Tradução

Encontros e traduções

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Encontros e traduções

Da série: Tradutores pensam a tradução (org. Karina Lucena)

Encontrei a escritora russa Tatiana Nikitichna Tolstaia pela primeira vez na internet, no programa de televisão Escola da Maledicência, que ela conduziu de 2002 a 2014 em parceria com Avdotia Andreievna Smirnova. Juntas faziam entrevistas instigantes com personalidades russas de diversas áreas.

Reencontrei Tolstaia na tradução de Graziela Schneider, na Nova antologia do conto russo. “Noite” retrata a vida de Aleksei Petróvitch por meio de um conjunto de oposições entre o mundo particular dessa “criança tardia, um pequeno grumo, um equívoco da natureza, debulho, resto de sabonete, joio, casca predestinada à incineração” e o mundo dos outros, incluída aí Mamãe, “altissonante, grande, espaçosa”. 

Certa vez, por acaso, fui surpreendida por Tolstaia na prateleira da Biblioteca de Ciências Sociais e Humanidades da UFRGS. Era uma tradução de Tatiana Belinky – “No degrau de ouro”. Na orelha, Belinky ressalta que os contos “envolvem o leitor desde as primeiras linhas do seu texto personalíssimo, denso, mas ao mesmo tempo leve e poético, às vezes perpassado de um humor agridoce, muito especial”.

Foram encontros felizes esses. Então, de vez em quando, tomo a iniciativa de rever Tolstaia. Em um desses momentos, assisti ao vídeo de uma palestra dela na livraria Moskva, sobre Anton Pavlovitch Tchekhov. Logo no início, ao falar da sociedade russa do século XIX, Tolstaia recomenda a leitura dos dois volumes de memórias de Elizavieta Nikolaievna Vodovozova, obra fundamental para quem quer entender a época dos clássicos russos. 

Daí veio a vontade de encontrar também essa outra mulher. 

Fui direto ao livro recomendado, sem passar pelas habituais informações biográficas. 

Daí veio a vontade de traduzir as páginas da vida da pedagoga e escritora Vodovozova. 

O início dessa tarefa é o que apresento a seguir.


Prefácio

A primeira parte das “Memórias” é dedicada aos anos da minha infância, passada numa longínqua cidadezinha de província, entre membros da família; por isso falo apenas deles nesse período da vida. Entretanto, com a mudança para um povoado maior, passo a me relacionar proximamente com os vizinhos e isso me dá a possibilidade de descrever a vida do interior, daquele cantinho de fim de mundo onde vivi pouco antes da abolição da servidão.

Os usos e costumes, a educação das crianças, a relação entre elas e os pais – em resumo, toda a vida dos fidalgos russos da época – se organizava com base no estatuto da servidão. Apenas alguns poucos, graças a condições excepcionalmente favoráveis, conseguiam se manter acima do meio circundante, se não em todos os aspectos, pelo menos em muitos deles. No desenvolvimento intelectual de meu pai, por exemplo, desempenharam papel fundamental as campanhas no exterior dos anos de 1813 a 1815, das quais ele participou; elas influenciaram igualmente, como se sabe, toda uma geração de jovens militares e deram forte impulso à disseminação de ideias liberais entre eles. Também tiveram grande significado na vida de meu pai tanto a sua permanência na Polônia do Congresso, durante o período constitucional, quanto a literatura e a cultura polonesas. Mas pessoas assim, como meu pai, de amplas aspirações intelectuais, humanista na relação com a família e com os próprios servos, eram rara exceção. Para falar a verdade, entre os proprietários de terra daquela época, encontrei não somente pessoas crueis, ocupadas apenas em explorar seus escravos da maneira mais vantajosa possível, mas também proprietários de natureza boa, até mesmo magnânimos na maioria das situações, mas moralmente degradados, ou então aqueles que se dedicavam a alguma distração inocente, como a paixão por pombos ou a confecção de caixões, enquanto deixavam todo o trato com seus servos ao capricho de seus administradores e estarostes. Finalmente, havia em nosso recanto selvagem, proprietários que tinham sofrido algum sério revés na vida pessoal e se mostravam descarados e lascivos ou misóginos. 

Graças às condições históricas específicas da minha pátria, nela havia uma quantidade significativa de fidalgos da pequena nobreza, e pude observar de perto a sua miséria moral e intelectual. Uma vez que até agora são poucas as informações sobre eles na literatura de memórias russas, decidi apresentar também alguns conhecidos meus integrantes desse círculo. 

É do conhecimento de todos, obviamente, o efeito desastroso que o estatuto da servidão produziu sobre os servos do campo e, principalmente, sobre os domésticos: mesmo onde eram tratados de modo relativamente humano, esse efeito costumava afetar, de forma muita adversa, o destino de todos eles e, com mais frequência, daqueles que se distinguiam por algum talento excepcional. Eis por que julguei ser útil mostrar a situação de criados domésticos como Vaska, o músico. 

O direito cruel de dispor do destino do próximo de modo arbitrário tinha influência perniciosa não apenas sobre aqueles que possuíam servos ou pertenciam a essa classe, mas também sobre as pessoas livres que se encontravam nesse ambiente de servidão, fazendo com que sentimentos de servo penetrassem até mesmo em pessoas dotadas naturalmente de qualidades morais elevadas. Serve de exemplo dos dois casos toda a primeira parte do meu trabalho.

De um vilarejo perdido no fim do mundo, fui parar em um instituto que, naquela época, era um internato fechado, separado de toda a humanidade por muros altos, onde, isoladas de todo ser vivo, seguidas gerações de mulheres foram educadas, ao que parece de propósito, para que não compreendessem as exigências da realidade e suas obrigações, e elas terminavam a formação sem ter adquirido nem os conhecimentos mais elementares, nem noções minimamente corretas sobre a vida e as pessoas, situação que descrevo na segunda parte das “Memórias”.

Fui educada no Instituto Smolnyi na época em que não só não penetrava ali nenhuma ideia humanista, como também não se ouvia nenhum gemido provocado por sofrimentos humanos. Em minha época, dentro daqueles muros, surgiu K. [Konstantin] D. [Dmitrievitch] Uchinski, no cargo de inspetor, o que me deu a oportunidade de ver como esse grande pedagogo russo, juntamente com novos professores convidados por ele, começou a destruir os carcomidos pilares da instituição, enquanto introduzia disposições novas, capazes de fazer estremecer toda a estrutura do pântano em que o instituto se sustentava e de virar de ponta-cabeça todas as noções ali existentes sobre formação e educação. Nos ensaios sobre o instituto nesse período, descrevo como aos poucos, sob influência das reformas de Uchinski, de sua excepcional personalidade e destacada inteligência, começaram a acontecer mudanças na visão de mundo, nas aspirações e nos sonhos das alunas.

Depois do choque intelectual e moral provocado por Uchinski, quando as novas ideias faziam a minha cabeça girar e ainda estavam longe de se aquietar ali dentro, fui lançada ao mais efervescente turbilhão da década de 1860. Nos ensaios sob o título “Entre a juventude petersburguesa dos anos 60”, tentei mostrar a vida dos jovens da época, as relações entre eles, suas concepções, disputas, aspirações, atividades favoritas, sua capacidade de amenizar a vida de trabalho com uma alegria incontida e, finalmente, os desentendimentos entre pais e filhos e os casamentos por conveniência. 

Meus primeiros contatos com essa juventude, tudo que fazíamos juntos, palestras, escolas dominicais, grupos de estudo, festas, conversas, discussões e discursos, eu descrevia em detalhes, sob viva impressão, à minha querida irmã, que naquela época morava na província. Após sua morte, encontrei essas cartas e com elas redigi os ensaios sobre a juventude dos anos 60. 

Mais tarde, depois de um longo período de separação dos parentes próximos, estive durante algum tempo na casa de meus pais e então descrevo tudo que encontrei em minha pátria, conto como os membros da minha família e também os proprietários e os camponeses com os quais me encontrei reagiram aos novos movimentos sociais e à abolição da servidão.

Em minhas “Memórias”, incluo apenas o que vi e experimentei, o que testemunhei ou ouvi das pessoas ao meu redor. Para lembrar bem os acontecimentos da vida do interior e os traços de antigos conhecidos, proprietários rurais da época pré-reformas, contei com a circunstância de que, já tendo minha própria família, eu ia regularmente à região natal visitar minha mãe e lá encontrava também meus irmãos e irmãs. Os membros de minha família adoravam relembrar o passado. O que mais favorecia isso era a vida rural monótona e isolada do nosso vilarejo de fim de mundo, a insuficiência de livros para leitura, às vezes a falta até de jornais e, consequentemente, a escassez de temas para conversas. Uma ou duas semanas após a chegada, acontecia de termos contado uns aos outros tudo o que se acumulara em um ano de separação, e o material se esgotava. E eis que bastava o motivo mais insignificante – o surgimento de uma mulher oriunda de um lugarejo distante em busca de medicamento ou o recebimento de apontamentos comerciais de um vizinho – e um dos presentes começava a se lembrar de pessoas e acontecimentos daquele local, outro passava a episódios correspondentes do passado de nossa vida familiar, um terceiro corrigia e acrescentava ao fato contado todo tipo de detalhe possível, pois todos os presentes, no decorrer de muitos anos, tinham sido testemunhas das mesmas situações, tinham vivido a mesma vida. Essas histórias se repetiram na minha presença muitas vezes e, em minhas memórias sobre os acontecimentos da primeira infância, nem sempre consigo distinguir o que observei por mim mesma e o que fiquei sabendo por relatos das pessoas ao redor. Em minha memória, o passado se avivava ainda mais fortemente por causa da seguinte circunstância: quando eu ia ao vilarejo visitar a minha mãe no verão, de tempos em tempos, ela me pedia que lesse o diário de sua filha falecida muito jovem, minha querida irmã, encontrado após a sua morte. Desse modo, ele foi lido por inteiro, do começo ao fim, mais de uma vez. Acontecia de lermos repetidas vezes a mesma coisa porque o diário produzia em minha mãe uma satisfação imensa e despertava memórias do passado; aqui e ali ela contava detalhes ou fatos aos quais minha falecida irmã não dera atenção ou descrevera muito de passagem. Eis porque me lembro tão vivamente de muitos acontecimentos da vida no interior.

Os textos das minhas memórias No raiar da vida foram publicados isoladamente como ensaios nas seguintes revistas: 1) Russkaia Starina, 1887, n. 2, sob o pseudônimo de N. Titova; 2) Minuvchie gody, 1908, em dez volumes; 3) Russkoe Bogatstvo, 1908, em cinco volumes; 4) Russkoe bogatstvo, 1911, n. 2; e 5) Sovremennik, 1911, em três números. Na segunda e ainda mais na terceira parte das Memórias, entraram alguns ensaios novos e episódios que não tinham sido publicados antes. 

De minhas Memórias sobre os proprietários de terra e a vida dos camponeses servos publicadas em revistas, já se ocuparam alguns historiadores que estudam a servidão no reinado do imperador Nicolau e compiladores de materiais históricos. Se outros de meus ensaios também forem úteis para melhor conhecimento dos aspectos do passado que descrevo, serei inteiramente recompensada pelo meu trabalho. 

Neste livro, quando cito personalidades literárias e ativistas sociais, normalmente não julgo necessário esconder os seus nomes; entretanto, quando o assunto são meus parentes e conhecidos, pessoas que serão significativas apenas para caracterização geral da época ou, ao que me parece, despertarão o interesse apenas de pedagogos e psicólogos, considerei desnecessário indicar seus nomes verdadeiros. 


Denise Regina de Sales – Tradutora do russo e professora de língua russa no Instituto de Letras da UFRGS

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