sempre.

A seguir, eu comento o disco faixa a faixa:

Chove no sul: antes de ser acometido por uma profunda depressão, Julio apreciava os dias chuvosos e melancólicos, típicos de Porto Alegre, no inverno. Dias, para o compositor, que, poeticamente, eram altamente evocativos. “Chove no Sul”, que abre Diários da Chuva (disco que marca a retomada de sua carreira solo, autoral, nos anos 2000) foi composta num desses dias, os quais, hoje em dia, ele diz não mais suportar. Especialmente, porque a canção foi escrita motivada pela separação com Cristiane, uma de suas ex-esposas.

Rainha das ruas: bem mais para cima, é “Rainha das ruas”, que, musicalmente, inaugura a fase do Julio cabareteiro, frequentador de “puteiros” e amante de garotas de programa. A canção fala sobre a garota de programa, pela qual Julio se apaixonara, que, para poder bancar sua faculdade, encontrara, na prostituição, uma saída financeira.

Nenhum lugar para esquecer: de título um tanto enigmático, “Nenhum lugar pra esquecer”, Julio fez nos dias em que enfrentou uma internação hospitalar, quando ficou  entre a vida e a morte, por causa da pneumonia que, no começo dos anos 2000, quase o levou à morte.  

Casaco de lã: escrita nos anos 90, “Casaco de lã” é a primeira parceria de Julio com Frank Jorge. Apesar de sua candura, Julio fez a canção em plena crise no casamento, momento em que, segundo ele, estava “louco para ter uma amante”. 

A Primavera do Gato Amarelo

O segundo fim: Julio a compôs para uma de suas amantes, “a mulher mais boa de cama com quem esteve”, diz o compositor. 

Linda menina: feita para uma garota com a qual Julio, certo dia, cruzou na rua. 

Noite em São Sepé: homenagem não só a São Sepé, município do interior gaúcho onde Julio tem cativo público, mas também a todos os fã e amigos feitos por ele, na estrada, em mais de quarenta anos de carreira. 

Invisível: canção dedicada a uma ex-colega de Julio, nos tempos em que trabalhou na rádio Ipanema FM, pela qual, de forma platônica, ele apaixonou-se perdidamente. Na letra, Julio conta que queria ser invisível para poder tocá-la  e “sussurrar palavras de amor”.

Tenha fé: a canção expressa um lado mais religioso de Julio. Participação de Humberto Gessinger, que, na música, toca gaita de boca e canta. Foi uma forma de retribuir o dueto que fez com Julio em “Guardas da fronteira”, faixa do do disco A Revolta dos Dândis, dos Engenheiros do Hawaii.   

Faltou tempo pra te Escrever: a letra é de um já falecido poeta de São Leopoldo, que sequer Julio lembra o nome. 

Bola 8

O dólar é rosa: a canção, que tem a participação da cantora Alexadra Scott, Julio fez após uma noite em que, jogando bilhar, uma garota esbarrou nele, atrapalhando, assim, a sua jogada. Uma das raras canções em que Julio, que só escreve sobre o que vive, ficciona um acontecimento. 

Impossível: escrita para sua ex-mulher, Melissa.

Ficou o filme: canção sobre uma velha máquina fotográfica, que, após a separação, ficara com Melissa, e cujos filmes, que nela ainda haviam, precisavam ser revelados, como Julio canta na letra. 

Enfeitiçado no amor: a canção fala sobre o “feitiço”, do qual Julio diz ter sido alvo, que o condenava a não mais ter um amor em sua vida. 

Um poema de Julio Reny escrito por ele, nos anos 80, recentemente descoberto:

Entre Razões do Coração

Não há nada de novo no front das ruas

mas eu sigo anotando em minhas canções –

ponto de encontro da vida das pessoas 

na longa noite destas cidades industriais.

Sempre haverá um garoto que volta solitário

pro quarto

escrevendo o futuro das paixões não vividas,

falando de templos,

falando de janelas que acendem e apagam

como faróis

Guiando os navios perdidos na escuridão,

falando de amores desperados

que desaparecem na memória das esquinas

é, garotos que brandem na sua guitarra,

Noite após noite,

noite após noite,

a eterna canção.


O bendito/maldito Julio Reny

Por Oly Jr.

Toda vez que ouço Julio Reny, suas músicas, suas histórias, suas reflexões, eu paro e penso: malditos são aqueles que não se prestam e não se permitam um aprofundamento nas obras de artistas ditos malditos. O Julio, tal qual Jards Macalé, Itamar Assunção, Sergio Sampaio e outros tantos, todos por vezes são lembrados como artistas malditos. Talvez por não terem atingido ou sido fisgados pela indústria belicamente fonográfica, e alçados a artistas estupidamente populares de abrangência minimamente nacional. A propósito, nacional leia-se centralizadoramente reconhecido por formadores de opinião, e massivamente bancados e estimulados por gravadoras do eixo Rio-SP. Pois bem. Pra mim são benditos. Julio Reny bendito seja sua obra musical. De um refinamento underground ímpar, de estética folk em início de carreira, passando por rock latino, country sul-brasileiro, baladeiro do asfalto, e sobrevivente de tempos idos onde heróis também empunhavam instrumentos musicais, assinavam canções, e nos abasteciam de trilhas sonoras pra nos manter flutuando em ondas sonoras em meio a essa vidinha marvada.

Conheci o Julio através da rádio Ipanema FM, e logo tentei descolar algum LP ou fita K7, na virada dos anos 80 pros 90 do século passado. Rock nacional e gaúcho bombando e eu recém aprendendo uns ponteados no violão. Vivia muito a efervescente cena musical porto-alegrense indo a shows nos parques, nos bares, nas casas de espetáculos, teatros e afins. Sempre fui fã dessa cena. Quando dava, comprava os discos dos artistas sulistas, pedia emprestado, comprava fitas K7s virgens pra fazer coletâneas gravando de LPs e muitas vezes do rádio, e escutar num walkman comprado ou cambiado com muito custo, e sentir o incrível prazer juvenil de perambular pela cidade a pé ou de ônibus, com um fone de ouvido alheio a tudo. Nunca consegui em droga alguma esse mesmo prazer, diga-se de passagem. 

E entre tantos títulos que se escrevia pra catalogar essas fitas coletâneas, baladas, músicas pra festa, músicas pra tirar na viola, músicas censuradas, em relação aos artistas atuantes da cena sulista eu dividia em dois grupos: Rock Gaúcho e MPG. Assim como tinham fitas de Rock Nacional e MPB. E o interessante é que quando eu ia gravar músicas do Julio, eu sempre ficava indeciso em que fita gravar. E depois de me inserir na música de modo profissionalmente amador, e sobretudo depois de 10 anos de estrada me ver como guitarrista da banda Os Irish Boys, que acompanha o Julio, me dei conta do porquê na juventude eu tinha dificuldade de catalogar as obras de Julio Reny, acabando por colocar suas canções tanto nas fitinhas de Rock Gaúcho, quanto nas da dita MPG. E poderia tranquilamente colocá-las numa coletânea de música pra se ouvir em qualquer situação (parafraseando alguns discos do Arthur de Faria), seja lá a vertente que for. É um estilo composicional muito peculiar que foge do senso comum pop e rock. Pra quem manja do riscado técnico musical, mas também pro leigo, cito sua desenvoltura em usar acordes com sétima maior, levadas e arranjos musicais que te fazem realmente pensar em suas músicas como experiências idiossincráticas, pontes e arranjos não convencionais, necessidades de expressão artística de fina estampa, melodias cantaroláveis, mas ao mesmo tempo de um refinamento além do óbvio.

Mas bueno, nos primeiros anos dos anos 2000 eu já estava inserido na cena musical sul-brasileira, gravando discos autorais, fazendo parte de bandas, tocando em todo qualquer lugar e ocasião que estive disposto a ter atrações musicais, e como é de praxe, em toda cena de qualquer cidade, até onde eu sei, os artistas com mais afinidades por vezes se fazem convites mútuos para participações em shows e gravações de discos. Convidei o Julio inúmeras vezes como participação especial de alguns shows meus. Nos encontrávamos em shows coletivos também, nos camarins da vida, e algumas vezes num boteco qualquer. Em 2008 o Julio entrou em estúdio para gravar o disco A primavera do gato amarelo e me convidou pra fazer backvocal em duas músicas: “Noite em São Sepé” e “Two-Tone”. Em 2009 eu entrei em temporada de produção e gravação do disco Milonga Blues. Já tinha 10 músicas autorais prontinhas pra serem gravadas. 

Nesse meio tempo, como estávamos nos pechando direto no circuito musical da cidade, certa feita o baixista da banda Os Irish Boys não poderia ir num programa cultural na extinta TVCOM, e me dispus a tocar baixo em três ou quatro músicas na ocasião, pois já sabia muitos dos clássicos de carreira do Julião como “Cine Marabá”, “Não chores Lola”, “Amor e morte” e algumas dos Cowboys Espirituais. O Julio então me emprestou seu lendário baixo que ele tocou na banda KM 0, e me fui quebrar esse galho pra rapaziada. Alguns meses depois o guitarrista d’Os Irish Boys saiu da banda e me convidaram pra assumir o posto. Numa dessas, num ensaio, o Julio me deu uma espécie de escrito meio crônica, meio poema, meio desabafo, de duas páginas de um caderno escolar arrancadas com gana de seu espiral, chamado “Adeus companheiro”. Acrescentei umas palavras, umas rimas, limei outras, e musiquei. Uma milonga-blues-western. Incluí no disco Milonga Blues.

 Em 2010 entramos em estúdio pra gravar disco Bola 8 de Julio Reny & Os Irish Boys. O Julio quis fazer a versão dele pra “Adeus companheiro” e incluir no disco. Rearranjei a música, diminuí umas estrofes, pois a original o Julio achou muito longa. Entonces ele gravou tão magistralmente, que hoje em dia eu a interpreto tal como no disco Bola 8.

De lá pra cá foram inúmeros shows de banda, duetos, papos existenciais, mundanos, profissionais, gravação do DVD Julio Reny & Os Irish Boys ao vivo na Marquise 51, casando com a biografia literária escrita pelo jornalista Cristiano Bastos, duas coletâneas abordando fases de sua carreira, parcerias musicais inéditas que estão por vir, e o incessante pensar em se manter vivo e ativo nessa profissão de fé musical e guerrilha artística. Eu que completarei 25 anos de estrada em 2023, tendo o blues como força motriz de todo meu trabalho, e sendo profundamente influenciado pelo folk daqui e de qualquer lugar, pelo rock e pela milonga. 

Guardadas as devidas proporções, ouso dizer que num paralelo estético, cultural e espiritual, Julio Reny é como se fosse um bluesman sem fazer blues, um cowboy espiritual, uma variante movediça entre Lupicínio Rodrigues e Nelson Gonçalves no quesito dor de cotovelo e boemia, com a cena beatnik se fundindo com as negras melodias ocidentais, miragens orientais, solidões pampianas, e um eco portuário que se esvai interminável e incessantemente numa estrada que, sabemos, correrá para sempre enquanto houver um mísero vivente disposto a apreciar uma arte musical old school, onde as pontes existenciais se cruzam com as ausências, rumo a qualquer lugar e a lugar nenhum, desde que haja um propósito. E o intento é simplesmente e basicamente se manter respirando, se alimentando, bebendo algo que nos distraia, e produzindo notas musicais com dignidade.

Esse período pandêmico e recluso resultou ao menos em algumas canções autorais que possivelmente irei gravar de alguma maneira, disponibilizá-las nas redes, e sobretudo interpretá-las ao vivo. Por enquanto ainda me sinto um cantautor que por vezes interpreta outros autores também, e que ainda exerce tal profissão de fé calcado no cada vez mais ingrato exercício de se apresentar em público, em meio a um status quo que atorou a condição apreciativa da arte musical enquanto fonograma e enquanto execução em tempo real, ao vivo e presencial. São coisas que eu ainda estou em fase reflexiva, de como agir daqui pra frente. 

Sigo compondo com prazer e como necessidade de expressão humana. Já nem tanto por condição profissional. Se tudo correr como planejei minimamente pra esse ano de 2022, me formo em Licenciatura em Música, e exercerei com mais afinco e estudo o que eu já vinha exercendo vez por outra de modo autodidata, notório saber e feeling, que é outro ingrato e desvalorizado exercício de passar algum conhecimento como professor, docente, orientador, ou seja lá como que for conveniente tachar. Ou seja, meu negócio profissional é quase pautado pelo conceito judaico-cristão de tentar triunfar na base da prática penosa. Hahaha… Brincadeiras e constatações à parte, fato é que a música possibilita vários desdobramentos e disso eu não abro mão. Tem que ter música na jogada. 

No mais, sigo compondo e me aprimorando instrumentalmente, socialmente e humanamente. Tentando pelo menos. Ah, inclusive tenho quase um álbum feitinho em parceria com Julio Reny, prestes a ser lapidado e posto na roda, embora esse conceito de álbum esteja defasado. O objetivo é materializar essas canções como forma de obra musical artística até o final do ano, quando muito início de 2023. Quem sabe? 


Cristiano Bastos é autor da biografia Julio Reny – Histórias de Amor & Morte

Oly Jr. tem 6 discos lançados, sendo que dois com Gaspo Harmônica e um com a banda Mendigos da Noite. Acompanha Júlio Reny há 15 anos e com ele gravou o álbum Bola 8, lançado em 2010.

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