Tradução

Poéticas pancrônicas de tradução

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Poéticas pancrônicas de tradução

Da série: Tradutores pensam a tradução (org. Karina Lucena)

Em meio a tantos outros tradutores profissionais que muito admiro e escreveram para esta seção, sou, diferentemente deles, um pesquisador de textos da Antiguidade Clássica para quem a tradução surge como uma das muitas ferramentas hermenêuticas possíveis para interpretar o texto e trazer ao leitor contemporâneo o sentido de um passado quase perdido. Um tradutor bissexto, portanto, como já se definiu certa vez o helenista brasileiro Jacyntho Lins Brandão, parafraseando Manuel Bandeira. 

Contudo, na área dos Estudos Clássicos, me parece existir um debate muito pujante sobre a prática de tradução, e é dele que eu gostaria de falar. Não posso afirmar com certeza – não sou teórico de tradução –, mas algumas questões colocadas pelos tradutores de obras gregas e latinas me parecem bastante singulares a essa área. 

Os classicistas costumam empregar dois adjetivos (e algumas variações) para especificar as suas práticas de tradução: há traduções que podem ser “poéticas” (o termo “rítmica” às vezes é usado); há as que são classificadas como filológicas (ou “acadêmicas”). Talvez o leitor consiga notar que estes qualificadores, por si só, pouco ou nada dizem – são conceitualmente vazios. Para se definir, por exemplo, o que é uma “tradução filológica” é preciso primeiramente esclarecer qual é a definição de filologia que está sendo evocada, coisa que, como nos mostra o filólogo Hans Ulrich Gumbrecht, está longe de ser um consenso: “por um lado, você encontrará definições da palavra filologia que, trazendo-a de volta ao seu significado etimológico de “interesse ou fascínio pelas palavras” tornam a noção sinônima de qualquer estudo sobre a linguagem ou, ainda mais genericamente, de quase todo o estudo de qualquer produto do espírito humano. Por outro lado, mais específico e mais familiar, a filologia é estritamente usada para significar uma curadoria de texto histórico que se refere exclusivamente a textos escritos”.[1] 

Tão ou mais difícil é encontrar uma definição abrangente para “poesia”. Categoria transtemporal, o que hoje chamamos “literatura” era chamado, na Antiguidade Ocidental, “poesia”, termo proveniente da palavra do Grego Antigo para criação de objetos e textos (ποιητική, poiētikḗ). Estava na base da noção de poesia a ideia de uma prática “artesanal” e, portanto, a noção de um design da linguagem, que podia ser notado em performance, canto ou recitação, historicamente determinada, e nela revelava uma disposição especial das sílabas, uso de rimas, assonâncias, aliterações e pausas (cesuras, na poesia; quebra do texto em linhas, na prosa). Pergunta-se Owen (2012, p.1067)[2]: “qual é o entendimento de poesia que une diversas práticas, da poesia concreta aos poemas gerados por computador, ao waka? […] Em cada caso, uma autoridade cultural pode intervir e dizer, “Isso não é poesia”.  No entanto, cada uma das diversas práticas de poesia no início do século 21 derivam de algum ponto da história desta palavra, e cada uma reivindica um argumento que exclui o que é definido como poesia alhures”. 

Na área da tradução dos clássicos, exemplo da maleabilidade da definição de tradução poética aparece nos múltiplos juízos à competente tradução da Odisseia do estudioso português Frederico Lourenço. Cito dois exemplos: o helenista brasileiro André Malta[3] definirá a tradução de Lourenço como mais afeita à prosa – ao definir tradução poética como “projeto de valorização sustentada da forma” (2014, p. 11-12); por sua vez, a helenista Maria Helena da Rocha Pereira assim dirá, em resenha à revista Público: “pôde Frederico Lourenço levar a bom termo esta tarefa tão difícil de executar, uma tradução em verso solto, cadenciado, mas não espartilhado, próximo da literalidade, mas não por ela escravizado…”[4].  Outro exemplo digno de nota é a tradução, do mesmo Homero, empreendida por Carlos Alberto Nunes na década de 40 e até hoje reeditada. No célebre ensaio “Para transcriar a Ilíada[5] Haroldo de Campos nega-se a chamá-la “tradução poética”, ou melhor, “transcriação”, e aponta seu prosaísmo: “trata-se, antes, de uma tradução acadêmica, de pendor classicizante, que retroage estilisticamente no tempo” (1994, p.12). Uma avaliação que hoje não é mais consensual, como bem demonstra uma nova geração de classicistas que traduzem ao estilo de Nunes e reclamam o valor estético de suas traduções. Perspectivas tão opostas da mesma tradução, me parece, só existem porque o termo “tradução poética”, considerando diferenças temporais, culturais e geográficas, se assenta em bases conceitualmente fluidas e nem sempre explícitas. 

Talvez a distinção colocada por alguns classicistas entre tradução poética e filológica possa ser mais bem apreciada se recorrermos ao já mencionado Haroldo de Campos. Incontornável para a reflexão da chamada tradução poética, maior ainda me parece ser seu papel na área dos Estudos Clássicos graças à sua tradução da Ilíada de Homero, um monumento da nossa literatura e um marco absoluto na cena da tradução dos clássicos. Seus critérios para traduzir a Ilíada são assim expressos (1994, p.14):

Estou empenhado em recriar, em nossa língua, quanto possível, a forma da expressão (no plano fônico e rítmico-prosódico) e a forma do conteúdo (a ‘logopeia’, o desenho sintático, a ‘poesia da gramática’) do Canto I da Ilíada. Longe de mim a intenção, excessiva para os meus propósitos, de uma tradução integral do poema[6]. Desejo, tão-somente, constituir um modelo intensivo, um paradigma atual e atuante, de ‘transcriação’ homérica. Por um lado, retomo o legado, até certo ponto ‘arcaizado’ de Odorico [Mendes, primeiro tradutor de Homero no Brasil], com cujas soluções meu texto frequentemente dialoga; por outro, com o escopo de dar nova vitalidade ao verso traduzido, mobilizo todos os recursos do arsenal da moderna poética nesse sentido (desde logo há a considerar, em matéria de retomada épica, o exemplo de dicção dos Cantos de Ezra Pound, a cuja tradução parcial me dediquei, com Augusto de Campos e Décio Pignatari, no final da década de 50). Estou persuadido, pelo caminho até aqui percorrido, que do “transcriador” da rapsódia homérica se requer, no plano da fatura poética, uma atenção micrológica à elaboração poética de cada verso (paronomásias, aliterações, ecos, onomatopeias), aliada a uma precisa técnica de cortes, remessas e encadeamentos frásicos (o tradutor, no caso, deverá comportar-se como um ‘coreógrafo’ ou ‘diagramador’ sintático’). 

Observamos que um ponto encarecido por Haroldo de Campos é a “vitalidade do verso traduzido”, que deve se apoiar na poética moderna – no caso de Homero, para ele, valer-se da dicção poundiana. Nesses termos, o adjetivo “tradução poética” poderia se restringir à adoção de uma poética que mobiliza efeitos e procedimentos estéticos circunscritos no tempo e, portanto, nos termos de Haroldo, “tradução poética” (ou transcriação, ou transhelenização, transluciferação mefistofáustica ou o que valha) é um termo que atenta para procedimentos estéticos contemporâneos, síncronos.  

Outros textos de Haroldo de Campos parecem prenunciar a questão da oposição entre tradução “poética” e “filológica” vista nos Estudos Clássicos: “Por uma poética sincrônica”, “O samurai e o kakemono” e “Apostila: diacronia e sincronia”, presentes em A arte no horizonte do provável (2010)[7]. Lá, Haroldo não versa especificamente sobre tradução, mas opõe uma distinção entre poética “sincrônica” e “diacrônica”, “a partir de uma livre manipulação da famosa dicotomia saussuriana” (2010, p.205). Os diacrônicos preocupam-se com o desdobramento dos fenômenos literários na história e falam de um lugar “esteticamente neutro”. Nessa visão, um fato sociológico ou “meramente documentário” assume preponderância sobre o estético (2010, pp. 205-206).

É interessante que o modo como Haroldo recusa a visão diacrônica cria um reducionismo que persistiu depois (e ainda persiste sobre variadas formas) por muitos anos entre antigos e não tão antigos tradutores vanguardistas de poesia grega, que, assim como ele faz nesse artigo, citam variações da frase de Yeats contra os filólogos: “they don’t like poetry; they like something else, but they like to think they like poetry”.  

Em contrapartida, diz Haroldo, uma poética sincrônica preocupa-se com os elementos estéticos de uma obra que nos são contemporâneos, buscando revivê-la, ou reconhecer o que há de vivo nela para além da “cristalização” de procedimentos operada pela visada diacrônica.  De certo modo, a crítica de Haroldo de Campos à chamada “poética diacrônica” refere-se antes a apenas um tipo de poética diacrônica, a uma percepção antiga de história da literatura, que deixa de lado a possibilidade de reconhecer a especificidade dos fenômenos literários e seu parentesco ao longo do tempo e verifica somente como grandes autores dialogam entre si em sucessão cronológica. 

Vale um parêntese aqui: a visão de uma historiografia literária estanque, paralisada, grassa mais entre seus críticos do que entre seus adeptos. É frequente vermos o falso silogismo de que a dita “filologia clássica”,  ao estabelecer a busca por uma forma mentis (em outra palavras, tentar situar uma obra da Antiguidade no ambiente cultural de um período ou nação em particular), estaria procurando “a maneira correta de ler o texto”. Já entre os antigos, proliferavam diferentes interpretações de uma mesma obra e a lição de Aristóteles, em sua Poética, aponta para o universal da poesia. O que antes está em jogo na relação com o passado, tal como feita pela filologia do séc. XXI, é elucidar o processo de alteridade e continuidade entre nós, contemporâneos, e eles, antigos, que é múltiplo e diverso de ambos os lados ou, melhor dizendo com as palavras da classicista britânica Mary Beard, entender “a defasagem entre nós e o mundo dos gregos e romanos” e, com isso, “definir e discutir nossas relações com esse mundo” (1998, p.20). 

Como observa Haroldo, citando o linguista Stankiewicz: “A sincronia surge somente em nossa atitude para com o diacrônico, em nossa aceitação ou recusa das tradições poéticas que nos foram transmitidas”. E daí conclui: “Não se chega a nenhuma valoração significativa sem fazer da teoria uma pragmática do escolher (…). A operação sincrônica dá a medida funcional dessa escolha em cada caso considerado. Permite o desenho de novas tábuas inteligíveis de funções-relações” (2010, p.217-218). Chamo a atenção para a palavra “tradição”, que é curiosa nesse contexto de poética sincrônica. Ao usar o termo, recorre-se inevitavelmente a um quadro cristalizado, que tende a neutralizar tudo o que é estranho, ou que deixou, em algum momento, de ter valor estético nas poéticas do nosso tempo. 

O próprio Haroldo relativiza a oposição entre sincrônico e diacrônico na análise do fenômeno literário, ao observar que ambos estão em dialética e são complementares (2010, p.215).  Uma poética sincrônica se volta para a seleção e operacionalização de uma diacronia. Ora, se ambos estão dialogando e se os dados históricos são relevantes para a apreensão coeva do fenômeno literário, as oposições entre poéticas sincrônicas e diacrônicas não são mais pertinentes. Poderíamos pressupor, também emprestando um termo da linguística, uma poética pancrônica, que sublinha a interdependência dos dois eixos e a relevância do histórico para a compreensão dos fenômenos estéticos que nos são relevantes hoje – elementos muitas vezes elusivos que escapam à sucessão cronológica de acontecimentos literários mas que recorrem em circunstâncias históricas distintas. 

Penso, assim, que falar em “tradução poética” – operação , portanto, num eixo sincrônico – e “tradução filológica” – que considera a diacronia –, quando se trata da Antiguidade Clássica, pode induzir a erro: nenhuma tradução poética de textos antigos pode reivindicar-se exclusivamente sincrônica, na medida em que lida com o passado literário e se vê obrigada a dialogar com certa ideia de cânone, com uma recepção que legitimou esses textos muitas vezes sob uma ideia de “tradição” (isso significa perguntar também: quantas traduções de Homero temos, e quantas, por exemplo, de Arato, Quinto de Esmirna ou da Batracomiomaquia? Quantos, aliás, fora da área dos Estudos Clássicos, ouviram falar dessas obras?).  Ao mesmo tempo, não há como uma tradução “filológica” – pensemos que seja aquela que se ocupa dos textos em seu caráter diacrônico, privilegiando os aspectos semânticos que demarquem o contexto do original – se manter absolutamente neutra em relação à sensibilidade contemporânea, uma vez que são produzidas no nosso tempo e para o nosso tempo.  Nesse sentido, toda a tradução da Antiguidade Clássica antes pode ser dita pancrônica – operando constantemente, e como condição principal, a dialética entre o presente e o passado. 

Volto, pois, ao que mencionei no início deste texto, para refletir sobre a minha prática de tradução de textos antigos: pesquisador de textos antigos, tradutor bissexto. Gosto de pensar na tradução, então, como uma ferramenta que mobiliza e procura ver a diacronia na sincronia.

Meus interesses atuais em tradução têm se voltado sobretudo para usá-la como ferramenta de divulgação e apresentação de obras da Antiguidade Clássica, por meio de dois critérios tradutórios principais: fluência e clareza. Busca-se, levando em conta a clareza da tradução, uma expressão que reproduza, na medida em que o português permite, os jogos de palavras e sonoridade do original.  Articula-se com a tradução o comentário histórico-filológico, que traz as questões textuais e do universo ao qual aqueles poemas remetem, de maneira a explicitar aspectos relevantes para a apreensão estética daqueles textos. Não são como notas de rodapé: antes, busca-se praticar um comentário que forme um todo indivisível do qual a tradução também é parte e com o qual dialoga, mostrando ao leitor o funcionamento da máquina do poema. Nesse sentido, tradução e comentário são duas faces de uma mesma operação e criam uma pancronia: a tradução, visando ao leitor contemporâneo; o comentário, que aponta para esse leitor contemporâneo o percurso estético de um texto, desvelando suas camadas e o colocando em um contexto maior do que aquele circunscrito por seu tempo e espaço.  Em outras palavras, trata-se de anotar a multiplicidade de “interferências” e percepções de um texto como aspecto que contribui para a fruição estética e mostrar como a tradução dialoga com isso. 

Tem sido este o trabalho ao qual me dediquei, juntamente com a professora da USP Giuliana Ragusa, em Elegia Grega Arcaica: uma antologia[8], que apresenta os chamados poetas elegíacos gregos, mas o faz sob um novo recorte: normalmente esses poetas são apresentados em antologias de poesia grega, que tendem a associar sua produção a uma concepção contemporânea de lírica; entretanto, a própria visão de “lírica” e o que se chamava então “elegia” entre os gregos era algo completamente distinto da visão contemporânea. Assinalar a historicidade do conceito, discutir os procedimentos estéticos empregados por seus poetas e a qual contexto pertenciam permite ver a elegia sob um novo prisma e estabelecer um diálogo com nossas próprias noções de poesia, criando uma aproximação que é ao mesmo tempo marcada pela alteridade. Coisa semelhante venho desenvolvendo com o professor de grego da UFBA, Tadeu Andrade, com um trabalho denominado Um poema grego antigo por dia (facebook.com/umpoemagrego) que desenvolvemos durante os anos da pandemia, e de dois outros que derivarão deste: uma antologia de poemas de Safo e Alceu, dois poetas gregos arcaicos da ilha de Lesbos; e uma tradução integral das Bacantes, de Eurípides. Essa é, portanto, minha intenção como tradutor e pesquisador de textos clássicos, cuja recepção, creio, também não se pretende exclusiva na sincronia do tempo presente. 

NOTAS

  1. Gumbrecht, H. Os Poderes da Filologia. Rio de Janeiro: Contraponto Editorial, 2021, p. 25.  Tradução de Greicy Pinto Bellin e Claudia Regina Camargo. 
  2. OWEN, S. Poetry in GREENE, R. et alli. The Princeton encyclopedia of poetry and poetics, Princeton: Princeton University Press, 2012, pp. 1065-1068. 
  3. MALTA, A. Traduções em prosa da Odisseia de Homero: exemplos e problemas. Nuntius Antiquus. Belo Horizonte: UFMG, pp. 5-15. 
  4. LOURENÇO, F. Homero. Odisseia. Lisboa: Cotovia, 2003
  5. CAMPOS, H.; VIEIRA, T. ΜΗΝΙΣ – A ira de Aquiles, Canto I da Ilíada de Homero. São Paulo: Nova Alexandria, 1994. 
  6. A tradução integral da Ilíada de Haroldo de Campos seria publicada anos depois, em 2003. 
  7. CAMPOS, H. A arte no horizonte do provável. São Paulo: Perspectiva, 2010. 
  8. BRUNHARA, R.; RAGUSA, G. Elegia Grega Arcaica: uma antologia. São Paulo: Ateliê/Mnema. 2021. 


Rafael Brunhara é professor de língua e literatura grega na UFRGS.

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