Tradução

Tão docinhas

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Tão docinhas

Quando era pequeno – na parte que me lembro já da infância – morei por uns quatro anos numa casa num bairro chamado Flamboyant. Foi ali que os vizinhos e os meninos da escola descobriram que eu era veadinho e me informavam em sessões diárias de um ritual macho, em círculo, com pequenas trovas ofensivas. Flamboyant. Esse nome estrangeiro e flamboyant, na frescura e na árvore veada que nem eu, cheia de flores vermelhas, galhos e ramos dramáticos.

Eu queria aprender inglês e ir embora. Queria aprender francês e espanhol também. E mais línguas, quantas coubessem na cabeça. E marcava lugares no mapa e lia sobre lugares e línguas na enciclopédia.

O primeiro poema que li em inglês foi

This is just to say

I have eaten

the plums

that were in

the icebox

and which

you were probably

saving

for breakfast

Forgive me

they were delicious

so sweet

and so cold

É do William Carlos Williams. A professora de inglês era do tipo “no translation!”, e eu a entendo, porque também fui teacher, e tem essa forma de ensinar.

[Continua...]

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Da série: Tradutores pensam a tradução (org. Karina Lucena)

Quando era pequeno – na parte que me lembro já da infância – morei por uns quatro anos numa casa num bairro chamado Flamboyant. Foi ali que os vizinhos e os meninos da escola descobriram que eu era veadinho e me informavam em sessões diárias de um ritual macho, em círculo, com pequenas trovas ofensivas. Flamboyant. Esse nome estrangeiro e flamboyant, na frescura e na árvore veada que nem eu, cheia de flores vermelhas, galhos e ramos dramáticos.

Eu queria aprender inglês e ir embora. Queria aprender francês e espanhol também. E mais línguas, quantas coubessem na cabeça. E marcava lugares no mapa e lia sobre lugares e línguas na enciclopédia.

O primeiro poema que li em inglês foi

This is just to say

I have eaten

the plums

that were in

the icebox

and which

you were probably

saving

for breakfast

Forgive me

they were delicious

so sweet

and so cold

É do William Carlos Williams. A professora de inglês era do tipo “no translation!”, e eu a entendo, porque também fui teacher, e tem essa forma de ensinar.

Imagina dividir parte da vida, se discos de rap começam a morar na tua coleção de indie, e aí você come as ameixas que as orelhas que gostam de rap estavam guardando, como você usa o bilhete de Williams, supondo que a outra parte fala português?

Só queria dizer que

Eu comi

as ameixas

que estavam

na geladeira

e que

você estava provavelmente

guardando

pro café-da-manhã

Me desculpa

elas estavam deliciosas

tão docinhas

e tão fresquinhas.

Tem que mexer no poema, se for para usar. Icebox é uma coisa que nem existe mais. Alguém pode chamar a geladeira assim, para ser antigo. Talvez antigos vivos digam icebox. Quando era pequeno, a gente levava isopores para a praia. Hoje se compram coolers. Caixas térmicas, bolsas térmicas: minha primeira câmera, que meu pai me deu quando fiz seis anos, eu a carregava em uma bolsa térmica. Essas coisas térmicas e isoladas querem preservar a temperatura. Fracassam, porque nada fica para sempre gelado ou quente como a gente queria. Mas morno. Tão fresquinhas, porque Williams tirou do isopor e comeu. Docinhas e fresquinhas, porque assim é mais terno que doces e frias. A ternura de um pedido de desculpas por uma falta… leve? Pode ser grave, se não houver pão ou queijo para o café-da-manhã. Ovos. O meu amanhã vai ser hummus e tomates, que eu fiz e vou comer sozinho. Estão na geladeira. Tão geladinhos.

Uma vez eu comi os pralinés que meu companheiro tinha comprado para as visitas que iam chegar. Deixei para ele um bilhete:

Só queria dizer que

Eu comi

os pralinés

que estavam

no aparador

e que

você estava provavelmente

guardando

pras visitas

Me desculpa

eles estavam deliciosos

tão docinhos

e tão macios.

A gente morava na Bélgica. Eu já tinha aprendido inglês, francês, espanhol e estudava holandês. Não deu certo. O governo parou de pagar minhas aulas e elas eram caras. Não daria para comprar pralinés, esses bombons lindos com nomes como nougatine ou diamant. Escrevi um poema para esse companheiro, quando ele já não era mais. Ele me faz companhia, sim, mas nossos discos não moram mais juntos. Há uma lista de nomes de pralinés no poema, que se chama ballotin, que é o nome da caixa em que eles vêm. Há frases em francês no poema, mas a maioria das palavras está em português. Pralinés e ballotins, acho que são palavras que alguém que as leia no poema precisa se dar por contente. “Pas de traduction!”, serei uma professora de francês com método.

A gente escolhe qual dos fracassos e aprende a ficar contente com o que fez e tem em volta: na tradução, no zoológico escolar, na casa que um dia tem pralinés e um amante e no outro é solidão de hummus e tomates.

Só queria dizer que

Eu comi

meu coração

que arfava

na porta da rua

e que

pra você provavelmente

palpitaria

no café-da-manhã

Me desculpa

eu me apressei 

tão sozinho

e tão tristinho.

Versos exagerados e de galhos e ramos dramáticos, tão flamboyant. Tão fracassada transcriação que veio da fracassada tradução que se deu por contente, do tradutor que fugiu para falar entre línguas: a gente faz o que dá. Na escola hostil, nos amores até que acabem, nos poemas deles e nossos. Na vida toda, né. A vida toda.


Hugo Lorenzetti Neto é tradutor.

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