Gênio | Parêntese

Rodrigo Breunig: Machado e seus leitores que nunca existiram

Change Size Text
Rodrigo Breunig: Machado e seus leitores que nunca existiram Uns 15 anos atrás, John Gledson palestrou no Instituto de Letras da UFRGS. Gledson é um excelente brasilianista britânico e uma superautoridade mundial no inesgotável tema “Joaquim Maria Machado de Assis”. Bem, lá estava ele palestrando sobre o grande tema inesgotável. No meio da pequena plateia, levantei meu braço e perguntei: “O senhor não acha meio espantoso e bastante singular que a coisa que os personagens do Machado mais fazem na vida é ler livros? Não estará esse detalhe, quem sabe, querendo nos dizer alguma coisa?”. A intenção da pergunta era puxar a brasa para o tema da dissertação de mestrado que eu tinha começado a escrever: a espantosa e bastante singular recorrência das cenas de leitura nos contos do inesgotável Bruxo do Cosme Velho. Eu queria que John Gledson respondesse assim: “Rapaz do céu, você está fazendo um levantamento impressionante! Que sublime contribuição para os estudos machadianos! Você gostaria de dar palestras em todas as capitais da Europa?” Mas ele respondeu mais ou menos assim: “Ah, não é nada de mais, eles ficam lendo toda hora porque ler livros e folhetins era um passatempo principal daquele tempo. Nos dias atuais eles ficariam olhando televisão ou comentando novelas e filmes e seriados.” Quinze anos depois, num mundo pior, num país terrivelmente pior, tomado por monstros e quase perdido para sempre, num tempo em que parece tão mais absurdo e ao mesmo tempo tão mais vital falar de uns livros lidos mais de um século atrás por pessoas que nunca existiram, volto a pensar, por sugestão de quem orientou minha dissertação (o editor da Parêntese), sobre a multidão de personagens-leitores-de-livros do mundo inventado de Machado de Assis.   Não é fascinante considerar que o maior escritor brasileiro de todos os tempos, além de tudo que nos deixou, talvez tenha nos deixado também a maior e mais encantadora galeria de leitores imaginários da história da literatura universal? Escrevendo num país em que dava pra contar nos dedos as pessoas que sabiam ler e no qual ler livros era costume de uma fração dessas pouquíssimas pessoas? (O Rio de Janeiro, com suas trinta livrarias na década de 1870, não passava de uma bolha num território nacional com 84% de população analfabeta. No relato Viagem ao Brasil 1865-1866, a norte-americana Elizabeth Agassiz comentou que nada era mais impressionante do que a total “ausência de livros nas casas brasileiras”.)   Dos 690 personagens dos contos de Machado de Assis, 198 aparecem lendo livros ou dão a entender que são leitores de livros (nos nove romances vivem outros 44 leitores inventados). Os personagens-leitores-de-livros dão as caras em 63% dos mais de duzentos contos escritos por ele (ninguém sabe direito quantos são; estudei 207 histórias publicadas entre 1858 e 1907) – e em 100% dos romances, claro.  Quinze anos atrás, como vocês leram no primeiro parágrafo, falei ao John Gledson que “a coisa que os personagens do Machado mais fazem na vida é ler livros”. Hipérbole? Sim, mas nem tanto. Personagens viajam ou chegam de viagem em 35% dos […]

Quer ter acesso ao conteúdo exclusivo?

Assine o Premium

Você também pode experimentar nossas newsletters por 15 dias!

Experimente grátis as newsletters do Grupo Matinal!

Uns 15 anos atrás, John Gledson palestrou no Instituto de Letras da UFRGS. Gledson é um excelente brasilianista britânico e uma superautoridade mundial no inesgotável tema “Joaquim Maria Machado de Assis”. Bem, lá estava ele palestrando sobre o grande tema inesgotável. No meio da pequena plateia, levantei meu braço e perguntei: “O senhor não acha meio espantoso e bastante singular que a coisa que os personagens do Machado mais fazem na vida é ler livros? Não estará esse detalhe, quem sabe, querendo nos dizer alguma coisa?”. A intenção da pergunta era puxar a brasa para o tema da dissertação de mestrado que eu tinha começado a escrever: a espantosa e bastante singular recorrência das cenas de leitura nos contos do inesgotável Bruxo do Cosme Velho. Eu queria que John Gledson respondesse assim: “Rapaz do céu, você está fazendo um levantamento impressionante! Que sublime contribuição para os estudos machadianos! Você gostaria de dar palestras em todas as capitais da Europa?” Mas ele respondeu mais ou menos assim: “Ah, não é nada de mais, eles ficam lendo toda hora porque ler livros e folhetins era um passatempo principal daquele tempo. Nos dias atuais eles ficariam olhando televisão ou comentando novelas e filmes e seriados.” Quinze anos depois, num mundo pior, num país terrivelmente pior, tomado por monstros e quase perdido para sempre, num tempo em que parece tão mais absurdo e ao mesmo tempo tão mais vital falar de uns livros lidos mais de um século atrás por pessoas que nunca existiram, volto a pensar, por sugestão de quem orientou minha dissertação (o editor da Parêntese), sobre a multidão de personagens-leitores-de-livros do mundo inventado de Machado de Assis.   Não é fascinante considerar que o maior escritor brasileiro de todos os tempos, além de tudo que nos deixou, talvez tenha nos deixado também a maior e mais encantadora galeria de leitores imaginários da história da literatura universal? Escrevendo num país em que dava pra contar nos dedos as pessoas que sabiam ler e no qual ler livros era costume de uma fração dessas pouquíssimas pessoas? (O Rio de Janeiro, com suas trinta livrarias na década de 1870, não passava de uma bolha num território nacional com 84% de população analfabeta. No relato Viagem ao Brasil 1865-1866, a norte-americana Elizabeth Agassiz comentou que nada era mais impressionante do que a total “ausência de livros nas casas brasileiras”.)   Dos 690 personagens dos contos de Machado de Assis, 198 aparecem lendo livros ou dão a entender que são leitores de livros (nos nove romances vivem outros 44 leitores inventados). Os personagens-leitores-de-livros dão as caras em 63% dos mais de duzentos contos escritos por ele (ninguém sabe direito quantos são; estudei 207 histórias publicadas entre 1858 e 1907) – e em 100% dos romances, claro.  Quinze anos atrás, como vocês leram no primeiro parágrafo, falei ao John Gledson que “a coisa que os personagens do Machado mais fazem na vida é ler livros”. Hipérbole? Sim, mas nem tanto. Personagens viajam ou chegam de viagem em 35% dos […]

Quer ter acesso ao conteúdo exclusivo?

Assine o Premium

Você também pode experimentar nossas newsletters por 15 dias!

Experimente grátis as newsletters do Grupo Matinal!

ASSINE O PLANO ANUAL E GANHE UM EXEMPLAR DA PARÊNTESE TRI 1
ASSINE O PLANO ANUAL E GANHE UM EXEMPLAR DA PARÊNTESE TRI 1

Esqueceu sua senha?

ASSINE E GANHE UMA EDIÇÃO HISTÓRICA DA REVISTA PARÊNTESE.
ASSINE E GANHE UMA EDIÇÃO HISTÓRICA DA REVISTA PARÊNTESE.