Arthur de Faria | Porto Alegre: uma biografia musical

Capítulo LVII – Um milhão de melódicos melodiosos – ou: os anos de transição (Parte 3)

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Capítulo LVII – Um milhão de melódicos melodiosos – ou: os anos de transição (Parte 3) Raul, Porto Rico, Tasso e Aderbal (Foto: acervo Tania Porto)

O primeiro melódico da cidade foi o Conjunto de Aderbal D’Ávila. Aderbal era pianista da Rádio Farroupilha, e um baita pianista. 

A seu lado, no acordeom, o mesmo Tasso Bangel que liderava o Conjunto Farroupilha. Como não há registros do grupo, que começou sua vida no comecinho dos anos 1950, o que temos são as lembranças. E Tasso lembrava que o conjunto nem tinha contrabaixo, já que, nestes tempos pré-amplificação, quase ninguém ouvia o baixo mesmo… Mas em compensação, o quinteto tinha a lady crooner Lourdes Rodrigues – com seus 13, 14 anos -, mais Porto Rico na bateria e Raul Lima na guitarra elétrica. 

Vocês já ouviram falar nele, e ouvirão muito mais: Raul – que seguiu tocando até morrer, aos 90 anos – seria sócio-fundador do mais famoso de todos os melódicos, o…

…Conjunto Norberto Baldauf.

BALDAUFS
Baldauf, Baraldo, Raul, Léo, Canella: O Quinteto Fantástico

O mais imitado e incensado dos melódicos foi também seu último sobrevivente. Liderado até o fim pelo pianista Norberto João Baldauf (Porto Alegre, 10/08/1928 – 03/04/2018), que calculou ter tocado uns dois mil bailes até o século XXI.

Norberto estudava piano erudito desde os quatro anos de idade. Na verdade, desde que sua mãe morreu e ele foi morar com a tia-madrinha, que era professora do instrumento. Mais tarde, passou pelo mestre Adolph Fest (pai do grande pianista, de quem falaremos, Manfredo Fest).

Começara a vida profissional de músico como pianista da Casa Beethoven, loja de música que funciona até hoje. Ele ficava ali, a postos. Na dúvida sobre quais partituras levar, em vez do freguês pianista amador ficar catando notas para decifrar cada pentagrama, ele dava pro pianista da casa tocar. Era uma profissão bastante comum em tempos em que se vendiam muitas partituras. Mas que pagava pouco e exigia muito: leitura de música à primeira vista era essencial.

Aí, em 1948, pinta uma vaga na famosa Orquestra de Ernani & Marino, big band que trabalhava na Rádio Difusora. Eram treze músicos, liderados pelo saxofonista Marino dos Santos e pelo trompetista Ernani Oliveira. Na guitarra, um velho colega do Colégio Júlio de Castilhos: o mesmo Raul Lima com quem ele seguiria tocando pelas seis décadas seguintes.

Raul, porto-alegrense nascido em 23 de fevereiro de 1924, morreu em 09 de setembro de 2015, aos 91, sem nunca parar de tocar. Era guitarrista elétrico desde os 17 anos. Afinal, foi em 1941 que ele construiu, com ajuda de amigos que entendiam os mistérios da eletricidade, sua primeira guitarra – o que o coloca ao lado de Antoninho Gonçalves como pioneiro do instrumento na cidade, e também o torna um dos primeiros no Brasil. Ainda antes disso, entrando na adolescência, tinha estudado violino e teoria musical com Octávio Dutra (lembra?).

Voltando a Baldauf.

Tudo andava bem na sua vida musical quando o pai o convoca para ajudá-lo… na farmácia! 

Sim.

O Baldauf pai, imigrante suíço, linha dura, trabalhava de sol a sol como farmacêutico. E pior: acreditava em condenação hereditária. Norberto chega a abandonar a música. E não que ele desgostasse de farmácia, afinal faria carreira acadêmica na área. Mas aquela aposentadoria musical precoce era inconcebível.

(Curiosa coincidência farmacêutica: Túlio Piva, o sambista lançado pelo Conjunto Norberto Baldauf, também dividiu por anos o expediente de boêmio com o balcão da Drogaria Piva).

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Túlio, Baldauf e o homem da gravadora.

Quem salva o pianista é uma oportunidade irrecusável até para um pai farmacêutico (desde que suíço): ele ganha uma bolsa para especializar-se em interpretação de Mozart, em Munique, no Instituto Haydn.

O resultado é que ele passa todo o ano de 1952 na Alemanha. Mas, em vez de focar na carreira de concertista, prestava cada vez mais atenção ao jazz (principalmente o mais simples, mais “pop”) estadunidense e europeu. Principalmente… adivinha? 

Sim, o inglês George Shearing e yankee Art Van Damme. Norberto saíra de uma cidade onde quem mandava eram as orquestras em formato de big bands. E aí se deparou com uma febre de grupos pequenos, mais camerísticos, ainda que tocando música popular. Ficou doido, num insight parecido com o que tivera, mais ou menos à mesma época, Astor Piazzolla – que também tinha vindo de um mundo de orquestras (de tango), e estava igualmente em temporada de estudos na Europa. Só que Astor se encantara com o octeto de Gerry Mulligan. Já Norberto, com sons mais simples e suingados. Que eram, em última instância, parte do pop da época. Mozart é que, definitivamente, não era o seu lance. Tava mais é para Shearing, Van Damme ou mesmo o espalhafatoso pianista Carmen Cavallaro. Sim, O pianista. Vai entender por que o batizaram de Carmen…

Na volta da Europa, cheio de moral e ideias, é recontratado pela Rádio Gaúcha, mas com mais status: agora é o titular de Um Piano Dentro da Noite, programa diário, das 23h30 à meia-noite.

Reencontra Raul e se aproxima de outros dois nomes de prestígio na emissora: o acordeonista Victor Canella e o contrabaixista Léo Cunha Velloso (Porto Alegre, 14/12/1924 – 05/03/1979). Léo fora colega de Norberto e Raul no colégio Júlio de Castilhos e, no futuro grupo, acumularia as funções de músico, mestre de cerimônias e empresário. Seria ideia dele, por exemplo, os cartões de visita em nome do conjunto, com a frase Uma garantia para sua festa.

Já o suave e virtuoso Canella, catarinense de Meleiro (16/10/1929), conhecera Norberto numa temporada do pianista na praia gaúcha de Torres. Durante toda a carreira do grupo (e até morrer, em Porto Alegre, em 14/08/2000), foi o único da turma a viver só de música – Baldauf era professor; Raul, oficial administrativo da Secretaria de Educação; e Léo, escriturário do Banco do Brasil.

Canella, acordeom; Raul, guitarra; Norberto, piano; Léo, contrabaixo: estava montado o quarteto. Um quarteto imediatamente disputado pelos cantores da emissora para acompanhá-los com maestria e inovadora delicadeza.

Logo se animam para o inchamento de sua máquina administrativa: um baterista seria essencial para tornar a sonoridade do grupo mais viável em bailes e eventos maiores. O homem ideal para o posto era uma fera de um metro e meio de altura chamada Wilson Baraldo (Porto Alegre, 18/12/1924 – 02/09/1994).

Só que Baraldo já era um nome conhecido, tarimbado em várias orquestras e pequenos conjuntos. Tocava também banjo, violão e piano e, naquele momento, atuava na noite, como baterista nos prestigiados American Boite Boite Marabá – onde integrava o conjunto de um sujeito de que ainda falaremos muito: Breno Sauer.

Do Marabá ele podia sair logo, o problema maior era o American, elegantérrimo cabaré da rua Voluntários da Pátria, onde seu contrato ainda estava longe de vencer. Ou seja: me querem? Vão ter de esperar. Resolvem que sim, e aí chamam, como interino, Guttemberg Porto, o Porto Rico que tocara com Raul no conjunto de Aderbal (Rio Grande, 24/1/1924, São Paulo, 17/4/1973).

Voltando a Baraldo: sua família era um celeiro de bons músicos. Cadiz Baraldo tocava violino e piano pelas boates e casas noturnas porto-alegrenses desde a década de 1940. Nilton Baraldo era guitarrista – em bom porto-alegrês um baaaita guitarrista! E havia ainda Sumerval Baraldo, um virtuose da bateria. Dá pra conferir o desempenho dos últimos dois no disco Seleção Dançante, de Primo & Seu Conjunto (1957, Gravadora Mocambo, facilmente achável na internet).

* * *

Aí chegamos ao entardecer de 17 de maio de 1953. Ali, pode-se dizer, inaugurava-se uma era. Era a estreia, no Centro Acadêmico da Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, de um quinteto de charmosos rapazes. Todos, sem exceção, com os clássicos bigodinhos à Clark Gable. Elegantemente distribuídos ao redor de uma bateria cujo bumbo ostentava o nome: Conjunto Melódico Norberto Baldauf.

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A vasta – e esquecida – discografia baldaufiana.

O quinteto passa a tocar pelos bailes da cidade e, a partir de 1955, a conciliar as férias de seus empregos “oficiais” com temporadas de verão na badaladíssima praia uruguaia de Punta Del Este. Ali, tocam para o jet set internacional e excursionam a Montevidéu, Buenos Aires e várias cidades do interior da Argentina. 

São tournées armadas geralmente em tempos de Carnaval, onde eram apresentados como Norberto Baldauf y Sua Orquestra Carioca ou mesmo Norberto Baldauf y Conjunto Brasileño, la maravillosa sensación de Rio (!!!).

Pouco antes disso, uma curiosa carta aberta rende um pequeno milagre. A nota, publicada em junho de 1954 pelo radialista Paulo Deniz na sua coluna Discos no jornal Folha da Tarde, dizia o seguinte:

Srs. Diretores de Gravadoras Brasileiras. (…) Se baixarem os olhos ao extremo sul do país, encontrarão cinco rapazes reunidos num conjunto melódico, dotados de forma brilhante e classe na arte de “fazer música. (…) Esta mesma terra, que vos cedeu Radamés Gnattali, Edu, Chiquinho (acordeom), Dante Santoro e outros instrumentistas de renome, tem “em casa” mais estes, esperando sua oportunidade, pois, talento e virtudes não lhes faltam.

Pensado aos olhos de hoje, foi um ato fofo, simpático e completamente ingênuo.

Só que, pasmem: deu certo.

Em poucos dias, duas gravadoras se interessaram em ver qual era a onda dos rapazes. Que acabaram escolhendo a Odeon, sonho dourado de qualquer artista daquele momento. 

O contrato só seria assinado no ano seguinte, no Rio, nos estúdios da gravadora cujo diretor artístico e “regente de gravações” (nome que então se dava ao produtor) era um jovem promissor chamado Antonio Carlos Jobim. E cujo time tinha nas cabeças André Midani e Aloysio de Oliveira.


Arthur de Faria nasceu no ano que não terminou, é compositor de profissão (15 discos, meia centena de trilhas) e doutorando em literatura brasileira na UFRGS por puro amor desinteressado. Publicou Elis, uma biografia musical (Arquipélago, 2015).

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