Resenha

Visceral

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Visceral

Todas as cidades do Vale do Taquari têm grande dificuldade para ir ao divã, para contar o seu passado – é algo da coletividade. As tentativas mais honestas partem de jovens estudantes e professores universitários, que depositam seus achados em lugares dos quais raramente são retirados. Desses municípios, Teutônia parece ser um no qual as pessoas incomodadas com debates sobre gênero – também uma carência de autotratamento – têm mais poder para barrar qualquer possibilidade de indagação aos padrões.

Há não muito tempo, reclamações de pais geraram um imbróglio certamente desnecessário para um professor. Mais ou menos na mesma época, em 2018, uma estudante da Univates, que levaria o assunto para uma roda de conversa com adultos, teve que cancelar a participação. No conjunto, viu-se uma réplica de um dos piores dias de “A Fazenda”, da Record, no interior gaúcho. Confusões envolveram ameaças de morte a docentes em uma rede social, pronunciamento da Prefeitura, o nome do governador Eduardo Leite, ainda não assumido, e todo o tipo de “expertise” dos tempos atuais.

No cenário dessa barafunda, eu não esperaria ver brotar algo – como – “Visceral” (Cartola Editora, 2021), publicação assinada pela teutoniense Karina Meyer Braun. Não por se tratar de um livro em que, em forma de versos livres, quase prosa, retoma o tema do amor – batidão clichê sempre dançado, inclusive nos salões mais puritanos. Não porque narre, de forma escancaradamente autoficcional, sobre desventuras nas relações, sobre solidão e solidão e solidão (“Eu cansei de apagar incêndios e queimar sozinha no fim.”). Não porque contenha inúmeras e interessantes ilustrações, talvez mais poéticas do que o próprio texto, também concepções da autora. Mas por marcar uma Teutônia aparentemente diferente. 

Numa espécie de reunião das melhores partes de um extenso diário, confessionário em que ela está à vontade, a escritora conclama a pensar sobre o bullying (que viveu), sobre o preconceito (que existiu e há), mas a centralidade é, repito, o amor. Mas é o amor entre mulheres – e bem marcado. Portanto desafiador para todo o Vale do Taquari – que, quando progressista, o é a reboque. 

Deixarei a análise da qualidade literária para leitores ou para quem tiver chão – não é meu terreno. Como historiador, enxergo esse tipo de texto como um marco. Talvez não divida tempos, não demarque um antes e um depois, mas é afirmativo e forte na simultaneidade de coisas vividas na região – carroças e carros do ano; paióis e arroubos para arranha-céus; cenários bucólicos e Netflix; moralistas de cuecas e questionadores do status quo. Sem contar que é um “ainda interior” dentro de um país em que o aparelhamento do Estado busca ressuscitar parte do passado decadente, afirmando-o como modelar para o futuro – o que torna tudo mais nebuloso. Por isso tudo, o título encaixa – embora possam ter existido outras motivações para escolhê-lo.

“Visceral”, na certa, aproveita um tanto de picada aberta pela escritora Edilaine Cagliari – que, antes, bem antes, já arriscou bastante com a mesma temática nos mesmos pagos -, outra pessoa nata no município. Parecem-me serem boas oportunidades para focar no que Teutônia tem de bom.

“Já inundei uma cidade inteira […] sem derramar uma única lágrima, e já travei discussões escandalosas sem dizer uma única palavra”, escreve Braun. Será a insustentável leveza da poesia que permite suas palavras andarem livremente? Como rechaçar um poema? O agridoce é a grande sacada? Tem quem diga que para tudo há um jeito, que depende da forma como se faz – vai que.


Jandiro Adriano Koch, ou Jan, nasceu e vive em Estrela, RS. Graduou-se em História pela UNIVATES e fez especialização em Gênero e Sexualidade. Dedica-se a estudar e mostrar vivências LGBTQI+, especialmente em sua região, o Vale do Taquari. Escreveu Babá – Esse depravado negro que amou e O crush de Álvares de Azevedo (ambos pela Libretos).

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