Tradução

Traduzir e interpretar

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Traduzir e interpretar

Da série: Tradutores pensam a tradução

Eu não sou somente apaixonada pela leitura, mas também, e talvez até mais, pela releitura. A segunda ou terceira leitura são muito mais ricas pois, como já sabemos o desenrolar da história, podemos realmente prestar atenção na riqueza da linguagem, nas frases escritas com tanta beleza, sagacidade ou ironia que chegam a nos tirar o fôlego, ou arrancam uma gargalhada. Ainda assim, nem quatro ou cinco ou dez ou vinte leituras podem nos aprofundar tanto em um texto como traduzi-lo.

Ao traduzir vamos levantando camadas e mais camadas da escrita, descobrindo nuances que passariam despercebidas ao mais atento leitor. Ao traduzir, criamos uma simbiose com o autor, queremos conhecer seus motivos, seus pensamentos, o que o instigou a escrever aquilo. Ao lermos uma frase repetidamente, pensando qual a melhor maneira de transcrevê-la em outra língua, ela deixa de ser uma frase qualquer, pois todas as palavras são importantes, todas têm algo a dizer, e cabe ao tradutor que nada se perca no meio do caminho. Ao tradutor não cabe “inventar”; é preciso ser fiel ao autor; mas, como na vida, é muito mais agradável ser fiel quando temos liberdade. O tradutor precisa se sentir livre para alçar voo junto ao criador da história. Ao tradutor é dada a oportunidade de entrar em lugares íntimos e de uma certa forma secretos da escrita. E isso acaba por criar uma relação de grande proximidade entre autor e tradutor.  

Apesar da singularidade da tradução e da beleza desse processo, traduzir um bom texto apresenta muitos impasses; uma expressão, à primeira vista simples, pode dar bastante trabalho até que o tradutor se sinta satisfeito de que causou o efeito desejado na língua-alvo. Ainda assim, pode-se dizer que ao fazer uma tradução escrita o tradutor tem tempo para pesquisar, refletir e fazer mudanças no texto — luxos que certamente não estão disponíveis no dia a dia de um intérprete, onde os principais requisitos são a concentração absoluta e a rapidez de raciocínio.

Mas, antes de descrever o que envolve o trabalho de um intérprete, talvez seja melhor informar o leitor que o governo do Reino Unido oferece esse serviço gratuitamente a qualquer cidadão que viva de forma legal no país e que não domine o idioma inglês — e isso acontece nas mais variadas situações.

Assim, o intérprete é chamado para diversos tipos de trabalho: reuniões escolares, depoimento de vítimas em delegacias, serviços de reabilitação, consultas médicas, visitas domiciliares de assistentes sociais, sessões de terapia, para citar os mais comuns. Nessas ocasiões, diferentemente da tradução, a riqueza da linguagem não é o mais importante. No entanto, é importante ressaltar que o intérprete, assim como o tradutor, deve ser fiel à forma de expressão utilizada por seus clientes já que a maneira que uma pessoa se exprime — as pausas, as reticências, as repetições — são fatores que podem ser essenciais em muitas circunstâncias. Contudo, é imprescindível fazer com que esses encontros, na medida do possível, tenham a mesma fluidez que teriam se todos os presentes falassem o mesmo idioma, sem comprometer a informação que está sendo transmitida. Tudo o que for dito deve ser traduzido corretamente e nada deve ficar de fora, nem mesmo um comentário que possa parecer irrelevante. Não é papel do intérprete filtrar as informações.

Em algumas situações, isso exige não só conhecimento como presença de espírito. Um exemplo disso é quando no meio de uma reunião um dos presentes resolve contar uma piada. Ao terminar, todos aguardam que o intérprete traduza para que os demais possam rir também. O que seria equivalente na língua-alvo? É preciso pensar rápido; caso contrário, o momento se perde. Por isso, conhecer a fundo a cultura dos dois países é fundamental.

A profissão de intérprete requer também um grande equilíbrio entre a postura profissional e o lado humano. Sendo essa habilidade tão importante quanto o conhecimento da língua e da cultura.

Apesar das exigências, o trabalho de intérprete é extremamente gratificante. Quem já esteve rodeado de médicos, máquinas de ressonância magnética, ou foi submetido a exames invasivos, sabe que a sensação de fragilidade é grande em momentos como esses. O que dizer então quando alguém passa por tudo isso em um país distante sem entender nada do que dizem a sua volta? A situação é difícil para o paciente e para os profissionais da saúde. Pois é nesse momento que entra o intérprete. Nem é preciso dizer o quanto é bem-vindo e apreciado por ambas as partes, e a gratificação pessoal em poder ajudar é imensa.

Em geral, o intérprete é chamado em momentos dramáticos na vida do estrangeiro e fazer parte desse momento é um privilégio e uma grande responsabilidade.

Frequentemente, cabe ao intérprete traduzir diagnósticos muito dolorosos e às vezes é preciso controle para manter uma atitude profissional; afinal, chorar junto com o paciente não irá ajudá-lo naquele momento; ele precisa dos detalhes passados pela equipe médica e tem que se sentir seguro de que a tradução foi bem feita. Ao mesmo tempo, quando um intérprete acompanha um paciente durante meses em sessões de quimioterapia cria-se um laço de afeição; é inevitável, e é até desejável que seja assim, desde que o intérprete mantenha-se profissional para que todas as partes se sintam seguras de que as informações foram passadas de um idioma para o outro de foram correta.

Outro exemplo onde um certo envolvimento emocional acontece entre intérprete e cliente é a terapia. O que se passa dentro de um consultório de psicologia é extremamente íntimo, e ter que falar de temas sensíveis diante de uma terceira pessoa pode por o tratamento a perder; por isso, mais uma vez, a postura humana, porém profissional, adotada pelo intérprete é fundamental. Não há dúvida de que sessões de terapia são um desafio, mas é também um dos trabalhos mais gratificantes dentro dessa profissão.

Por fim, pode-se dizer que tanto o trabalho do tradutor como o do intérprete requer um interesse pessoal por novas culturas, por diversas áreas de conhecimento e pela natureza humana. E, é claro, o amor pela linguagem.


Shayla Bittencourt nasceu em Santa Catarina. Depois de graduar-se em psicologia mudou-se para a Inglaterra, onde se dedicou ao estudo de idiomas. Foi professora de inglês no Reino Unido por dez anos. Em 2008 obteve o diploma de intérprete pelo Chartered Institute of Linguists. Traduziu um livro de crônicas da autora Martha Medeiros com o título Non-Stop e há quinze anos atua como intérprete na região de Londres, Oxfordshire and the Midlands. Shayla tem uma filha e vive em um barco no Grand Union Canal na Inglaterra.

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