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Richard Serraria: A serraria

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Richard Serraria: A serraria No princípio foi a poesia e ela chegou até minha vida através de um carro biblioteca da UFRGS, uma Kombi que chegava no bairro Serraria e estacionava na frente do Grupo Escolar Custódio de Mello, numa vila ao lado do XII Regimento de Cavalaria Mecanizada do Exército Brasileiro, na extremidade sul de Porto Alegre. Permaneci residindo ali até 1981, quando já não morava mais na Vila dos Sargentos, popularmente chamada de Serraria.  A vila em questão é uma ponta que tem ao norte os bairros Espírito Santo e Guarujá, ao sul a Ponta Grossa sendo costeada pelo Guaíba e ainda pelo grupamento militar antes citado.  Convivi na minha infância nos primeiros anos da década de 70 na Serraria com o universo musical através dos toca-discos da “eletrola” que havia em casa, local em que se revezavam discos de samba de minha mãe (João Nogueira, Agepê, Clara Nunes, Originais do Samba) e os discos de meu pai (José Mendes, Teixeirinha, Gildo de Freitas, Pedro Ortaça).  Um carro-biblioteca numa ponta e uma eletrola no ponto. Olhouvido na beira do lago que na boca do povo é rio. Algum tempo depois, em 1997, fundo a Bataclã FC, bastante sedimentada no canto recitativo proporcionado pelo RAP (rhythm and poetry, na abreviatura do inglês) e com conceito claro de trazer a percussão negro-gaúcha (Alessandro Brinco da Cavalhada e Sandro Gravador do Morro Santa Tereza, mestres de bateria dos Imperadores do Samba, respectivamente repinique e sopapo) para a linha de frente dos arranjos junto ao power trio tradicional do rock acrescido de teclados mais DJ do universo hip hop, Duke Jay da Monte Cristo.   O uso dos nomes dos bairros foi um elemento que deliberadamente procurei incorporar à poética pessoal à época em minhas canções, a cor local, presente nas letras e ainda nos codinomes dos integrantes (Guilherme do Espírito Santo, João do Campo Novo, Luizão de Ipanema, Bódi do Belomé). “A sombra de Nossa Senhora dos Navegantes voando sob o céu do Guaíba.” A toponímia partindo da geografia para sugerir poesia, gírias locais, ditos populares, personagens da memória afetiva da cidade germinando em palavras tecendo canções. O próprio nome Bataclã era isso, uma homenagem ao negro corredor porto-alegrense, personagem da memória afetiva da cidade, um propagandista, praticante do método Cooper de condicionamento físico, e junto dele a instituição do Faz de Conta literário.  Pegar um ônibus rumo ao sul do meu passado e ir na direção de criar certa cartografia poética porto-alegrense, a necessidade de acreditar no Era uma vez… Nasci no quarto dos santos na Serraria pra quem não sabe bem ao sul da lama do arroio dilúvio a seis ou a sete de janeiro a certidão diz a sete mas minha família toda jura que foi a seis Embora tenha nascido no então beco dos amigos casa de meu avô Não morávamos onde batia o rio no fundo do pátio todo inverno Eles se conheciam o velho João mestre de obras sabia que dali daquela marca no pé de chorão o rio e o […]

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No princípio foi a poesia e ela chegou até minha vida através de um carro biblioteca da UFRGS, uma Kombi que chegava no bairro Serraria e estacionava na frente do Grupo Escolar Custódio de Mello, numa vila ao lado do XII Regimento de Cavalaria Mecanizada do Exército Brasileiro, na extremidade sul de Porto Alegre. Permaneci residindo ali até 1981, quando já não morava mais na Vila dos Sargentos, popularmente chamada de Serraria.  A vila em questão é uma ponta que tem ao norte os bairros Espírito Santo e Guarujá, ao sul a Ponta Grossa sendo costeada pelo Guaíba e ainda pelo grupamento militar antes citado.  Convivi na minha infância nos primeiros anos da década de 70 na Serraria com o universo musical através dos toca-discos da “eletrola” que havia em casa, local em que se revezavam discos de samba de minha mãe (João Nogueira, Agepê, Clara Nunes, Originais do Samba) e os discos de meu pai (José Mendes, Teixeirinha, Gildo de Freitas, Pedro Ortaça).  Um carro-biblioteca numa ponta e uma eletrola no ponto. Olhouvido na beira do lago que na boca do povo é rio. Algum tempo depois, em 1997, fundo a Bataclã FC, bastante sedimentada no canto recitativo proporcionado pelo RAP (rhythm and poetry, na abreviatura do inglês) e com conceito claro de trazer a percussão negro-gaúcha (Alessandro Brinco da Cavalhada e Sandro Gravador do Morro Santa Tereza, mestres de bateria dos Imperadores do Samba, respectivamente repinique e sopapo) para a linha de frente dos arranjos junto ao power trio tradicional do rock acrescido de teclados mais DJ do universo hip hop, Duke Jay da Monte Cristo.   O uso dos nomes dos bairros foi um elemento que deliberadamente procurei incorporar à poética pessoal à época em minhas canções, a cor local, presente nas letras e ainda nos codinomes dos integrantes (Guilherme do Espírito Santo, João do Campo Novo, Luizão de Ipanema, Bódi do Belomé). “A sombra de Nossa Senhora dos Navegantes voando sob o céu do Guaíba.” A toponímia partindo da geografia para sugerir poesia, gírias locais, ditos populares, personagens da memória afetiva da cidade germinando em palavras tecendo canções. O próprio nome Bataclã era isso, uma homenagem ao negro corredor porto-alegrense, personagem da memória afetiva da cidade, um propagandista, praticante do método Cooper de condicionamento físico, e junto dele a instituição do Faz de Conta literário.  Pegar um ônibus rumo ao sul do meu passado e ir na direção de criar certa cartografia poética porto-alegrense, a necessidade de acreditar no Era uma vez… Nasci no quarto dos santos na Serraria pra quem não sabe bem ao sul da lama do arroio dilúvio a seis ou a sete de janeiro a certidão diz a sete mas minha família toda jura que foi a seis Embora tenha nascido no então beco dos amigos casa de meu avô Não morávamos onde batia o rio no fundo do pátio todo inverno Eles se conheciam o velho João mestre de obras sabia que dali daquela marca no pé de chorão o rio e o […]

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