Artes Visuais | Reportagens

Xadalu traduz cosmogonia guarani em arte na Fundação Iberê

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Xadalu traduz cosmogonia guarani em arte na Fundação Iberê Xadalu. Foto: Denison Fagundes

O artista Xadalu Tupã Jekupé inaugura neste sábado (14/5), às 14h, na Fundação Iberê, a exposição Antes que Se Apague – Territórios Flutuantes. Ao todo, 19 trabalhos ocupam o segundo andar do museu, apresentando leituras da cosmogonia guarani por meio de pinturas, vídeos e uma instalação.

Em meio aos últimos ajustes da montagem, três dias antes da abertura da mostra, Xadalu explica que a investigação para a concepção dos trabalhos começou há cerca de 10 anos. Ao longo desse período, além de pesquisar documentos, o artista escutou relatos de sua avó, Dalva Oliveira da Luz, e de sábios da antiga terra indígena Ararenguá, situada à beira do rio Ibirapuitã, em Alegrete, onde Xadalu nasceu.

“A exposição foi pensada a partir de provocações dos sábios da aldeia e da relação com a minha avó. A família dela foi uma das últimas remanescentes, e ela tem muitas lembranças de como era o dia a dia”, conta o artista. A ideia de transformar os relatos em obras é mais recente e foi viabilizada, em grande parte, através da colaboração de Xadalu com a Plataforma de Antropologia e Respostas Indígenas à Covid-19 (PARI-c), projeto sediado na Universidade de Londres, com bolsa da Agência de Pesquisa e Inovação do Reino Unido (UKRI).

“Antes que Se Apague: Territórios Flutuantes” (2021), de Xadalu. Foto: Xadalu

A avó de Xadalu narra suas memórias no vídeo que intitula a exposição. Na obra de pouco mais de sete minutos, que exibe uma foto pouco nítida de Dalva junto ao Ibirapuitã, o espectador ouve recordações de trocas da avó com suas antepassadas e das experiências numa casa de barro, sem energia elétrica, na qual a família cozinhava a caça usando fogo de chão. Assim como em outros trabalhos do artista, o extermínio e apagamento das populações originárias do país é abordado por meio da afirmação da presença, da produção simbólica e da resistência indígenas.

“Só no Alegrete, viviam cinco etnias, e ninguém fala nada. Para onde foram essas pessoas?”, questiona Xadalu, citando os Charruas, Guaranis, Jaros, Mbones e Minuanos. “Bugre, uma palavra muito corriqueira, era uma maneira de distorcer e generalizar o ser indígena como qualquer indígena, mas nós somos uma pluralidade”, completa.

Para o curador da exposição, Cauê Alves, os trabalhos de Xadalu são “um grito de ‘nós estamos aqui ainda, apesar de tudo, e temos muitas histórias para contar’”. Curador-chefe do MAM-SP, Alves ressalta a forma como o artista transforma a cultura oral indígena em imagens. “O Xadalu capta esse imaginário transmitido pela fala e faz uma versão muito autoral, mas de uma autoria compartilhada, já que os guaranis participam do processo”, aponta o curador, fazendo referência às trocas constantes do artista com indígenas durante a produção dos trabalhos.

Xadalu. Foto: Denison Fagundes

Ao comentar o conjunto da exposição, Xadalu conta que a ideia é narrar a criação do universo até os dias de hoje, segundo a cosmogonia guarani: “desde rituais até coisas importantes do primeiro mundo e da construção do segundo mundo, em que estamos vivendo agora”.

A criação do primeiro mundo ganha evidência na instalação Apyká (2019) – nome de um assento divino, em forma de onça, sobre o qual Papá Tenondé, filho do deus supremo, surge para construir o mundo. O apyká está posicionado sobre um globo azul que reúne representações de territórios indígenas.

“Apyka” (2019), de Xadalu. Foto: Tiago Bertolini de Castro

Em Mymbi Roka (2022), Xadalu apresenta o pátio sagrado onde coqueiros sustentam o universo, zelados por duas queixadas (também conhecidas como koxis). Esses animais são os únicos que conseguem alcançar a dimensão onde a lua e o sol descansam simultaneamente.

“Mymbi Roka” (2022), de Xadalu. Foto: Cortesia do artista

A pintura Yvy Tenondé (2022) apresenta os primeiros habitantes, em pé sobre o dorso de jacarés, indo em direção ao primeiro mundo – cujo nome intitula o trabalho. O catálogo da mostra informa que, segundo a cosmogonia guarani, se os jacarés suspeitassem de maus espíritos, as pessoas eram devoradas.

“Yvy Tenondé” (2022), de Xadalu. Foto: Xadalu

Para o curador da mostra, as histórias contadas por meio de imagens na produção de Xadalu “revelam a complexidade do imaginário guarani e toda a riqueza dessa civilização que faz séculos está sendo ameaçada e dizimada”. “É bastante relevante o gesto de Xadalu, antes que essas histórias se apaguem, de pintar versões delas”, completa Alves.

Existe uma cidade sobre nós

A leitura de Xadalu para o segundo mundo da cosmogonia guarani traz à tona o espaço urbano de Porto Alegre. Em Nheru Nhe ’Ry (2021), o artista se apropria da imagem de rostos indígenas esculpidos nas bases da Catedral Metropolitana da capital gaúcha e inclui uma inscrição em guarani que significa “Existe uma cidade sobre nós”. “Aquilo é um insulto. As pessoas estão esmagadas, sustentando a catedral de Porto Alegre. É um reflexo do que a gente vê hoje e sempre viu”, diz Xadalu.

“Nheru Nhe ’Ry” (2021), de Xadalu. Foto: Fábio Alt

“A cabeça dourada foi um tesouro perdido ou esquecido que foi encontrado. Os olhos amarelos mostram que o espírito ainda está vivo, e o vermelho mostra que o sangue permanece vivo e escorre por dentro de cada um de nós até hoje”, descreve o artista.

No catálogo da exposição, Alves observa que “quando Xadalu demarca Porto Alegre, com seus adesivos, cartazes, pinturas ou bandeiras, como ‘área indígena’, está completamente correto do ponto de vista histórico. Todo o Brasil já foi território indígena. Mais do que a reinvindicação do direito ao território, trata-se de uma reocupação simbólica”.

“Uma espécie de reconquista que não é como a conquista colonial, que explora e destrói a terra, seja pelo garimpo, a monocultura ou a construção de cidades e monumentos, mas de modo singelo, chamando atenção para quem sempre esteve ali, sentado, resistindo, mas que foi praticamente apagado, como se os indígenas tivessem perdido sua visibilidade”, completa o curador.

“Ore Yvoty Ty” (2021), de Xadalu. Foto: Fábio Alt

Outro exemplo dessa abordagem é a obra Ore Yvoty Ty (2021), na qual o artista recria com sementes o desenho da calçada da rua dos Andradas, no Centro Histórico de Porto Alegre. “Essas sementes são plantadas por mulheres e depois retiradas da terra. Uma parte é usada no artesanato e outra para benzer e proteger as pessoas”, conta Xadalu, chamando a atenção para o colar de sementes que leva no peito. Ao ressignificar um elemento icônico de uma cidade brasileira – construída sobre as “áreas indígenas” demarcadas pelo artista –, as sementes sagradas do jardim de Xadalu atuam de modo semelhante aos adesivos que ele espalha pela cidade. Segundo o artista, “tudo que elas tocam vira guarani”.

Detalhe de “Ore Yvoty Ty” (2021), de Xadalu. Foto: Fábio Alt

Xadalu participa da websérie Misturados, com direção de Luiz Alberto Cassol, Ricardo Almeida e Richard Serraria, que será exibida no dia 14/5, às 16h30, no auditório da Fundação Iberê, com participação de Xadalu, Caue Alves e dos diretores do projeto:

Antes que Se Apague: Territórios Flutuantes, de Xadalu Tupã Jekupé
Quando:
de 14 de maio a 31 de julho de 2022 – visita guiada no dia 14/5, às 14h30, com a presença de Xadalu e do curador, Caue Alves
Onde: Fundação Iberê (Avenida Padre Cacique, 2000 – Porto Alegre/RS)
Visitação: de quinta a domingo, das 14h às 18h (última entrada)
Ingressos: às quintas-feiras, entrada gratuita; de sexta a domingo, entradas à venda no Sympla

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