Tradução

As políticas da tradução do “Black English” em solo brasileiro

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As políticas da tradução do “Black English” em solo brasileiro

Somente nossos corações vão debater bravamente, de June Jordan

Da série: Tradutores pensam a tradução (org. Karina Lucena)

Quando penso em feminismo, costumo repetir uma frase retirada de livro que, com frequência, retorna aos meus pensamentos: “Mah tongue is in mah friend’s mouf”. Dita pela personagem Janie, no romance Their Eyes Were Watching God, de Zora Neale Hurston. Aqui, em solo brasileiro, ela foi traduzida por Marcos Santarrita como “Minha língua fala pela boca da minha amiga”.

A alta carga poética, erótica e empática dessa frase descreve, para mim, mais do que um diálogo, e enseja uma reflexão sobre duas práticas: a tradução e o feminismo.

Um dos pilares do feminismo é a empatia, a capacidade de nos despirmos de nossa realidade material, muitas vezes privilegiada, para reivindicar mudanças para outras mulheres. É por isso que, mesmo que eu tenha condições de comprar um absorvente, vou reivindicar que todas as mulheres tenham direito ao absorvente. Nessa ótica, a violência dirigida a qualquer mulher interessa a toda mulher, porque ela é sistêmica e simbólica para nós todas como coletividade.

Um aspecto específico que faz essa frase se tornar ainda mais intrigante e polissêmica é o quanto dela ecoa sobre o Black English, que aqui se poderia traduzir como Inglês Negro. Ele pode ser entendido como uma variação linguística ou, como a própria Jordan enfatizou em suas aulas e ensaios, uma nova língua, criada para desafiar o Inglês Padrão. É importante frisar que a língua falada pela gente negra norte-americana foi registrada e reelaborada com orgulho sobretudo no período de produção de Hurston, o de apogeu do Harlem Renaissance. Esse movimento das artes garantiu sua permanência porque a população negra criou uma arte orgulhosamente negra a partir de suas próprias influências e sem pedir permissão para a tradição branca. Jordan faz parte de uma geração posterior a esse movimento, ao lado de nomes como Alice Walker, Toni Morrison e Toni Cade Bambara, que incorporaram o Black English em sua literatura e reivindicaram seu estatuto artístico e cultural na universidade e na imprensa.

A criação de um movimento de arte negra pautado na experiência negra ajudou a garantir a preservação da língua falada pelas pessoas negras. Fosse como artifício de proteção ou como reafirmação de uma outra identidade, o Black English desde então foi incorporado pela cultura americana, incluindo a branca. Basta ver a MTV ou as canções nos comerciais no Super Bowl ou na NBA: o Black English está lá sem cortes. O que era motivo de humilhação (e o que mesmo assim Hurston se esforçou para documentar em suas pesquisas) hoje a indústria abraça como liberdade linguística legítima.

É com o Black English envolto em tensões que tive de me deparar na tradução de Somente Nossos Corações Vão Debater Bravamente, de June Jordan, lançado pela Figura de Linguagem em 2020. Além de uma poeta de excelência, Jordan também foi brilhante ensaísta. Em diversos textos e em sua prática de ensino de poesia, ela defendia que o Black English, com sua ortografia, morfologia e sintaxe específicas, em vez de ser criminalizado e exterminado, deveria ser compreendido em sua complexidade e legitimidade cultural. A poeta argumentava em prol da relevância da abordagem de Black English nas escolas, sobretudo pensando na educação, na autoestima e na formação da sensibilidade das crianças negras (uma pedagogia próxima da freiriana, como se pode ler, por exemplo, no ensaio “White english / Black English: The politics of translation”, publicado em Civil Wars, ainda sem tradução no Brasil).

Não podemos fazer qualquer comparativo com variantes brasileiras. Nem o conceito de pretuguês, um apontamento crítico feito pela antropóloga Lélia Gonzalez, tem qualquer relação com o Black English, porque não se constitui uma variação. A tradução, portanto, acelerou minha constatação de que a população negra brasileira não possui uma língua própria de ruptura. Nossa história é outra: o movimento social negro brasileiro é historicamente integracionista ― até mesmo por estratégia de sobrevivência ― e tem reivindicado sua contribuição para a ideia de nacionalidade brasileira, evitando potencializar a cisão dessa por meio da reivindicação de uma identidade outra. Da mesma forma, as pessoas brancas brasileiras, com exceção das parcelas mais radicais, operam na antropofagia e gostam de ser negras demais no coração, na roda de samba e na aferição de cotas. 

Por contradição ou por consequência, aqui no Brasil, quando nos movimentamos como identidade negra, somos, a todo momento, acusados de estarmos importando o modo de revide afro-americano. O orgulho de lá é visto como afronta por aqui. Por isso, o Black English de lá não tem parâmetro pelo amor que nós todos, brancos e negros, nutrimos pela norma culta padrão branca brasileira por aqui. Não acredito, portanto, que seja difícil perceber o nível de contradições e encruzilhadas que essa tradução jogou comigo.

Citando Noam Chomsky, Jordan reivindicava o estatuto linguístico do Black English e enfatizava a multiplicação de variações do Inglês dos gentlemen em todo o globo, e até mesmo nos EUA. Jordan percebia que a língua inglesa, o White English criado e dominado pelos brancos, não ofereceria uma morada para a arte feita pelos negros e tampouco sua expressão seria genuína.

Por tudo isso, logo entendi que era minha obrigação e também meu maior desafio – àquela altura, inconsciente – era traduzir para o português brasileiro uma tradição criada para um povo negro que escolheu estratégias muito díspares das nossas. Os resultados dessas escolhas também chamavam minha atenção para seus efeitos práticos: June Jordan ensinava literatura na universidade, desde os anos 1970, enquanto aqui são raros os espaços de prestígio que pessoas negras ocupam, os do ensino acadêmico e o da tradução entre eles.

Àquela altura, tinha a preocupação de tornar a poesia de Jordan próxima das virtuais leitoras, mas sem que isso significasse abdicar da evidência de que a autora norte-americana foi leitora da tradição americana, devota de Walt Whitman. Também queria preservar a excelência técnica inquestionável de Jordan e sua preocupação com a forma.

O primeiro poema da seleção feita por Christoph Keller foi o que mais me exigiu tempo e recuos. Foi o último que dei como concluído, ainda que insatisfeita. Se você viu uma senhora negra é como um quadro, um frame, que ainda me surge pixelado. Aliás, se perguntassem a Jordan o que ela achava de literatura engajada em algum debate, pergunta recorrente em eventos aqui no Brasil, eu não me surpreenderia se ela risse. A vida de Jordan é uma plataforma política, tal qual seu poema mais famoso, “Poema sobre os meus direitos”. Ela atuou em defesa dos direitos humanos até seu falecimento em 2002, quando um câncer fez com que confirmássemos que, sim, algumas pessoas, mesmo vivendo muito, morrem cedo demais.

Para a tradução, levei em consideração o ativismo de Jordan e sistematizei minhas escolhas segundo os critérios de: 1. manutenção da sintaxe original; 2. manutenção do significado original; 3. manutenção da rima. Depois, assegurei que a tradução fizesse jus à biografia de Jordan como ativista em prol das populações negras, do então chamado Terceiro Mundo e LGBTQIA+. Essa política gerou um problema de tradução ligado ao gênero das palavras.

É sabido que, diferentemente do inglês, de onde transbordam substantivos e adjetivos neutros, no português, quando não há pronomes possessivos para indicar o gênero, a tradução explicita escolhas. Enquanto nas escolas educadores e educadoras que enfrentam esse tema são muitas vezes ridicularizados, na tradução temos a liberdade de escolher. Mas isso logo significa “a insustentável leveza de traduzir”.

Mentalmente, busquei fugir do binarismo entre feminismo e masculino. Lembrei de trabalhos inspiradores como o de Jess Oliveira, em Memórias da plantação, de Grada Kilomba, que propõe uma série de decisões de tradução corajosas. No entanto, além de o diálogo com a autora ou sua anuência serem impossíveis em Somente…, entendia que a fluência de leitura de poesia era radicalmente diferente da teoria. Nesse sentido, as soluções de outros livros também não eram possíveis, porque a gramática de Jordan era especificamente dela, e não havia outra tradução da autora em nossa língua.

Quando a linguagem neutra não foi possível, apelei para a ideia de pessoa, como em Poema Número Dois sobre o Teorema de Bell ou A Nova Fisicalidade do Amor à Longa Distância.

Poema Número Dois sobre o Teorema de Bell ou

A Nova Fisicalidade do Amor à Longa Distância

Não há chance de nós irmos uma para cada lado

.

Não há chance

Não há lados.

Aqui, a versão original:

Poem Number Two on Bell ’s Theorem,

or The New Physicality of Long Distance Love

There is no chance that we will fall apart

.

There is no chance

There are no parts.

Na tradução trato de “duas” não apenas pensando na bissexualidade de Jordan, mas também em outras formas de sexualidade e na virtualidade de que “duas” também pode se referir a simplesmente duas pessoas. Lembrando o guia de prioridades da tradução, busquei manter a forma e a rima, transformando os pares “apart/parts” em “para cada lado/ lados”.

A mesma decisão me conduziu em O que eu faria Branca?, que, por conta da sintaxe elíptica, foi o mais desafiador do livro ― é também o meu preferido na obra. As imagens que a autora vai criando adensam uma reflexão corriqueira sobre pessoas brancas e ricas, mas os recortes de contextos específicos a que alude ela precisavam ser tão usuais quanto provocadores. Declinei do explícito e recorri ao implícito, como faz a autora nesses versos. “Eu não faria nada./ Isso seria o suficiente.”

Em respeito às referências históricas trazidas por Jordan, que adicionam dificuldades para a recuperação dos contextos, certos personagens não tiveram seus nomes traduzidos, como Crazy Horse em O bombardeio de Bagdá. Essa decisão foi tomada porque me alinho com aquelas e aqueles tradutores que não alteram nomes de pessoas nas obras, sobretudo quando há referência a fatos com documentação histórica.

(…)

E esse é para Crazy Horse cantando enquanto ele morre

E aqui esta minha canção para os vivos

que devem cantar contra a morte

cantar para se juntar aos vivos

com a morte

Crazy Horse foi um proeminente membro da população nativa de Sioux, no século 19, no que se chama hoje Dakota do Sul. O guerreiro é lembrado por sua bravura e firmeza na defesa das terras dos Sioux em Black Hill, atacadas pelo interesse branco na exploração local de ouro. A imagem de Crazy Horse foi esculpida na área do Monte Rushmore, próxima daquela em que estão os presidentes, uma região sagrada para os dakota. A escultura foi financiada pelo filho de Crazy Horse, que queria a produção da imagem do herói nativo como resposta à histórica ocupação branca na região. No poema de Jordan, além de Crazy Horse, o seu famoso oponente do exército americano Custer é lembrado.

Eu ouço Crazy Horse cantando enquanto ele morre

Eu me dedico a aprender aquela canção

Eu ouço aquela música no lamento do mundo árabe

As referências contextuais são uma marca da produção de Jordan, que articula a cultura popular e os acontecimentos políticos, que se multiplicam ao longo da obra. Devo Me Tornar uma Ameaça aos Meus Inimigos é um poema dedicado ao poeta Agostinho Neto, que a poeta descreve: “Presidente da República do Povo de Angola: 1976”.

(…)

E se eu

se eu então deixar o amor ir

porque o ódio e os sussurros

se tornam um fantasma que dita eu obedeço

em vez do impulso e das realidades

(o florescimento de flamingos de minhas

árvores mimosas selvagens)

então deixo o amor me congelar

por fora.

Eu devo me tornar

Eu devo me tornar uma ameaça aos meus inimigos.

Uma questão de forma impôs uma escolha difícil em Invocando Todas As Minorias Silenciadas. Decidi suprimir, do verso original “WHEREVER YOU ARE” o “você” para manter a forma de árvore do poema. Experimente olhar a página no modo paisagem e será possível observar que na horizontal o poema acompanha o desenho de uma árvore, tal qual o espaço em que o eu-lírico sugere um encontro.

Invocando Todas As Minorias Silenciadas

.

EI

.

VENHA

SAIA DAÍ

.

ONDE QUER QUE ESTEJA

.

PRECISAMOS TER ESSE ENCONTRO

AQUI NESSA ÁRVORE

.

NEM MESMO FOI

PLANTADA

AINDA

Enquanto no original:

Calling on All Silent Minorities

.

HEY

.

C’MON

COME OUT

.

WHEREVER YOU ARE

.

WE NEED TO HAVE THIS MEETING

AT THIS TREE

.

AIN’ EVEN BEEN

PLANTED

YET

Talvez as escolhas mais questionáveis tenham sido as que fiz no poema Tá tudo bem, mas. O original Alla Tha’s All Right, but é um poema bastante popular, que foi interpretado pelo grupo vocal Sweet Honey in the Rock. Jordan escreveu, em artigo sobre a pioneira Phillis Wheatley, que uma poeta é alguém que está em casa. “Uma poeta é africana na África, ou irlandesa na Irlanda, ou francesa na margem esquerda de Paris, ou branca em Wisconsin. Uma poeta escreve em sua própria língua. Uma poeta escreve sobre seu próprio povo, sua própria história, sua própria visão, seu próprio quarto, sua própria casa onde ela senta na sua mesa placidamente colocando uma palavra depois da outra até que ela constrói uma linha e um movimento e uma imagem e um significado que salta acima disso tudo no canto, a absolutamente individual voz do poeta: na liberdade. Uma poeta é alguém livre. Uma poeta é alguém em casa.”

Como tradutora, tentei tornar o Brasil uma casa para June Jordan. Sinto-me como a amiga de Janie, com sua língua em minha boca. 


Fernanda Bastos – Jornalista, tradutora e CEO da Figura de Linguagem.

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