Tradução

O nome do ovo

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O nome do ovo Humpty Dumpty não era necessariamente um ovo que se transformou em gente. (Ilustração: Edu Oliveira)

Da série: Tradutores pensam a tradução (org. Karina Lucena)

Contar uma piada em outra língua é uma das tarefas mais difíceis e divertidas da tradução. O humor carrega mais de uma camada de sentidos e é quase impossível transpor todo o pacote para outra língua, para outra cultura, em outro lugar e tempo. Quando se encontra um trocadilho ou um ditado com equivalência em duas línguas, é uma sorte danada. O que se costuma fazer é substituir por outro com sentido próximo, em geral sacrificando alguma referência ou algum aspecto sonoro.  Às vezes, é preciso deixar passar e esperar uma outra ocasião no texto para repor o trocadilho perdido, o que pode gerar uma certa frustração, mas aceitar que é “quase a mesma coisa”, como definiu o Umberto Eco, faz parte do ofício. E o lado divertido está justamente na lida com o humor: basicamente, pesquisar e pensar em piadas. Se necessário, inventar novos ditados e trocadilhos. Nesse campo da tradução do humor, histórias infantis são oportunidades riquíssimas para se divertir carregando pedra. 

Também posso dizer que traduzir para crianças é uma das tarefas mais difíceis e divertidas desse ofício. Parece óbvio, mas sempre que se traduz é para alguém ler, e esse alguém é múltiplo e desconhecido. Se for criança, mais longe essa leitora está de nós, os adultos que fazemos os livros. Para escrever e traduzir para elas, contamos com a memória das crianças que fomos, em diversas fases, e com o convívio com crianças de nosso mundo, que provavelmente vão ter alguma coisa em comum com nossa cultura, além da língua. Mas o que é que as une, que as transforma em um grupo, em um público-alvo? Isso vai depender do texto a ser traduzido. 

Quando o Jorge Furtado me convidou para traduzir Aventuras de Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll, ele tinha adaptado a história para o teatro e brincou: “Já fiz as piadas. Agora é só fazer o resto”. Logo vimos que esse resto estava cheio de outras piadas e, anos depois, depois de rir muito e de muito quebrar a cabeça recriando piadas e rimas, demos o trabalho por encerrado. E mais alguns anos depois, resolvemos encarar também o segundo livro de Alice, Através do espelho. Nessa segunda história, diversos capítulos se baseiam em cantigas e personagens infantis então populares, referências que seriam prontamente reconhecidas pelas crianças vitorianas, mas que estariam perdidas para crianças brasileiras de hoje.  Entre esses habitantes do outro lado do espelho está Humpty Dumpty, que dá nome ao capítulo 6, um capítulo dedicado à discussão dos significados das palavras, particularmente ao significado dos nomes próprios, e que exemplifica bem o humor de Charles Lutwidge Dodgson.

Dodgson era um professor de matemática e lógica, e interessava-se pela conversa entre esses campos do conhecimento: seria a lógica do campo da matemática ou da filosofia? Como se relacionam linguagem e matemática? Fascinado pela linguagem e por suas múltiplas possibilidades de expressão e sentido, pelos sons que podem alterar os sentidos e pelas camadas de leitura possíveis em qualquer texto, gostava de inventar cartas enigmáticas, charadas, paródias, trocadilhos e outros jogos linguísticos, principalmente para crianças. Seu próprio pseudônimo foi resultado de uma brincadeira com a língua: Lutwidge virou Lewis e Charles virou Carroll. E ele escrevia mesmo para crianças, isto é, não usava a literatura para contrabandear algum ensinamento moral ou de convenções sociais, para torná-las crianças ideais conforme o padrão dos adultos de sua época, mas para que elas gostassem de ler as histórias, se divertissem, sentissem prazer, rissem das piadas. Ele gostava da companhia de crianças, interessava-se por sua maneira de pensar e se expressar, da mesma forma que era fascinado pela linguagem e seu potencial de diversão. 

Humpty Dumpty também está interessadíssimo nesse assunto. A palavra mean, que também significa “significar”, aparece no livro 48 vezes – incluindo-se suas variantes verbais means, meant e meaning, além do adjetivo mean (maldoso/as, mesquinho/as) e do substantivo means (meio, modo) –, 26 das quais nesse capítulo. Alice reconhece o personagem imediatamente ao vê-lo em cima de uma prateleira, transformando-se de ovo em humano enquanto a prateleira vira um muro. Ela conhecia os versos que contavam que Humpty Dumpty sentou-se em um muro, de onde caiu e quebrou-se sem que nem o Rei nem seus soldados jamais conseguissem remendá-lo. A palavra Humpty-dumpty, já por causa do personagem dos versos conhecidos por Alice, está dicionarizada como algo impossível de consertar depois de quebrado, e também significava então uma pessoa gorda e baixa, a forma do corpo do homem-ovo. Antes de Carroll, Humpty Dumpty não era necessariamente um ovo que se transformou em gente, mas seu nome já revelava sua aparência. Em inglês, é claro. Quando ele retrucasse que o nome de Alice é idiota por não significar nada, ao contrário de seu próprio nome, que significa a linda forma de seu corpo, as crianças brasileiras lendo a história 150 anos depois perderiam a piada. Na tradução de Maria Thereza Cunha de Giacomo (1968), para crianças, ele vira o Gorducho, o que facilita a compreensão do comentário do personagem sobre seu corpo, enquanto a maioria das traduções mantém o nome original, sem explicações, exceto em notas de rodapé em edições para adultos. Nós não queríamos explicar as piadas, porque elas perderiam a graça.

Tínhamos um problema divertido a resolver: era um personagem já consagrado com esse nome. Dezenas de outras traduções e adaptações já existiam, muitas outras pessoas, por muitos anos, já haviam feito suas leituras e contado do seu jeito, para adultos e crianças falantes de português, o que haviam lido. E nós achávamos que faltava o nosso recorte: recuperar, para as crianças brasileiras, o humor chamado nonsense do autor – que não tem nada de “sem sentido”, como o termo pode sugerir. Para isso, os nomes dos personagens não podiam permanecer no original, especialmente esse, mencionado explicitamente no texto. Além do aspecto semântico, precisávamos contemplar o aspecto sonoro do nome: duas palavras paroxítonas quase idênticas, só diferentes nas iniciais e, portanto, rimando; a sequência de som das consoantes H – p – t – D – p t no nome pronunciado em voz alta tem uma característica musical, e era importante considerar a leitura em voz alta para uma criança não alfabetizada.  Esse nome também apareceria na canção e no título do capítulo, e a forma do personagem apareceria nas ilustrações. 

Depois de muitas listas e tentativas, chegamos a Ovaldo Rotundo. Duas palavras paroxítonas, cada uma com três sílabas em vez de duas – o português precisa de mais espaço que o inglês –, sem rima propriamente dita, mas com terminações idênticas e sons harmônicos – e a preservação de sons semelhantes ao original nas consoantes R, t e d –, e o formato do corpo garantido para os diálogos e as ilustrações. Depois de testado com nosso público-alvo, assim ficou, foi a nossa solução, entre outras tantas possíveis. No momento em que Alice o reconhece “como se o nome estivesse escrito na cara dele” e lembra da cantiga, não parece estranho – a nós ou às crianças para quem escrevemos e lemos – que ela o tenha visto antes em um livro, nem que ele fosse um ovo há poucos instantes. Também não parece que o personagem fale sandices sem sentido quando se refere aos significados dos nomes: o nome Alice realmente não revela nada sobre a aparência da menina, mas é inegável que o nome de Ovaldo Rotundo combina perfeitamente com ele.

Ovaldo Rotundo sentou-se no muro

Ovaldo Rotundo caiu de maduro

Nem o Rei, seus cavalos, sua escolta

Conseguiram botar Ovaldo Rotundo de volta

– O último verso é comprido demais para um poema – ela acrescentou, quase em voz alta, esquecendo que Ovaldo podia ouvi-la.

– Não fique parada aí tagarelando sozinha desse jeito – disse Ovaldo, olhando para ela pela primeira vez. – Apenas me diga seu nome e ocupação.

– Meu NOME é Alice, mas…

– Que nome idiota! – Ovaldo interrompeu, impaciente. – O que significa?

– Um nome TEM que significar alguma coisa? – Alice perguntou confusa.

– Claro que tem – Ovaldo disse com uma risadinha. – MEU nome significa a forma que eu tenho, que é uma forma linda, aliás. Com um nome como o seu, você poderia ter qualquer forma, ou quase.

Aprendi com o professor e tradutor Ian Alexander que toda tradução é melhor que o texto original. Como assim? Claro, melhor é o texto que se pode ler e, se a pessoa não for capaz de ler na língua original, esse texto não existe para ela até que ganhe vida na sua própria língua. É por isso que acredito que, para a criança leitora de português do Brasil no século XXI, o nome Ovaldo Rotundo funciona melhor que Humpty Dumpty porque é possível entender a piada, e que um não substitui o outro, ou se transforma no outro, mas convivem em harmonia no conjunto das traduções de Lewis Carroll para a língua portuguesa. 

Alice através do espelho (e o que ela encontrou do outro lado) – de Lewis Carroll, tradução de Jorge Furtado e Liziane Kugland, ilustrações de Edu Oliveira (São Paulo: Companhia das Letrinhas, 2012)


Liziane Kugland é professora e tradutora do inglês.

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