Diário da espera | Parêntese

Zara Gerhardt: Dois meses de quarentena: o depoimento que não dei à polícia

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Zara Gerhardt: Dois meses de quarentena: o depoimento que não dei à polícia 17/05/2020 Hoje faz dois meses que não saio de casa. Dia totalmente atípico. Estava momentaneamente acordada, quando ouvi um baque surdo na frente do prédio. Olhei o celular: 5:40. Pensei em algo batendo na porta principal, de madeira. Como o prédio tem grade, imaginei um tombo do porteiro. Fiquei alerta. De repente veio um sentimento estranho de que poderia ter sido o barulho de um corpo caindo. Suicídio de alguém? Quem sabe, nestes tempos sombrios? Noite fechada, não fui olhar na janela. Quase meia hora depois, já clareando, ouço vozes abafadas. Abro a persiana do quarto e me deparo com um corpo de homem na calçada. O homem está de pijama verde, de mangas curtas. Ele tem cabelos grisalhos, pés descalços, é corpulento e os braços são gordos. Está deitado de costas, paralelo à grade, mas fora dela, boca semi-aberta, olhos fechados e cabeça posicionada na direção do oeste. As pernas estão mais ou menos esticadas — a esquerda está um pouco dobrada — e os braços levantados para cima e flexionados, tal como dormem os bebês, e seu semblante é tranquilo. Duas viaturas e quatro policiais estão chegando. Telefonei ao porteiro, que contou que estava tomando café quando ouviu o barulho e pensou que fossem pinhas do pinheiro caindo. Êta pinha pesada, pensei! Nunca vi pinha de 90 quilos. Em seguida falou que não era ninguém do prédio porque era um senhor de cabelos grisalhos e aqui só havia dois assim: seu Antônio*, do 101 e seu Ruy* do 1001. Afirmou que era alguém desconhecido que estaria andando e caído em frente do prédio. Voltei para a janela, agora a da sala, que me dava uma visão melhor. Identifiquei o seu Ruy, do 1001, e intuí que ele havia saltado da janela da sala dele, muitos andares acima do meu. Com um impulso, certamente ele passaria o pinheiro, voando por cima da grade. Telefonei novamente para o porteiro informando a identificação do morto. Ele mais uma vez negou, dizendo que o seu Ruy era muito maior do que o cadáver. Pensei com os meus botões sobre a diferença que o traje faz na pessoa: seu Ruy, arquiteto renomado, estava sempre de terno, gravata e sapato social. Realmente, parecia muito maior do que aquele morto de pijama e descalço, estendido na calçada do prédio. A identificação oficial e confirmação daquela que eu já havia feito foram realizadas com a troca de turno dos porteiros. O do dia viu o que o outro se recusava a ver. O morto é realmente o seu Ruy. Só às sete e meia apareceu um lençol para cobrir o corpo. Até agora, 8:00 horas, continuam aqui três viaturas da polícia, sendo uma da perícia. Quatro policiais e três peritos, montando guarda do corpo, cercado por fita zebrada preta e amarela. Será que haveria todo este aparato se fosse numa vila? Às 8:20 chegou a perícia técnica. Cinco pessoas: um mede o corpo. Ao tirar o lençol, uma grande mancha de sangue aparece em torno da cabeça.  Telefonei […]

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17/05/2020 Hoje faz dois meses que não saio de casa. Dia totalmente atípico. Estava momentaneamente acordada, quando ouvi um baque surdo na frente do prédio. Olhei o celular: 5:40. Pensei em algo batendo na porta principal, de madeira. Como o prédio tem grade, imaginei um tombo do porteiro. Fiquei alerta. De repente veio um sentimento estranho de que poderia ter sido o barulho de um corpo caindo. Suicídio de alguém? Quem sabe, nestes tempos sombrios? Noite fechada, não fui olhar na janela. Quase meia hora depois, já clareando, ouço vozes abafadas. Abro a persiana do quarto e me deparo com um corpo de homem na calçada. O homem está de pijama verde, de mangas curtas. Ele tem cabelos grisalhos, pés descalços, é corpulento e os braços são gordos. Está deitado de costas, paralelo à grade, mas fora dela, boca semi-aberta, olhos fechados e cabeça posicionada na direção do oeste. As pernas estão mais ou menos esticadas — a esquerda está um pouco dobrada — e os braços levantados para cima e flexionados, tal como dormem os bebês, e seu semblante é tranquilo. Duas viaturas e quatro policiais estão chegando. Telefonei ao porteiro, que contou que estava tomando café quando ouviu o barulho e pensou que fossem pinhas do pinheiro caindo. Êta pinha pesada, pensei! Nunca vi pinha de 90 quilos. Em seguida falou que não era ninguém do prédio porque era um senhor de cabelos grisalhos e aqui só havia dois assim: seu Antônio*, do 101 e seu Ruy* do 1001. Afirmou que era alguém desconhecido que estaria andando e caído em frente do prédio. Voltei para a janela, agora a da sala, que me dava uma visão melhor. Identifiquei o seu Ruy, do 1001, e intuí que ele havia saltado da janela da sala dele, muitos andares acima do meu. Com um impulso, certamente ele passaria o pinheiro, voando por cima da grade. Telefonei novamente para o porteiro informando a identificação do morto. Ele mais uma vez negou, dizendo que o seu Ruy era muito maior do que o cadáver. Pensei com os meus botões sobre a diferença que o traje faz na pessoa: seu Ruy, arquiteto renomado, estava sempre de terno, gravata e sapato social. Realmente, parecia muito maior do que aquele morto de pijama e descalço, estendido na calçada do prédio. A identificação oficial e confirmação daquela que eu já havia feito foram realizadas com a troca de turno dos porteiros. O do dia viu o que o outro se recusava a ver. O morto é realmente o seu Ruy. Só às sete e meia apareceu um lençol para cobrir o corpo. Até agora, 8:00 horas, continuam aqui três viaturas da polícia, sendo uma da perícia. Quatro policiais e três peritos, montando guarda do corpo, cercado por fita zebrada preta e amarela. Será que haveria todo este aparato se fosse numa vila? Às 8:20 chegou a perícia técnica. Cinco pessoas: um mede o corpo. Ao tirar o lençol, uma grande mancha de sangue aparece em torno da cabeça.  Telefonei […]

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