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Jules Supervielle: o pampa e o gaúcho como vanguarda

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Jules Supervielle: o pampa e o gaúcho como vanguarda Supervielle pela fotógrafa alemã Gisèle Freund, na Estancia Águeda (Uruguai) em torno de 1941

1922 foi palco da Semana de Arte Moderna em São Paulo. O Futurismo, o Cubismo, o Dadaísmo e o Esprit Nouveau se mesclavam num debate estético amplo e já com apoio institucional por aqui. Mas ver assim ainda é pensar na presença da Europa na América do Sul, esse vetor colonialista. Curiosamente, em Paris, nesse mesmo ano de 1922, propunha-se pensar a presença da América do Sul na Europa. Ou mesmo num desprezo do Novo Mundo pelo Velho Mundo. É isso que mostra o contraste da paisagem pampeana com a natureza europeia nos versos de “Retorno”, do poeta franco-uruguaio Jules Supervielle1:

Eu me incorporo ao Pampa, que não conhece a mitologia,
ao deserto orgulhoso de ser o deserto desde os tempos mais abstratos
e que ignora os Deuses do Olimpo, que ainda ritmam o velho mundo.

Nascido em Montevidéu em 1884, filho de pai e mãe franceses, Jules Supervielle passou grande parte da infância percorrendo as terras da família na Estancia Águeda, às proximidades de Ciudad del Plata e do rio Santa Lucía. O pai e o tio eram sócios fundadores do Banco Supervielle. Mesmo que tenha se instalado em Paris aos 10 anos, aí tendo feito seus estudos secundários e se diplomado em Letras na Sorbonne em 1906, seu eu-lírico, expressando-se em francês desde sempre, relata um batizado: “A América deu seu murmúrio ao meu coração; […] não posso adorar um ardor / Sem misturar o amor pelas mangas e goiabas”. 

Supervielle teve a vida marcada pela viagem entre a América do Sul e a Europa. Esse percurso teria tudo para ser doce, não fosse a tragédia da morte prematura dos pais quando foram apresentar o bebê recém-nascido à família na França. Num passeio bucólico em Saint-Jean-Pied-de-Port, beberam água de uma torneira contaminada com azinhavre, vindo a falecer em seguida: “Nasci em Montevidéu, mas tinha apenas oito meses quando parti para a França um dia nos braços da minha mãe, que deveria morrer lá, na mesma semana que meu pai. Sim, tudo isso na mesma frase”2. A infância no Uruguai foi com os tios, e Jules só descobriu aos nove anos a morte dos pais e a sua condição de filho adotivo. Desse trauma, a mudança para a capital francesa.

Formou-se poeta com as leituras de Hugo, Lamartine, Vigny. Absorveu mais tarde as lições de Rimbaud, Apollinaire, sobretudo de Larbaud e seu americanismo. Ainda nos tempos de universidade, inquietou-se com a representação da natureza na poesia hispano-americana, impregnada de um “estilo nobre” europeu que via faunos e ninfas habitando paisagens do Chile, do Uruguai e da Argentina. O livro Débarcadères (“Desembarcadouros”), de 1922, representa um momento-chave de sua produção poética. Os versos mesclam regularidades clássicas e rupturas modernas. Além disso, um eu-lírico viajante pinta a autenticidade das paisagens no vai-e-vem entre a Europa e a América do Sul, especialmente o pampa:

Eu me entranho na planície, que não tem história e estende para todos os
[lados sua pele dura de vaca que sempre dormiu fora,
e só tem por vegetação algumas talas, ceibos, pitas,
que não conhecem nem o grego, nem o latim,
mas sabem resistir ao vento faminto do polo,
com toda a sua velha esperteza bárbara.

O gaúcho, que não é senão outro elemento do espaço pampeano, estende seu corpo magro para dormir no rancho ao redor de uma fogueira. Como a terra que ignora qualquer influência externa, em seu sono também não figura religião alguma:

Com sua alma pela noite ainda ali toda empedrada
Ao lado dos companheiros derrubados num sono
Onde os anjos não adentram e que tinham em mãos
Seus raquíticos cavalos na pista de seus sonhos.

Na minha tese de doutorado, em via de conclusão, proponho um estudo do espaço nos poemas de Débarcadères, seguido de uma tradução em português. Exercício interessante, pois é preciso estar todo o tempo atento ao que é regular e ao que não é. O poema “O Gaúcho”, do trecho acima, por exemplo, é todo composto por alexandrinos espanhóis (2 hemistíquios de 7 sílabas) brancos. Já em “Retorno”, Supervielle pega emprestado de Claudel o versículo, essa forma extensa e irregular que lembra a prosa. Busco respeitar na tradução toda essa variedade formal. 

Ainda não existe nenhuma obra de Jules Supervielle editada em português. Nem tão conhecido por aqui, mas admirado por Drummond, é muito respeitado na França e no Uruguai, tendo integrado o círculo da Nouvelle Revue française (NRF) a partir da década de 20, recebendo vários prêmios e condecorações literárias. Morreu em 1960 e foi sepultado em Oloron-Sainte-Marie, ao pé dos Pireneus, no mesmo cemitério em que repousam os pais desde 1884.

Quando fui visitar o túmulo do Supervielle em Oloron-Sainte-Marie, durante o meu estágio doutoral por lá no ano passado. (Arquivo pessoal)

Débarcadères se insere no contexto da Poésie planétaire, termo cunhado por Julien Knebusch e que representa uma nuance literária pouco explorada no início do século XX, ao lado das vanguardas. Trata-se de uma poética crítica ao exotismo colonial, buscando se abrir ao mundo e fazer o elogio das diferenças. Só depois de escolher como corpus principal de minha pesquisa percebi que a primeira edição do livro está prestes a completar cem anos. Um estímulo a mais para tentar publicá-lo integralmente em português. 

Nota do autor sobre a foto: A visita ao túmulo do Supervielle em Oloron-Sainte-Marie, ocorreu durante o meu estágio doutoral no ano de 2020.

¹Traduzi do francês os poemas e as citações neste artigo.
²Trecho de Uruguay, texto autobiográfico publicado em 1928.


Augusto Darde é doutorando no PPG-Letras UFRGS. Contato: [email protected]

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