Artes Visuais | Reportagens

Exposição “Raio-que-o-parta” exibe pluralidade da arte moderna brasileira

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Exposição “Raio-que-o-parta” exibe pluralidade da arte moderna brasileira "América do Sul I" (1927), de Joaquim do Rego Monteiro. Foto: Divulgação Sesc

O centenário da Semana de Arte Moderna de 1922 mobiliza debates e eventos em torno das noções de moderno nas manifestações culturais brasileiras. Parte dessas reflexões propõe um olhar mais amplo em termos cronológicos e geográficos, trazendo à tona produções que antecedem a realização da Semana e extrapolam o contexto artístico da cidade de São Paulo nos anos 1920.

Um exemplo dessa perspectiva é a exposição Raio-que-o-parta: Ficções do Moderno no Brasil, em cartaz no Sesc 24 de Maio, em São Paulo, até 7 de agosto. A mostra reúne cerca de 600 obras de 200 artistas, selecionadas por seis curadores de diferentes regiões que investigam de que forma o modernismo ganhou contornos na cultura do país: Aldrin Figueiredo, Clarissa Diniz, Divino Sobral, Marcelo Campos, Paula Ramos e Raphael Fonseca, com consultoria de Fernanda Pitta.

“A noção de arte moderna no Brasil é uma grande invenção. Um conceito elástico e ficcional que pessoas diferentes, em tempos diferentes e com interesses diferentes proclamaram, sejam elas artistas, curadores, críticos ou historiadores da arte”, afirma Fonseca, curador-geral da exposição, que atualmente colabora como curador de arte moderna e latino-americana no Denver Art Museum, nos EUA.

“Um dos princípios da mostra não é criticar o lugar de São Paulo nas artes visuais do país, mas possibilitar ao público a chance rara de se ver outras produções, também importantes, em diálogo com esse cânone. A ideia é não dar esse centro a São Paulo, nem em termos de quantidade de artistas, nem na expografia”, completa Fonseca.

Cocuradora da mostra, a professora do Instituto de Artes da UFRGS Paula Ramos destaca o recorte temporal apresentado no Sesc 24 de Maio: “Começamos no final do século 19 e viemos até o final dos anos 1950, início dos 1960. Embora a exposição aconteça e seja inaugurada na semana em que discutimos e comemoramos o centenário da Semana de 1922, ela não apresenta os ‘desdobramentos da Semana’ nas várias regiões do Brasil ou enfatiza esse protagonismo paulista. O que a mostra traz é a pluralidade desse processo” – leia a seguir o comentário de Ramos sobre o contexto cultural do RS nos anos 1920 e algumas das obras exibidas na exposição.

Ramos explica que o título Raio-que-o-parta toma emprestado o nome de um estilo arquitetônico, popular em Belém (PA), que surgiu entre os anos 1940 e 1950. Essa arquitetura traz casas com fachadas simples e geométricas, que lembram um art déco tardio, cujas superfícies são cobertas com milhares de fragmentos de azulejos, formando desenhos como raios, bumerangues e flechas”, descreve a curadora.

“Para os arquitetos eruditos, essa produção não era vista com bons olhos e foi chamada, de modo pejorativo, de ‘arquitetura raio-que-o-parta’. O que nos fascina nela é esse aspecto de uma interpretação local e genuína para uma ideia de moderno. Esse é o tom da exposição”, completa Ramos.

Os quatro núcleos da mostra apropriam-se de nomes de grupos e movimentos responsáveis por transformações culturais em suas regiões nos anos 1920. “Deixa falar” – nome de uma escola de samba do Rio de Janeiro da época – apresenta obras focadas na autorrepresentação e no empoderamento. Nomes como Agnaldo Manoel dos Santos, Anita Malfatti, Benjamin Abrahão, Carybé, Haruo Ohara, Mestre Zumba, Tomie Ohtake, Vicente do Rêgo Monteiro e Wilson Tibério integram esse núcleo.

“Motivo Indígena” (1922), de Vicente do Rêgo Monteiro. Foto: Divulgação Sesc


Em “Centauros iconoclastas” – nome de um grupo literário modernista do Recife –, corpo e performatividade estão em evidência nos trabalhos de Aurora Cursino dos Santos, Joaquim do Rego Monteiro, Lídia Baís, Moacir Andrade, Nelson Boeira Faedrich, Pagu e Tarsila do Amaral, entre outros.

“Sem Título”, de Aurora Cursino Santos. Foto: Divulgação Sesc 24 de Maio

O núcleo “Eu vou reunir, eu vou guarnecer” – verso de uma toada do bumba-meu-boi – volta-se ao eixo festa/melancolia, reunindo obras de artistas como Dimitri Ismailovitch, Djanira, DJ Oliveira, Eros Volúsia, Franklin Cascaes, Heitor dos Prazeres, Lasar Segall e Rubem Valentim.

“Galo”, de Franklin Cascaes. Foto: Divulgação Sesc 24 de Maio

O quarto núcleo, “Vândalos do Apocalipse” – nome de um grupo modernista de Belém dos anos 1920) –, debate a ideia de “desordem e progresso” na produção de Alice Brill, Branco e Silva, Hildegard Rosenthal e José Antônio da Silva, entre outros nomes nacionais.

“Sem título” (1956), de José Antonio da Silva. Foto: Divulgação Sesc 24 de Maio

Fonseca ressalta a diversidade dos artistas que compõem a mostra, “de todos os estados do Brasil, de lugares de fala muito diferentes, trabalhadores misturados com herdeiros, que estudaram artes ou não”.

As obras ocupam um espaço expositivo com cerca de 1.300m² e foram cedidas por mais de 100 colecionadores brasileiros e instituições, entre as quais Pinacoteca do Amazonas, Mamam (PE), Museu Nacional de Belas Artes (RJ), MAC-USP, MAR (RJ), MASP, Pinacoteca do Estado de SP, Museu de Arte de Belém (PA), Museu Antropológico da UFG (GO) e o Museu de Arte da UFSC.

Obras de coleções particulares do RS e dos acervos do MARGS, da Pinacoteca Barão de Santo Ângelo do Instituto de Artes da UFRGS e da Pinacoteca da Fundacred (ex-Pinacoteca da APLUB) também integram a mostra.

Além de desenhos, esculturas, fotografias, gravuras e pinturas, a exposição Raio-que-o-parta contempla cinema, histórias em quadrinhos, música, revistas ilustradas, vestuário e documentações de ações efêmeras. O conjunto de propostas criativas visa compreender a trama de modernidades do contexto nacional.

De que forma a produção artística do RS se situa no modernismo brasileiro, especialmente no período próximo à Semana de 1922?

Paula Ramos: Nos anos 1920, temos movimentos culturais muito importantes no RS. De um lado, observamos o fortalecimento de instituições como a Biblioteca Pública e a Livraria do Globo, que se volta ao lançamento de jovens escritores locais, muitos deles fortemente marcados pelo Simbolismo, de um lado – como Augusto Meyer e Theodemiro Tostes –, e pelo Regionalismo –Darcy Azambuja e Vargas Netto, entre outros.

Naquele momento, temos revistas ilustradas (a exemplo da Máscara, que circulou entre 1918 e 1928; Madrugada, de setembro a dezembro de 1926; e Revista do Globo, a partir de 1929) que abrem espaço para literatos e artistas visuais, que vão publicar seus trabalhos como ilustração.

Temos também algumas iniciativas marcantes, três delas ocorridas em 1925:

[1] a realização do Salão de Outono, em maio de 1925, na prefeitura de Porto Alegre, que exibe mais de 300 trabalhos de artistas consagrados e “novos”, como Fernando Corona e João Fahrion – que acabara de voltar de um período de dois anos de formação na Alemanha;

[2] as conferências de Guilherme de Almeida (ele próprio um dos idealizadores da Semana de 1922), em setembro de 1925, intituladas “Revelação do Brasil pela poesia moderna”, no Theatro São Pedro, e “Solilóquio para uma noite de chuva”, nas Horas de Arte do Clube Jocotó;

[3] e a conferência sobre arte moderna de Angelo Guido, um mês depois, em outubro, também no Clube Jocotó, mas fazendo a crítica aos artistas e intelectuais da Semana. Guido – que então morava no interior de São Paulo e se mudaria para Porto Alegre no final daquela década – seria um dos principais críticos de arte atuantes no RS na primeira metade do século 20, além de professor no Instituto de Belas Artes.

Portanto, naquele período, ocorrem debates interessantes. Via de regra, os artistas locais são refratários aos rompimentos mais bruscos defendidos pelos movimentos internacionais de renovação estética. No entanto, muitas vezes, talvez sem perceberem, eles produziram obras absolutamente modernas.

Um exemplo marcante disso está justamente nas ilustrações publicadas nas revistas ilustradas dos anos 1920 e início dos 1930. Elas exalam modernidade em temas, tratamentos e cores, e são distintas dos trabalhos em pintura que esses mesmos artistas produziam naquele período.

Capa de Fernando Corona para “Trem da Serra” (1928), de Ernani Fornari, edição da Livraria do Globo

E por que isso? Penso que, produzindo imagens para a indústria cultural, sem a pretensão de que fossem artísticas – e sem o peso da tradição representado pela tela e tinta a óleo –, os artistas se sentiam muito mais livres. O papel, por outro lado, suporte da ilustração, tem um aspecto mais despretensioso. Isso é patente nas capas e ilustrações de publicações como Máscara, Madrugada e, sobretudo, da Revista do Globo, que contava com artistas do porte de João Fahrion, Edgar Koetz e Nelson Boeira Faedrich, entre outros, que trabalhavam na legendária “Seção de Desenho” da Livraria do Globo, sob direção do designer alemão Ernst Zeuner.

Outro dado interessante: Zeuner fazia circular na “Seção” uma revista de design e artes gráficas muito importante na Alemanha naqueles idos (publicada até hoje, sob o título Novum): a Gebrauchsgraphik. Essa revista divulgava o que de mais moderno estava sendo produzido no campo do design gráfico europeu – uma “ponte” local importante com as renovações estéticas europeias via publicações impressas. Parte do “nosso diálogo” no RS se dava mais com a Alemanha do que, propriamente, com a França, que era a referência para artistas e intelectuais do Rio e de São Paulo. 

Conheça alguns dos trabalhos produzidos no RS que integram a exposição, comentados pela curadora Paula Ramos:

“Cabeça Cubista de Borges de Medeiros” (1924), de Fernando Corona

“Cabeça Cubista de Borges de Medeiros” (1924), de Fernando Corona. Foto: Divulgação UFRGS

Modelada em gesso e ecoando a compreensão local sobre o Cubismo, a cabeça representa o então presidente do Rio Grande do Sul, Borges de Medeiros, com o rosto pleno de incisões e volumes geométricos. O político estava à frente do estado, de forma direta ou indireta, desde 1898 e, em 1923, fora obrigado a assinar o Pacto de Pedras Altas, que o impedia de se reeleger e que abriu caminho para Getúlio Vargas. Embora admirasse Medeiros, o artista não deixa de sugerir, pela forma, um certo esfacelamento caricato do político. 

“Autorretrato” (1941), de Wilson Tibério

“Autorretrato” (1941), de Wilson Tibério. Foto: Divulgação UFRGS

Wilson Tibério está pouco representado nos acervos públicos brasileiros. Muito disso porque ele fez uma trajetória internacional, tendo vivido grande parte de sua vida em Paris. Trata-se de uma obra muito significativa, pois é um artista pobre, negro, que se agarra com muita convicção à certeza de seu caminho no campo das artes visuais. E ele faz esse caminho, mesmo com todas as adversidades. 

“Autorretrato com Cartola” (1942), de João Fahrion

“Autorretrato com Cartola” (1942), de João Fahrion. Foto: Divulgação Fundacred

Fahrion produziu dezenas de autorretratos desde muito jovem. Nessa obra, o artista se representa diante do cavalete, ao mesmo tempo em que encara o espectador com sua grande cartola de mágico. A obra foi produzida no contexto de suas admiráveis ilustrações para Noite na Taverna (1952), que estabelecem um interessante diálogo com a figura de Satã, criada por Fahrion a partir da narrativa de Álvares de Azevedo.

“A Salamanca do Jarau” (anos 1940), de Nelson Boeira Faedrich

“A Salamanca do Jarau” (anos 1940), de Nelson Boeira Faedrich. Foto: Divulgação Fundacred

A lenda da salamanca do Jarau versa sobre uma furna no Cerro do Jarau, na fronteira oeste do RS, onde viveria uma princesa encantada que prometia riquezas infinitas a quem a encontrasse. Trazida ao Novo Mundo pelos mouros expulsos da Espanha, ela é recebida em terras pampianas pelo demônio Anhangá-Pitã, que, numa demonstração de poder, transforma-a em teiniaguá, uma lagartixa sem cabeça. A complexa narrativa que associa a história do vaqueano Blau Nunes com a história do sacristão seduzido pela mulher-lagartixa foi ilustrada com lirismo e perícia por Faedrich, também autor do cenário e do figurino usados por Tony Petzhold, em sua montagem do bailado homônimo apresentado em Porto Alegre, em 1945, com música de Luiz Cosme e que também integra a exposição.

Espetáculo “A Salamanca do Jarau”, com figurino e cenário de Tony Petzhold. Foto: Divulgação UFRGS

“Gaúcho Farrapo” (1954), de Vasco Prado

Reprodução póstuma da obra (2001). Foto: Fábio del Re e Carlos Stein/VivaFoto

Essa obra de Vasco Prado, pertencente ao acervo do MARGS, foi produzida no contexto do concurso lançado pelo governo do estado para a obra que representaria o RS na exposição do IV Centenário de São Paulo. A obra que venceu esse concurso foi a maquete para O Laçador, de Antonio Caringi. O projeto de Vasco ficou em quarto lugar, sendo precedido por três obras de Caringi. 

Comparada com a figura altiva, viril e elevada à potência mítica de Caringi – que evoca desde o Davi de Michelangelo à obra de Arno Breker (1900–1991), último professor de Caringi na Alemanha e reconhecido escultor do Terceiro Reich –, o gaúcho de Vasco, com seus traços indiáticos, vincha na cabeça, bota de garrão de potro, chiripá e lança, remetendo aos habitantes originários da região, parece embaraçado. Não era essa, definitivamente, a imagem que o governo estadual queria difundir. Desprezado, o “farrapo” de Prado foi, por outro lado, crítica e simbolicamente, uma das primeiras obras a ser adquirida para o acervo do MARGS, criado naquele mesmo 1954. 

“Raio-que-o-parta: Ficções do Moderno no Brasil”
Quando:
até 7 de agosto de 2022
Onde: Sesc 24 de Maio – 5º andar – Rua 24 de Maio, 109 – Centro – São Paulo
Visitação: de terça a sábado, das 10h às 20h; domingos e feriados, das 10h às 18h*
Protocolo: maiores de 12 anos deverão apresentar comprovante de vacinação contra covid-19 (físico ou digital), evidenciando as duas doses, ou dose única
A exposição integra o programa Diversos 22, do Sesc 24 de Maio. Mais informações no site da instituição.

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