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As cruéis

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As cruéis
Conto de Fernanda Garcia Lao traduzido por Sérgio Karam

Estes lírios do velho mundo enlouqueceram aqui. A senhora Arnaud trouxe-os de navio da França. Ela se achava tão especial que viajar com objetos finos lhe pareceu pouco, e encheu algumas malas com brotos adormecidos. Flores altivas de sangue azul, que respiraram bem no camarote do navio, onde a domestique as regava a cada entardecer. Assim falava a senhora: Ma domestique.

A fúria tomou conta das cruéis no momento mesmo em que recuperaram a consciência. Este mundo tão plebeu e úmido de Buenos Aires não deve ter-lhes parecido interessante. O casarão de Grasse, de onde provinham, não se parecia em nada a este edifício de esquina, com cheiro de porto, que a senhora havia mandado reconstruir. Eu tinha de recebê-las em lugar de meu primo, o arquiteto.

A cozinheira se demitiu assim que viu o bairro, que não era digno de suas panelas, disse. A governanta tinha ficado na França. Eram várias as tarefas da única doméstica. Devia cuidar da limpeza e do serviço da casa enquanto se ocupava em despertar as flores e plantá-las nos vasos das sacadas que dão para a rua. Por sorte, me deixaram manter dois quartos na parte térrea. Um homem sempre pode ser útil, disse a Arnaud. Eu concordei. Me encarrego da manutenção das áreas comuns. Posso ocupar o resto do tempo com meus assuntos, sem ter que pagar aluguel.

Os lírios cresceram rápido, enroscaram-se nas grades das janelas, ávidos por colonizar. A flora autóctone dos canteiros, umas cravinas extenuadas, pereceram em questão de dias. As cruéis se integraram às plantas fantasmais das grades que imitam seres híbridos, seres de raízes indóceis e com garras no lugar de dedos. O gesto atroz, esculpido em ferro, adaptou-se bem à violência das mediterrâneas. Enlaçaram-se a um ponto tal que era impossível distinguir o metal dos ramos vivos. Logo observei que, em minha presença, as mediterrâneas baixavam a cabeça. Bastava mostrar-lhes uma tesoura para que começassem a tremer. Sou criollo.

A doméstica viveu até a primavera, nem sequer soube seu nome, mas teve tempo de ver as plantas florescerem. Tinha comentado comigo, de maneira oblíqua, que sua glote se fechava desde que chegou aqui, mas atribuía isso à mudança de clima. A mulher morreu sem opor resistência, em seu quarto, desmaiada junto à janela. Eu tinha comprovado que a umidade a deixava sem forças, mas não imaginava que esse negócio das flores fosse tão eficaz. Ao fim e ao cabo, eram de seu país de origem.

Se toquei nela foi pensando que dormia, disse, de manhã, à senhora Arnaud. Já eram dez horas e o café da manhã ainda não tinha sido servido. Até hoje eu não tinha precisado tocar em nenhuma doméstica, menos ainda numa morta.

A senhora foi vê-la junto comigo, desconfiando daquela morte. Ao sacudi-la, um aroma doce contradisse o azulado daqueles lábios e suas dúvidas. A senhora apontou, na janela, para o caule ereto de um dos lírios, que parecia mais altivo do que de costume. Era um mistério tenso, como de cílios desgarrados. Gritou, a Arnaud, sem olhar de novo para a morta. Havia uma expressão obscena naquela boca. O desejo parecia tê-la surpreendido em meio à expiração. Como se a morte houvesse interrompido uma cópula. Ou como se a morte fosse isso, uma cópula desesperada por se interromper.

Tive que retirar o corpo gelado da mulher e levá-lo até o terraço, seguindo indicações histéricas. Não avisemos à funerária, é melhor não despertar suspeitas. Quem iria acreditar que foi vítima das flores, disse a Arnaud. Que não me tomem por delirante.

Nessa noite a doméstica ardeu numa pira improvisada, confundida com os churrascos dominicais das casas vizinhas.

Depois disso, a senhora se trancou na torre e começou a falar sozinha, em francês. Aos gritos. Cheguei a pensar que escondia um amante, mas logo entendi que culpava os seres das sacadas e os repreendia por causa da morta. Que ela a tinha respirado, dizia, que a fumaça havia entrado por sua boca e agora la domestique morava em seu pulmão.

Não abria as janelas nem a porta da torre a não ser para me pedir água a qualquer hora. Além disso, andava descalça, sem asseio. Parecia uma porca no cio. Em um mês perdeu vários quilos, desfazia-se em estertores. Eu podia observar, subindo numa escadinha, os restos intactos de comida que se acumulavam no chão em bandejas de prata. As moscas faziam uma festa.

Um dia aconteceu o inevitável, encontrei-a junto à varanda oitavada, abatida, perto do gradeado. Solitária e terminal, os olhos revirados. Não respirava. Uma baba densa escorria da comissura de seus lábios até a língua, e daí até o canteiro. Arrastei-a até sua cama com dossel. Quase monto nela, para fazer algo condizente com a tragédia.

Em breve, um bando de parentes sem dinheiro saqueou o apartamento. Nem sabia da existência deles. Os tapetes, os candelabros, os vestidos e as joias evaporaram. Ninguém se interessou pelas sacadas e sua estranha floração. Tampouco se animaram a tocar na cama, onde se fez o velório da finada. Sentia-se algo nauseabundo no ar, foi o que disseram. O bairro não lhes parecia decente, embora viessem dos subúrbios de Palermo.

Enterraram a Arnaud e, antes do fim do terceiro dia, me deixaram encarregado de arrumar a casa para colocá-la à venda. Foi então que lhes alertei sobre os rumores de feitiço que circulavam entre os vizinhos. Que a casa tinha fama de espectral e que a venda podia demorar. Que a doméstica aparecia, que as tesouras voavam, e que a voz da Arnaud se juntava aos apitos dos barcos.

Para que não acumulassem dívidas enquanto isso, sugeri que alugassem a casa. Me deram carta branca. Aceitei como inquilina certa pintora abastada que procurava um ateliê naquela região, e em seguida a instalei na torre do terceiro andar. Abandonei a área de serviço e pude dispor do resto da casa.

O verão sufocava as janelas e, por isso, ela manteve a torre fechada até o anoitecer do primeiro dia. Assim que o sol se pôs, abriu as persianas de par em par, apagou as luzes. Sua silhueta em trajes menores, andando pelo andar quase vazio, salvo pela cama da senhora e pelos cavaletes, era visível de qualquer ângulo. Não pude dormir pensando que seu corpo era uma espécie de armadilha, um chamado.

Pela manhã, colocou bastidores, desfez malas. Os lírios, assim como eu, não tiravam os olhos de cima dela. Tampouco os seres grotescos das grades. Nós a vigiávamos, cada um de seu lugar.

Clementina Castelar, de tanto em tanto, enfiava-se na banheira. À noite, custava a dormir, dava voltas na cama da senhora.

Parece que o dossel está se afogando, disse uma vez, em voz alta. Deve ser a brisa ácida do porto, os odores dos barcos, a sujeira. O capitonê parece um torso rosado, as franjas, uns dedos longos ou galhos cheios de espinhos.

Saiu da cama e desenhou a si mesma, a carvão, atraída pela tela como um bicho em frente a uma flor. Nas sacadas, os lírios suspiravam, organizando o estrago. Os que estavam junto às grades aumentavam de tamanho, tornavam-se mais duros do que o ferro no qual tinham sido forjados. Ou assim me pareceu.

Quando a pintora pegou no sono, as fragrâncias se concentraram. Estenderam seus domínios até a beirada da cama. Pensei em visitá-la, mas me contive. Quem sou eu para frustrar o destino que as cruéis determinam.

No entanto, no dia seguinte encontrei a Castelar na porta de entrada. Entramos no elevador e a achei animada, embora a rua estivesse ardendo. Me pediu a tesoura emprestada, e dei-a a ela. Imaginei-a cortando seus bastidores, mas, naquela noite, ao voltar de certo estabelecimento, encontrei na calçada os caules de alguns dos lírios mais belos. Tinham tingido o chão com sua baba. Um gato vadio passava a língua ali, pelos cantos.

Clementina desenhava de dia e podava de noite. Em cada tela não há nada além de carpelos amorfos imitando chicotes ou línguas, angiospermas fátuos, assim me disse ela, fazendo-se de entendida. Eu evitava olhar para seus quadros, mas me pareceu ver um púbis misturado aos motivos florais.

Decidi varrer o que caía na calçada. Aquelas corolas de textura peluda pareciam cabeças decepadas. Dava medo de tocar naqueles estigmas destroçados. O gato do primeiro dia estava intumescido.

Mas a verdadeira batalha era olfativa. As essências e o óleo competiam com o aroma das cruéis. Pareceu-me que os seres das grades estavam se tornando lânguidos, talvez por causa do calor. Os velhos do quarteirão caíam fulminados, como cães sem água.

A senhorita Castelar já não se vestia nem para abrir a porta. Recebia a todos usando uma anágua muito pálida. Não apenas a mim, mas a qualquer pessoa. Eu a observava a toda hora, para não abandoná-la a seu despudor. Causava-me ansiedade o fato de que resistisse.

Ontem, dois meses depois da morte da senhora Arnaud, descobri que as portas das minhas sacadas se agitam sozinhas. Não é o vento. Os lírios se eriçam à noite, logo irão dobrar de tamanho. Não em altura. Estão grossos e inflamados. Perderam cor e ganharam peso. Retêm a água ou o ódio, não sei. Deles jorra um coágulo viscoso. Os vizinhos evitam andar por nossa calçada.

Não eram nem oito horas quando a pintora me pediu para fechar as sacadas, vem aí uma tempestade. Segui suas instruções de má vontade, em seguida me fechei na sala de jantar, à espera de que caísse como as outras. Enfim a casa ficará para mim.

Passou-se talvez uma hora, escutei uma pancada forte. Imaginei que tivesse se jogado da sacada, me contive por um momento. Subi a escada, já fazendo planos.

Porém, ao entrar em seu estúdio, descubro que as janelas tinham sido abertas. Ela, com a tesoura numa mão e um par de cruéis na outra, a boca láctea, aberta, vem até onde me encontro, paralisado. Tranca a porta com um ferrolho. Me pede para morder um lírio que assoma de seu peito. O aroma doce me confunde. A torre fede. Temo perder a razão ou acabar em seu lugar na calçada. Destroçado e brilhante como uma flor amputada.

Tradução de Sérgio Karam

(obrigado a Ana Elisa Ribeiro e a Karina Lucena pela leitura prévia e pelas sugestões)

O CONTO POR SUA AUTORA

A torre do fantasma é um edifício de Buenos Aires situado em La Boca, ao qual se atribuem presenças e manifestações espectrais. Em várias matérias, nenhuma delas de confiança, relatam-se com indolência os acontecimentos ocorridos naquele lugar. De acordo com essas croniquetas, preguiçosas e pouco documentadas, uma pintora chamada Clementina teria enlouquecido ali, motivo pelo qual resolveu se jogar do alto de uma das sacadas. Os responsáveis por seu suicídio teriam sido certos seres nefastos, em forma de cogumelo, trazidos do Mediterrâneo pela mulher que mandou construir a casa. Essas criaturas mal-intencionadas cresceram nos canteiros das sacadas e abusaram de sua condição fantástica para penetrar nas empregadas da tal senhora, que desistiu de assistir a semelhantes cenas, retirando-se para o campo. Depois de sua fuga, colocou o edifício para alugar, sem avisar à inquilina, que acabou, como sabemos, na calçada. A morte de Clementina teria provocado esse diálogo entre mundos, à base de gritos e sussurros, mas sem a direção de Bergman.

Parti desse disparate, porque não há questão menor que não me atraia. Transformei os cogumelos, demasiadamente sórdidos, em flores cruéis. Tirei uma letra do sobrenome verdadeiro da senhora. Procurei outro para Clementina. Mudei os gradeados. E como os abusadores costumam ser sujeitos bem pouco imaginários, introduzi um na ação, se me é permitido usar esse verbo.


Fernanda García Lao nasceu em Mendoza, Argentina, em 1966. É dramaturga, romancista, contista e poeta, e tem mais de dez livros publicados desde 2004, entre eles os romances La piel dura (2011) e Nación vacuna (2017) e os livros de contos Cómo usar um cuchillo (2013) e El tormento más puro (2019). Para março deste ano está previsto o lançamento de Sulfuro, seu novo romance. O conto “As cruéis” (“Las crueles”, no original) foi publicado na seção Verano12 do jornal argentino Página/12, no dia 12 de janeiro passado, com um pequeno texto introdutório da autora, que reproduzimos aqui. Salvo engano, esta é a primeira tradução de um texto seu no Brasil. Já não era sem tempo.


Sérgio Karam é tradutor e doutor em Literatura pela UFRGS.

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