Resenha

A poesia enraizada

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A poesia enraizada

Certa vez, em um de seus achados, o maior espírito poético aqui na província anotou sua hipótese, suspeita ou insuspeita: toda arte deriva da poesia. Para Mário Quintana, a poesia é o centro: o cinema, o romance, a pintura, a escultura são materializações da poesia. Quando leio alguns autores me vem logo esta percepção de Quintana: o brasileiro Juremir Machado da Silva é um destes autores. Juremir escreveu romances variados, ensaios múltiplos, deteve-se na sociologia, na política, em teorias do imaginário. Mas todos os seus textos, de Cai a noite sobre Palomas (1995: “No pampa, ensinam os antigos, a morte viaja a cavalo”) a Memória no esquecimento (2021: “O sono para ele é como uma morte bem-vinda que custa a acontecer.”), acontecem na poesia.

Agora, para comemorar seus sessenta anos (feitos em 29 de janeiro de 2022), Juremir reuniu num volume uma produção poética trabalhada ao longo de dez anos. O resultado é o livro Quase (toda) poesia (2022), com excertos diversos de seu temperamento estético, algo que já podíamos encontrar, sob outras formas, em sua ficção e em seus ensaios gerais. A poesia, digamos assim, já estava enraizada no escritor que Juremir tem sido desde sempre; digamos mais, com Quintana, todos os seus romances e ensaios derivam de sua poesia, ainda que a precedam na materialização e na publicação. 

Em tempos antigos Cassiano Ricardo disse de José Geraldo Vieira que sua ficção deveria ser estudada a partir de sua estruturação poética; claro, o que digo aqui é uma transliteração do que de fato escreveu Cassiano: “Quando se procurar saber até onde a poesia pode interessar à técnica do romance moderno, a obra de José Geraldo Vieira será estudada num dos seus mais fascinantes aspectos.” Quando me deparei, nos anos 90, com Cai a noite sobre Palomas, pensei nestas frases de Cassiano; pensando nelas, cuidei que cabia adaptá-las à obra de Juremir, segundo minha visão das coisas literárias um descendente estético de José Geraldo, ainda que Juremir possa nunca ter lido o romancista de A mulher que fugiu de Sodoma (1931). O que proponho agora, como leitor, é uma releitura crítica de tudo o que Juremir escreveu à luz dos procedimentos de construção poética de Quase (toda) poesia.

Podemos evocar, “afinal de contas”, “eu não entendo essa tática / Da poesia como matemática. / Um poeta que conta os versos que sejam alexandrinos / É como os verões londrinos, / Sonhos de homens perversos. / Por que essas sílabas somadas? / Oito, dez, doze, todas rimadas? / Por que uns quatorze versos? / Por que não quadros inversos? / Sonetos ou quem sabe cometas, / Que diferença faz essa ciência? / Desde que não te intrometas / No frio da minha consciência?”. A poesia, certo, não é matemática; mas também não é carne, é transcendência (mais que o romance, pois é raiz), mesmo quando suas palavras se aproximam do erotismo material: “Por teu corpo, por tuas raízes / Por teus seios, pelo que dizes, / Foi que eu desci estes vales, / Onde agora eu me contemplo.” O leitor, num texto de Juremir (qualquer texto, ainda o mais prosaico e seco) é transformado num cúmplice poético.

Mas, sabemos todos, nos “tempos sombrios”, o poeta é o mais perigoso dos artistas, porque (vá lá, Quintana) é a essência da arte, que é transformadora. Nestes tempos, o poeta é o primeiro a ser varrido para debaixo do tapete. “Primeiro me tiraram a voz, / Depois me cortaram os dedos, / Então fiquei a olhar mundo / Com meu olhar mais fundo / Por trás das lentes grossas. / Se minha voz já não fala, / Meu silêncio ainda cala / Na solidão do milharal.” Juremir é o poeta dos tempos sombrios. Mas esforça-se na luz: “Perfumar a rua que não tinha cores.”


Eron Duarte Fagundes é crítico literário e de cinema. Publicou Uma vida nos cinemas (Movimento, 1999).

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