Resenha

Devoção: o risco calculado

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Devoção: o risco calculado

Em A salvação do belo (Vozes, 2019), o coreano Byung-Chul Han explica o belo, na concepção kantiana, como algo inscrito no processo de conhecimento: “Perante o belo, as faculdades do conhecimento, ou seja, a imaginação e o entendimento, encontram-se em um ‘jogo’ livre, em uma interação lúdica harmônica.” 

Dessa forma, vulgarizando, o belo seria uma espécie de óleo na “engrenagem do conhecimento”. Trata-se de uma beleza muito menos lisa do que a experimentada hodiernamente, quando qualquer acidez-amargor-negatividade precisam ser afastados – e nos instagramamos. É algo mais denso do que o narcísico, do que o disposto, posto e deposto pelo capital.

Quando findei Devoção (Zouk, 2021), do Guto Leite, antes até, irremediavelmente, tornei a essa perspectiva – que não foi, decerto, original nem em Kant –, que conduz a uma possível identificação de propósito na obra. 

O texto reúne hermético e popular – palavras que, curiosamente, por si, materializam o que representam. É uma mixagem que o também letrista já arriscou na música “Toca a sanfoninha”, um risco calculado que, por vezes, o fez voltar para dar explicações nas redes sociais – o sentirá com o livro? 

Um certo pessimismo parece acompanhar as frases, esboçado na reiteração da morte, na imanência em contexto castrador e clitoridectômico – em grande parte percebido na grande Porto Alegre. O espírito atormentado é um dos mais ricos – entendamos o que quisermos dessa esparrela no destino dos artistas. 

Em “L’enfer”, canção recentemente lançada pelo cantor belga Stromae, há versos sobre seus pensamentos profundos, que o fazem cogitar suicídio: “Ces pensées qui me font vivre un enfer” (Esses pensamentos que me fazem viver um inferno). Provavelmente imaginário assemelhado – de dor – também foi um dos motores de Leite. A tormenta, assim como Stromae, a metamorfoseou em música e em narrativa. É um privilégio e não é.

Um constante ceticismo e as asas-ave estão em constante relação com as questões do (pouco) tempo, diminuto quando ruim. Nem Paulo, um pacato zelador, deixa de se assombrar. Ele “tomou um susto ao ver verinha, do seu mário, chegar com um guri nos braços, verinha que até outro dia chorava e corria […].” Talvez o fato de Leite ter chegado aos 40 esteja relacionado à constância desse tema na ficção. 

E o que dizer da ideia de um pássaro-eu possível? Enquanto vemos desfilar personagens marginalizados e de classe média baixa e ficamos sabendo das agruras decorrentes de um sistema “inescapável?” – demasiadamente humano –, o autor recorta as micronarrativas com interlocuções (consigo), espaços de fluxo de consciência em que parece tentar se desvencilhar ao afirmar (ou sonhar) que há “gente que é pássaro”. Seria esse um dos fins?

Infalivelmente, por mais que tenha se optado em fazer diversos jogos com frases que, talvez, somente sejam alcançadas, em sentido, por quem as redigiu, é um conjunto que leva para dentro de nós e para fora – onde estão os outros ou onde a gente é o outro. Arriscaria dizer que o livro deveria ser lido e duas vezes retomado. Uma pulando as micronarrativas, unindo as “viagens”. Outra somando as histórias. Uma forma erótica não se revela – ao menos não de primeira.

Essa impressão de necessidade de releitura me recordou de uma professora de Geografia. Diziam dela que era impossível aprender qualquer coisa em suas aulas, pulava de um assunto para outro imparavelmente. Eu via sua inteligência, tanta coisa a dizer. 

Misturava, sincretizava, emaranhava – muito distante, como Leite, de algo (apenas) linear e aguardado no mundo de fácil digestão do digital. Mas são dos nossos melhores professores. Nos fazem subir em balões, nos jogam de paraquedas e, no fundo, sempre estão ali – em terra, de braços abertos, na esperança de nos salvar se algo acontecer.

Talvez seja equívoco pedir dos objetivos. Afinal, se “não dá para saber o que planta a vontade de voar, de nadar, de ir, sair andando, como se nenhum trato tivesse sido feito, como se despido de sua roupa de gente”, quiçá seja pedir demais. Não é desespero de leitor em mergulhar para resgatar, do fundo do mar, alguma ostra guardando os porquês. Mas de, enfim, cogitar junto sobre as razões que nos impedem de “seguir sem freio quaisquer dos aromas que nos chegam ao faro, banharmo-nos se há calor, pararmos, na rua, quando vir um vento […]”. De examinar as hesitações humanas – e o que implicam.

Han finaliza seu livro contando que o belo, que, antes, comportava a fratura, a dor, a negatividade, hoje, adaptado ao mercado financeiro, mutou e resulta em objetos (culturais) para a “curtição volátil”. “Devoção”, com pouca margem para a dúvida, não levará curtidas ou dislikes imediatos. É um de seus ápices, uma incursão nas perguntas, na digressão, no belo dantes.


Jandiro Adriano Koch, ou Jan, nasceu e vive em Estrela, RS. Graduou-se em História pela UNIVATES e fez especialização em Gênero e Sexualidade. Com quatro livros lançados, dedica-se a estudar e mostrar vivências LGBTQI+, especialmente em sua região, o Vale do Taquari. Na Feira do Livro de 2019, lançou um novo livro, pela Libretos, Babá – Esse depravado negro que amou.

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