Tradução

Do travesseiro de um tradutor

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Do travesseiro de um tradutor

Da série: Tradutores pensam a tradução (org. Karina Lucena)

Eu sou professor de língua e literatura japonesas, e antes disso estudei muitas outras coisas: Direito, Relações Internacionais, tenho curso técnico em eletrônica e por aí vai. A tradução é a coisa que eu sempre fiz quando não estava fazendo as coisas que eu tinha que fazer. É algo que tem um importante lugar na minha identidade, em quem eu entendo ser. Já traduzi muita música pop japonesa, já tive um blog de tradução de poesia e estou sempre traduzindo coisas “só porque eu quero”. 

Quando jovem, eu tinha uma visão muito luminosa, muito benevolente, da tradução. “Traduzir é conectar mundos”, essas coisas. Sempre admirei o ideal da personagem Mafalda, do Quino, que queria ser intérprete da ONU e promover a paz mundial. Mas esse modelo isonômico do ato tradutório já foi há muito desbancado. Existem diversas assimetrias, sempre, quando se está traduzindo: de poder entre aquele que fala e aquele que ouve, entre a tradutora e seu patrão, entre o refugiado e a polícia, entre Dante e o aluno de italiano — isso sem falar na assimetria entre línguas, entre diferentes habilidades de comunicação… A própria ONU com que a Mafalda sonhava pode tanto ser descrita como a materialização de um ideal de universalismo quanto como um pesadelo colonialista com cinco línguas de trabalho (línguas de poder, claro).

Quando penso na Mafalda traduzindo, também sempre penso no personagem do Mr. Lawrence (Tom Conti), o oficial tradutor e intérprete do filme Furyo, em nome da honra, de Ôshima Nagisa (Merry Christmas, Mr. Lawrence, 1983). Traduzir é servir a dois mestres. É ser ao mesmo tempo o centro do ato comunicativo e alguém que é tratado como um instrumento pelos que estão tentando se comunicar. É o paradoxo de que fala David Bellos: ninguém confia no tradutor, porque pelo menos metade do tempo ele está falando uma língua que a gente não entende — ele pode estar negociando o nosso fuzilamento, a gente não tem como saber. Não sei dizer quantas vezes algum brasileiro me viu escrevendo em japonês e comentou: “Tu tá falando mal da gente aí” — ou coisa pior. Quando eu vivia no Japão, os japoneses faziam exatamente a mesma coisa quando me viam escrevendo em português. Como a trágica figura da Malinche, a mulher de etnia nahua que serviu como intérprete de Cortés, a tradutora é frequentemente vista como a personificação de dois medos muito humanos: o medo daquilo que não se entende e o medo de ser traído.

A tradutora é uma figura que está sempre, e por definição, em crise, porque ela não pode nunca ser lida ou interpretada por inteiro. Eu acredito que o tradutor revela a crise como algo permanente, a comunicação humana como algo falho e imperfeito. É uma personagem de bastidores que precisa estar sempre lidando com a repulsa subterrânea que diferentes comunidades sentem umas pelas outras. Talvez a “missão” da tradução seja, portanto, uma “missão maldita”: revelar que existe o caos, e não escondê-lo.

Ao lado de Tânatos, há sempre Eros. Eu acho que a tradução é um ato erótico em muitos sentidos (trocadilho intencional). Em primeiro lugar, porque a escrita é uma materialidade, o livro é um objeto tátil, e escrever é acariciar uma superfície, deixar nela marcas, indícios. Os computadores inauguraram uma era neoplatônica em que muitas pessoas se permitem imaginar que um livro é um arquivo de texto, uma existência imaterial, uma tripa de zeros e uns morando nas nuvens. Isso tudo é ignorar o fetichismo associado ao objeto livro — o objeto de desejo livro —, fato facilmente verificável em qualquer conversa de ratos de biblioteca. As pessoas que gostam de livros gostam de possuir livros. Têm ciúmes de seus livros. Vão para a cama com os seus livros.

Nessa relação erótica da leitora com o livro, o tradutor é o pivô de um affair complicado, obstáculo entre dois extremos que precisam dele para a consumação do encontro — como no filme O livro de cabeceira, de Peter Greenaway (The Pillow Book, de 1996), que conta a história de um triângulo amoroso entre uma autora (Vivian Wu), seu tradutor (Ewan McGregor) e o editor de seus livros (Oida Yoshi). O personagem de Ewan McGregor — que se chama Jerome como o nosso santo padroeiro — representa a fluidez identitária, a liberdade do corpo, a recusa do monogâmico. Não é à toa que a figura do tradutor é associada, no imaginário popular, à do traidor e à da alcoviteira, à infidelidade e à “indecência”: ela gera em muitos o desconforto que causam as relações não binárias e as situações ambíguas. A tradutora é “invisível”, podendo se imiscuir indetectada nos mais íntimos momentos de leitura, escondendo suas impurezas e enganos no tecido mesmo da relação texto-leitor. A tradutora raramente se encaixa em conceitos simplistas de transparência, permanência e impessoalidade, podendo encarnar a sensualidade dos epicenos, daqueles que pertencem a dois ou mais mundos, daquilo que é efêmero e em permanente transformação.

Em seguida, toda a literatura, mas a tradução em particular, é a modulação de uma voz. É o trabalho de ouvir um som internamente e de produzir variações para esse som externamente. O trabalho de escuta e de fala — em que pese a descorporificação por que passou a cultura do áudio frente à reprodutibilidade técnica nos últimos cem anos — é um trabalho do corpo. A voz-literatura é uma vibração do corpo que atinge sensorialmente outros corpos — pergunte aos cantores, às atrizes. O ato de traduzir, além disso, é único porque visa juntar uma nova voz a uma voz que já existe, formando com ela um contraponto, um diálogo, uma harmonia ou um contraste, como que em um jogo amoroso, um dueto de ópera ou um ritual de acasalamento linguístico. Quando verdadeiro e intenso, o ato tradutório é um mergulho nas vozes do texto, na sensualidade das línguas, na beleza dos corpos que conversam.

Por último, existe uma vertigem, comum na profissão de tradutor, que eu chamo de “possessão tradutória”. Ela ocorre quando a tradutora se imbui de tal maneira do texto que passa a imaginar ser ela a autora. Há muitos tradutores brilhantes que são acometidos desse quase transe alucinatório quando escrevem, e quando esse processo funciona bem ele pode trazer benefícios ao texto de chegada. Por outro lado, e o risco é grande, essa ilusão (narcisista, possessiva, megalomaníaca) de que um texto escrito por outra pessoa pode se tornar nosso acarreta um potencial apagamento da voz autoral. A “possessão” é de mão dupla: a impressão de que a voz da autora nos possui nada mais é do que a ilusão de que se possui a voz da autora. Como no amor, a boa tradução deve resistir à tentação da posse e buscar no respeito à individualidade do outro a realização do encontro. (Spoiler: isso é um ideal mais fácil de se declarar do que de se cumprir.)

Para além do plano do indivíduo e de suas pulsões, a tradução é também uma tentativa de lidar com a questão do tempo no contexto da cultura. Nesse sentido, a metáfora que me ocorre utilizar é a da Capela Sistina, que, por séculos, foi conhecida pela humanidade através de uma espessa camada de fuligem, acumulada ao longo de décadas e décadas de iluminação por velas. Nos anos 1980, com o patrocínio de uma rede de televisão japonesa, as pinturas passaram por um processo de restauração que eliminou quase que por completo todas as camadas extras (cola, cinza, verniz, cera) que revestiam o estuque. Essa capa de sujeira, no entanto, conferia às pinturas uma dignidade sombria e distante que era paradoxalmente adequada ao tema dos afrescos. Mais que isso: como à época de Michelangelo não havia fotografia digital, as pessoas acreditaram, ao longo dos séculos, que a “verdadeira” Capela Sistina era escura e lúgubre. Há também um problema de intenção do artista: a restauração removeu inúmeras sombras, detalhes e contornos que foram adicionados aos afrescos em um momento posterior ao da primeira pintura. Essas adições podem ou não ser de Michelangelo; seja como for, agora estão perdidas. Quando se revelou aos visitantes a capela restaurada, houve uma enxurrada de críticas às cores vivas e luminosas que o processo trouxe de volta à superfície. Goethe e William Blake escreveram sobre pinturas que não existem mais. Há sempre a tentação de se traduzir um texto coberto pela pátina do tempo tal como ele se apresenta à imaginação dos contemporâneos — vetusto, venerável, digno, pomposo. Textos antigos, em geral, possuem uma história de leitores e admiradores célebres ao longo dos séculos, e cada um desses leitores acrescentou sua fuligem ao efeito final da pintura. A tentação da reverência convive com a vaidade de se achar que é possível ir buscar em algum lugar, por baixo das muitas camadas de verniz velho e intertextos, um sentido “original” ao livro, o seu por assim dizer “rosto de juventude”, vívido e luminoso. (Spoiler: isso não é possível.)

Seguido me pedem dicas de como se inserir no “mercado” da tradução literária. Em outras épocas, daria conselhos diversos. Hoje, para começar, eu não acho que eu seja exemplo para ninguém. Há pessoas que desabrocham em carreiras estruturadas, como a Medicina ou o ensino. Outras só florescem em ambientes anárquicos. Uma mesma tradutora pode produzir muito bem em equipe e não tão bem sozinha, ou vice-versa. Muitas das escolhas que eu fiz e que deram certo não seriam muito úteis para outras pessoas — pareceriam digressões ou atrasos para a maioria. Da mesma forma, muitas das escolhas aparentemente “corretas” que eu fiz, visando uma trajetória apolínea, em linha reta, ascendente, são justamente as que me atrapalharam na carreira de tradutor. 

Os tempos mudam, também, e o que era uma boa opção dez anos atrás hoje pode ser um erro. A carreira se profissionalizou, e com a profissionalização se criaram diversas concepções do que venha a ser uma “tradução correta, de mercado” que, se por um lado asseguram a qualidade média dos produtos, por outro impedem o surgimento de “tradutoras excêntricas”, gênias fora do molde, novas formas de traduzir. 

Mas eu acho que um conselho eu posso dar — que serve para todo o mundo, e que eu me arrependo de não ter seguido desde jovem. Na verdade, não é um conselho meu, é uma parábola do Kafka, intitulada “Diante da lei”. Um homem quer se dirigir ao tribunal para reivindicar sua causa, mas à frente do prédio há um porteiro que não o deixa entrar. O porteiro até que dá umas dicas legais para o cara, diz que ele pode tentar entrar e tal, mas que a função dele, porteiro, é impedir. O cara decide não criar caso, resolve ficar ali, esperando obedientemente que um dia o deixem entrar. Acontecem diversas outras coisas na história, mas o importante é o seguinte: o homem podia forçar a entrada, mas preferiu esperar pela permissão. Os anos se passam sem que ele consiga levar adiante sua causa. Ao final da vida, ainda sem acesso à justiça, o homem ouve do porteiro que aquela porta era só para ele e que, depois de sua morte, ela será fechada. O homem morre, sem nunca ter entrado no prédio. 

Muitos dos textos que eu não traduzi são os textos para os quais eu achei que precisava esperar pela permissão. (Spoiler: a permissão nunca vem.) 


Andrei Cunha. Vice-presidente da Associação Brasileira de Literatura Comparada (ABRALIC), gestão 2020–2021. Tradutor literário de japonês, com traduções publicadas de Tanizaki Jun’ichirô, Ogawa Yôko, Nagai Kafû, Inoue Yasushi e Masaoka Shiki. Professor de Língua e Literatura Japonesa da UFRGS. Doutor em Literatura Comparada pela UFRGS. Fez Mestrado em Relações Internacionais pela Universidade de Hitotsubashi (Tóquio, Japão) e graduação em Direito japonês pela mesma universidade. Prêmio da Associação Gaúcha de Escritores (AGES) e prêmio Açorianos de Literatura por Cem poemas de cem poetas: a mais querida antologia poética do Japão (categoria especial, 2020).

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